Corpos voláteis, corpos perfeitos: estudos sobre estéticas, pedagogias e políticas do pós-humano – COUTO (C)

COUTO, Edvaldo Souza. Corpos voláteis, corpos perfeitos: estudos sobre estéticas, pedagogias e políticas do pós-humano. Salvador: Edufba, 2012. Resenha de: JÚNIOR, Osvaldo Barreto Oliveira. Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 1, p. 195-200, jan/abr, 2014.

“Corpos voláteis, corpos perfeitos: estudos sobre estéticas, pedagogias e políticas do pós-humano” é um livro do professor universitário Edvaldo Souza Couto (EDUFBA, 2012, 182 páginas) que analisa as mutações por que passa o nosso corpo na contemporaneidade, argumentando que estar-no-mundo nos faz seres mixados, híbridos, pós-humanos. Assim sendo, as políticas, as filosofias e as fisiologias modernas, que legitimaram uma humanidade dividida, dicotômica e racional, dão lugar a políticas do pós-humano, do corpo ciborgue, da hibridização homem-máquina.

O livro reúne sete ensaios publicados pelo autor em revistas científicas, em anais de eventos, ou como capítulos de livros, entre 2000 e 2009. Nesses ensaios, o autor discute a busca incessante das pessoas pela transformação do próprio corpo, apresentando-nos análises consistentes de fatores sociopolíticos, ético-filosóficos, estéticos, técnicos e culturais que promovem a transformação do humano em pós-humano, do corpo natural em corpo ciborgue, ou do psicocorpo em cibercorpo.

Ao apresentar os sete ensaios em um único livro, o autor consegue matizar, numa mesma obra, uma série de problematizações sobre a volatilização e a perfeição dos corpos na contemporaneidade. Dessa forma, apresenta-nos análises sobre as interfaces-corpos, sexualidades e tecnologias digitais – propondo reflexões sobre as mutações corporais advindas das tecnologias de ponta; discute a filosofia ciborgue do corpo, salientando as confusões corporais provenientes da hibridização homem- máquina. Além disso, aborda a cultura do hiperconsumismo e sua proposta de medicalização dos hábitos de vida, denunciando a dopagem constante do corpo, que nos deixa constantemente insatisfeitos com o corpo que temos, para nos vender a ilusão do corpo perfeito.

Nessa perspectiva crítica de análise das subjetividades e dos corpos contemporâneos, o autor constrói um livro que contribui para: – desmitificar a ilusão do corpo sem limites, evidenciando que o padrão de beleza buscado não é capaz de satisfazer os anseios das pessoas, daí a metamorfose constante do corpo; – evidenciar como as inovações tecnológicas atuam sobre o corpo humano, reconfigurando sua arquitetura física, tornando-o sempre camaleônico; e – evidenciar, no universo da arte, as diferentes vertentes da filosofia da técnica contemporânea, assumindo que há, em nosso tempo, uma nova mentalidade sobre a corporalidade, o que nos exige pensar em novas formas de aprendizagem.

As ações acima enumeradas são coerentemente distribuídas nos sete capítulos do livro, assim intitulados: 1. Políticas do pós-humano: interfaces dos corpos, das sexualidades e das tecnologias digitais; 2. O zumbido do híbrido: a filosofia ciborgue do corpo; 3. Corpos dopados: medicalização e vida feliz; 4. Ilusões do corpo sem limites; 5. Corpos interditados: notas sobre anatomias depreciadas; 6. As fronteiras tecnológicas do corpo-imagem; 7. Corpo, arte e educação na era tecnológica. Esses capítulos são precedidos por uma breve apresentação, redigida pelo próprio autor, e por um prefácio, escrito por Vani Moreira Kenski, cujo título – O anseio do corpo no desafio do ser super-homem tecnológico – sintetiza a temática do livro.

