Corpo, gênero e sexualidade | Outras Fronteiras | 2017

Neste dossiê nossa proposta foi estabelecer uma ampla reflexão acerca do diálogo da história e as demais ciências, buscando dar visibilidade a uma temática que por muitas vezes foi negligenciada dos estudos acadêmicos: o corpo, a sexualidade e gênero. Busca-se, nesse sentido, uma discussão problematizadora das múltiplas relações que em nossa sociedade estabelecemos com o corpo, com a sexualidade e com o gênero, ora libertadora, ora excludente, às vezes anunciadoras de outras formas de existência e por muitas vezes assujeitadas a formas inauditas de violência física e simbólica.

Em, História do corpo2 , obra coletiva organizada por Georges Vigarelo, Alain Corbin e de Jean Jacques Courtine já vislumbrava estudos sobre a historicidade de problemas referentes às formas de controle e domesticação do corpo, às relações dissimétricas de poder que constrói assujeitamentos, às formas de sensibilidade para as quais o corpo é educado, para a percepção de que normas e preceitos sexuais são culturalmente construídos, o que, por fim, lançava luz questões políticas sobre as formas de coações e de luta pela conquista da posse do corpo, dos desejos, dos prazeres etc., o que curiosamente nos lança a olhar atentamente para nós mesmos, para uma relação de si consigo mesmo, pois a parte mais material de nossa existência que é o corpo, é a menos percebida.

O debate em questão suscita a necessidade de se pensar outras maneiras de se escrever história em que as problemáticas referentes ao corpo, a sexualidade e ao gênero sejam postas nas suas múltiplas dimensões sociais, culturais e econômicos, o que traz ao lume temas até então poucos abordados na historiografia brasileira.

Corpos talhados culturalmente por séculos de escravidão, marcados por dor, sofrimento e prazer, que se mostram e se constroem de diversas maneiras, que criam laços afetivos diversos, corpos que lutam pela autonomia e afirmação de sua sexualidade diante de normas e preceitos morais construídos historicamente no tempo e no espaço, nesse tipo de problemática, os estudos de gênero e a chamada teoria queer sob influência de Judit Butler, tiveram uma grande importância.

Os estudos de gênero têm crescido nas últimas décadas. Especialmente a partir da definição apresentada por Joan Scott de forma traduzida e publicada no Brasil, primeiramente em 1990. Segundo ela, o gênero é uma primeira forma de dar sentido às relações sociais entre os sexos. O gênero diz de como percebemos as manifestações de masculinidade e feminilidade que independem de um corpo marcado por um (ou às vezes dois) sexo genital ou anatômico. Os trabalhos de Scott também foram influenciados por Michel Foucault. Os volumes da História da Sexualidade trouxeram luzes para se pensar como se constrói normativas para os corpos, quais corpos importam, por que, sob quais parâmetros de conhecimento e como os saberes se instituem como verdades, cuja materialidade se produz e reproduz na cultura. Através do seu método descontínuo, Foucault mostra como os gregos clássicos construíram normativas para os corpos sem opor os sexos, pois as inclinações poderiam coexistir na mesma pessoa. Eles não concebiam apetites distintos, mas convenientes a certos momentos da existência: “Os gregos não imaginavam que o homem tivesse uma natureza ‘outra’ para amar um homem”3.

É imperativo questionarmos essas construções sociais que por vezes insistem em criar sentidos de naturalização. Em tempos de onda conservadora, mais sentido faz a crítica à hetorenormatividade compulsória e as noções binárias de gênero e sexualidade ainda imposta aos corpos. Aquilo que alguns conservadores insistem em chamar de “ideologia de gênero” é, pois, uma face perversa do que os mesmos alimentam: uma ideologia. Os/as estudiosos/as de gênero não utilizam esse termo “ideologia”, talvez porque está imbuído de um sentido do convencimento e doutrinação – práticas que se quer abolir e questionar. A heteronormatividade compulsória sim é doutrinadora e excludente. Os mesmos que atacam a abordagem de gênero pretendem impor uma leitura comprometida com tendências conservadoras, retrógradas e autoritárias. O recente processo jurídico, movido por uma discente, que alega ter sido vítima de doutrinação ideológica“, contra a professora Marlene de Fáveri (historiadora e professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Santa Catarina -UDESC), pode ser entendido como mais um trágico capítulo de um processo político persecutório. Episódios como este nos faz ter a certeza de que é preciso falar, pesquisar, escrever e discutir e ampliar nossos conhecimentos sobre os temas ora abordados nesse dossiê.

Os artigos que compõem o presente dossiê, resultam do diálogo em torno de experiências de pesquisa, análises de obras literárias, de diálogos com diferentes manifestações artísticas como o cinema, a música e histórias em quadrinhos, por exemplo e suscitam o debate sobre as diferentes relações das pessoas no que diz respeito ao cuidado e conduta de seus corpos, suas afetividades, seus sentimentos diante de um mundo em que busca a todo momento anestesiar a sensibilidade pulsante desses corpos a um modelo binário a ser seguido.

Em CORPOS PREVENIDOS: A PASTORAL CRISTÃ CATÓLICA NA SOCIEDADE DISCIPLINAR, os autores Cícero Edinaldo dos Santos e Zuleide Fernandes de Queiroz nos brinda com uma análise inspirada pela leitura de Nietzsche4 e Foucault5 estabelecendo uma discussão sobre o poder pastoral e o poder disciplinar, amplamente estudados por esses filósofos e partir de uma genealogia e de uma leitura monumental apresenta as condições históricas em que Pastoral Cristã Católica foi construída.

Já no artigo HQ E CINEMA: UMA LEITURA SOBRE AS LESBIANIDADES EM AZUL É A COR MAIS QUENTE de autoria de Sara Regina de Oliveira Lima a sexualidade é problematizada colocando em xeque os valores e os padrões sexuais heteronormativos a partir de uma discussão fundamentada teoricamente pelos estudos de gênero e teoria queer sobre o conteúdo do HQ6 e do filme Azul É A Cor Mais Quente7 dando visibilidade as experiencias homoafetivas, no caso a lesbianidade e, suscita um debate cada vez mais sensível às diferenças e às possibilidades de aceitação e convivência.

O corpo feminino novamente é problematizado no artigo A MEDICALIZAÇÃO DA SEXUALIDADE FEMININA, UM CRIME SEXUAL OCORRIDO EM CUIABÁ (1924) de Mayara Laet Moreira, que a partir de uma análise de um processo crime de defloramento ocorrido no ano de 1924 busca-se problematizar todo uma prática de intervenção sobre o corpo feminino a partir da medicalização de sua sexualidade8 , dando visibilidade a tensão entre os desejos do corpo sexuado e as normas morais de controle dessa sexualidade, utilizando-se do referencial teórico foucaultiano de biopoder, busca-se apresentar um movimento de racionalização do corpo, no caso o corpo feminino, pelo olhar e pelo saber médico.

Em ESCRITOS DE E PARA MULHERES NO SÉCULO XIX: O CONCEITO DE EMANCIPAÇÃO E A REPRESENTAÇÃO FEMININA NO JORNAL DAS SENHORAS, sob o viés da Nova História Cultural 9, Dayanny Rodrigues se debruça sobre a problemática da emancipação e representação feminina a partir da análise do Jornal das Senhoras, periódico de 1852 e que circulou até 1855, ou seja, trata-se de apresentar algumas formas de liberdades e de representações dessas mulheres que escreviam em tal periódico em uma sociedade ainda presa aos moldes do patriarcalismo, onde a atividade intelectual e científica era reservada a alguns homens da elite.

Diogo Rossi Ambiel Facini no artigo intitulado CORPOS MODERNOS: UMA REFLEXÃO SOBRE CONTROLE E RESISTÊNCIA EM TEMPOS MODERNOS traz um diálogo entre o livro Vigiar e Punir: o nascimento da prisão do filósofo Michel Foucault e o filme clássico de Charles Chaplin Tempos Modernos, em que analisa o processo de disciplinamento do corpo operário e as possíveis formas de resistência.

No artigo GRUPOS ESCOLARES E A AMPLIAÇÃO DA DOCÊNCIA FEMININA EM CUIABÁ-MT DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA a pesquisadora Nailza da Costa Barbosa Gomes, lançando mão de mapas e quadros escolares como fontes documentais entre os anos de 1892 e 1930 busca apresentar o processo de ampliação do espaço dedicado à docência pelas mulheres no âmbito da criação dos Grupos escolares na cidade de Cuiabá a partir de 1910.

Em CORPOS-MOVIMENTOS A CONFIGURAR SEXUALIDADE E GÊNERO EM ACENOS E AFAGOS DE JOÃO GILBERTO NOLL, Ricardo Postal e Paulo Queiroz, nos brindam com uma análise do romance Acenos e Afagos10 do escritor gaúcho João Gilberto Noll e partir das vivências do personagem João Imaculado, nos lançam a uma problemática inerente as questões identitárias contemporâneas acerca do corpo, da sexualidade e do gênero, contribuindo para uma desnaturalização de padrões heteronormativos.

E por fim no artigo intitulado (POLI) GÊNEROS E MÚSICA: ENSAIOS SOBRE LINIKER, AS BAHIAS E A COZINHA MINEIRA E RICO DALASAM de autoria de Mayllon Lyggon de Sousa Oliveira vislumbra-se uma reflexão interessante sobre as expressões musicais desses artistas apresentando subjetividades que fogem aos padrões e que desconstroem por meio da música, conceitos identitários, de gênero e de sexualidade.

Esperamos que o dossiê “Corpo, Gênero e Sexualidade” contribua para o debate historiográfico acerca do tema e leve nossos leitores a reflexões sobre o que foi apresentado. O Conselho Editorial da Revista Outras Fronteiras agradece imensamente a contribuição dos autores, que confiaram seus trabalhos à nossa revista e aos pareceristas ad hoc que trabalharam para que esta edição se materializasse nas páginas seguintes às quais temos o prazer de apresentar.

Notas

2 Cf. CORBIN, A; COURTINE J.; VIGARELLO, G. História do Corpo. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, Vozes, 2008 (3vol).

3 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Trad. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. 9. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 171-172.

4 Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre História. Trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed.PUC-Rio/São Paulo: Loyola, 2005.

5 Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento das prisões. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.

6 Cf. MAROH, J. Azul é a cor mais quente / Julie Maroh; tradução de Marcelo Mori. 1. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

7 Cf. Azul é a Cor Mais Quente. Direção e roteiro: Abdellatif Kechiche. Fotografia: Sofian El Fani. Distribuidora: Imovision,2013, França (Duração:173 min.) Título original: La vie d’Adèle, 2013.

8 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade vol.1: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

9 Sobre uma abordagem geral pela historiografia brasileira, ver: PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural.2ª Edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

10 NOLL, João Gilberto. Acenos e afagos. Rio de Janeiro: Record, 2008.


Organizadores

Ana Maria Marques

Cristiano Antônio dos Reis

Renata Costa – Bolsista FAPEMAT.


Referências desta apresentação

MARQUES, Ana Maria; REIS, Cristiano Antônio dos; COSTA, Renata. Apresentação. Outras Fronteiras. Cuiabá, v. 4, n. 1, p. 1-5, jan./jul.2017. Acessar publicação original [DR]

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