Após evidenciar análises sobre as novas políticas que contestam o estatuto da modernidade, o primeiro capítulo nos surpreende, pois apresenta o posicionamento enfático de seu autor sobre as novas subjetividades contemporâneas: “Somos todos pós-humanos, ciborgues e transexuais.” Essas novas políticas apregoam o fim das dicotomias modernas e defendem uma configuração multirreferencial do humano, potencializada por meio das interfaces entre corpos, sexualidades e tecnologias digitais, que redimensionam nossos modos de ser, inovando nossas ações/estratégias para estar-no-mundo. Por tudo isso, o nosso grande temor – o fim do humano – é uma ilusão, “porque nada acabou, mas também nada mais é do mesmo jeito.”  No segundo capítulo, “o zumbido do híbrido” assume a cena, isto é, uma metáfora para ilustrar que vivemos em tempos de hibridizações, por isso, as fronteiras entre o humano e o animal, entre o humano e a máquina, bem como entre o físico e o não físico são rompidas. Isso gera uma confusão de corpos, marcada pela presença da tecnologia no corpo humano, que se torna espaço privilegiado da técnica. Essas hibridizações resultam da busca humana pela superação dos limites do corpo, para lhe atribuir mais poder, agilidade e perfeição. Por conta disso, convivemos com tecnologias invisíveis, incorporadas à nossa pele, aos órgãos e sentidos. Tudo viabilizado por um avanço tecnológico que, cada vez mais, possibilita a criação de máquinas quase imperceptíveis, definidas por nanômetros, uma unidade infimamente pequena, capaz de possibilitar a fusão entre átomos e técnica.

O terceiro capítulo aborda a rapidez do tempo presente, que nos impulsiona a procurar incessantemente pela felicidade fácil – algo aparentemente intangível e inatingível, mas que pode ser possibilitado pela dopagem do corpo. Nesse contexto, as farmácias assumem status de alegorias do viver bem, da satisfação pessoal, conseguida como produto vendível, publicizado nas prateleiras e vitrinas de um estabelecimento comercial. Medicalização e vida feliz são, desse modo, aspectos de uma realidade em que a rapidez e a facilidade das conquistas impingem nossas ações.

Em “Ilusões do corpo sem limites”, capítulo de número quatro, o autor demonstra que o nosso corpo tornou-se mutante, produto de colonização da indústria do hiperconsumo, já que tudo na infraestrutura física do ser humano pode ser modificado, recauchutado, aperfeiçoado, para atender aos desejos de bem-estar de pessoas imersas nos espaços-tempos da cibercultura. Esses desejos são voláteis, moldam-se aos anseios gerados pela publicidade, pela mídia, por uma indústria do consumo que cria e recria, constantemente, “ilusões do corpo perfeito”.

As políticas do corpo ciborgue, do pós-humano, convivendo num espaço propício às interfaces entre corpos, sexualidades e tecnologias digitais instauram certo tipo de culto ao corpo, sem precedentes na história da humanidade. Vive-se, por isso, a cultura do corpo perfeito – belo, esbelto, jovem e musculoso –, incentivada pela busca contínua do prazer como bem maior da existência humana (hedonismo). Essa é a ideia defendida no quinto capítulo, que enfoca aspectos culturais envolvidos na ilusão do corpo perfeito, analisando por que beleza, juventude e vigor são aspectos que, majoritariamente, definem o ideal de corpo difundido na contemporaneidade.

Em “As fronteiras tecnológicas do corpo-imagem”, sexto capítulo do livro, o autor focaliza os efeitos das inovações tecnológicas sobre os corpos humanos. Segundo Couto (2012), tecnologias cada vez mais sofisticadas imprimem aos nossos tempos uma atmosfera do volátil, pois a busca incessante por saciar os desejos da perfeição corporal geram desconforto e insatisfação permanentes. A beleza e a perfeição formal, divulgadas como itens tangíveis e ofertadas numa lista de produtos consumíveis oriundos dos avanços tecnológicos, aparentam ser itens reais, mas são apenas fetiches, gerados pela ilusão do belo, da perfeição, da potencialização dos limites do corpo.

No sétimo e último capítulo do livro, o autor problematiza como as vertentes da filosofia da técnica contemporânea influenciam nos nossos modos de ser, agir e pensar, provocando mutações constantes na arquitetura de nossos corpos, que se tornam híbridos, corpos-imagens de um tempo em que a consciência de si e do mundo perpassa a transfiguração permanente de nossa corporalidade. Por conta disso, a arte incorpora essas percepções e nos apresenta diferentes vertentes que influenciam nas metamorfoses corporais que se originam da mixagem corpo-tecnologia. Para provar essa ideia, o autor analisa as obras de três artistas: Stelarc, Isabelle Choinière e Orlan.

Stelarc, artista australiano, considera que a máquina robotiza o homem; por isso, o novo homem, melhor dizendo, o homem-satélite, deve sempre se integrar às inovações tecnológicas, para manter o seu corpo “dinâmico, polifônico, aperfeiçoado e performático”. A mixagem entre homem e máquina, por meio das tecnologias do pós-biológico, é um meio eficiente para evitar a própria exclusão numa era em que a existência meramente humana não é mais possível. Essa seria a primeira vertente da filosofia da técnica contemporânea, cuja principal premissa é a de que o corpo humano é inferior à máquina, por isso tem que se render às possibilidades de melhoramento advindas da técnica. Os principais representantes dessa vertente são McLuhan (1974), Virilio (1993) e Baudrillard (1992).

Isabelle Choinière, artista canadense, assume a possibilidade de humanização das máquinas, que não tecnicizam o homem, mas que estão a serviço dele, para redimensionar a visibilidade, a sensorialidade e a expressividade do corpo humano, potencializando-as. Nessa vertente, homem e máquina se complementam, fazem parte de um processo contínuo de integração, em que os recursos técnicos estão sempre a serviço da genialidade do homem, que, embora paramentado de tecnologias, não perde a consciência de si, de seus desejos e das suas possibilidades criativas.

Orlan, uma artista francesa, busca a exposição das partes interna e externa do corpo, para defender que o amor do artista pode ser dedicado tanto à aparência da infraestrutrura física humana quanto à sua composição interna, defendendo, assim, um novo romantismo. Nessa vertente, não importam apenas as transformações estéticas que as tecnologias podem proporcionar ao corpo humano, mas a convergência da técnica com os nossos órgãos internos, que trabalham para garantir a nossa sobrevivência. Há, nessa vertente, uma proposta de total integração do homem à tecnologia, por isso, algumas experiências cirúrgicas são mostradas, não com o intuito de chocar, mas para evidenciar uma “previsível naturalidade” na integração homem-máquina.

Essas vertentes não são excludentes, pois colocam em evidência uma das marcas da atual era tecnológica: a diversidade de possibilidades e de variações aceleradas do próprio corpo. Isso nos obriga a pensar em processos educativos valorativos da mudança, das possibilidades do vira- ser, que suscitam sempre novas necessidades e, consequentemente, a atualização constante dos processos para compreendê-las.

Eis o percurso argumentativo construído por Edvaldo Souza Couto em Corpos voláteis, corpos perfeitos: estudos sobre estéticas, pedagogias e políticas do pós-humano. Uma obra que discute os avanços tecnológicos de nosso tempo e os analisa a partir das transformações que provocam em nosso corpo, que não é pano de fundo, mas, o tópico principal da obra; ou seja, o mote para discutir as condições éticas, estéticas, políticas, filosóficas e fisiológicas da nossa existência contemporânea, concebendo-nos como sujeitos híbridos, mutantes, ciborgues, homens-satélite; por isso, em constantes transformações.

A leitura desse livro pode surpreender positivamente o leitor de diversos gostos e interesses epistemológicos, não somente pela perspicácia do autor em perceber e discutir questões tão pertinentes ao nosso tempo, como também pela habilidade com que escreve: os parágrafos são rigorosamente bem-construídos, numa linguagem direta, simples e acessível. Há predominância da coordenação, para evitar parágrafos longos e confusos. Há recorrência a aspectos da linguagem literária – como a metáfora, a alegoria, as comparações, dentre outras – talvez para evidenciar que, na contemporaneidade, as dicotomias estão se esvaindo, por isso, literatura e ciência podem andar juntas, para que o prazer de ler também se estenda a textos com caráter científico-tecnológico, pois o belo não pertence apenas às artes.

Além disso, cumpre-nos ressaltar que, para escrever sobre o corpo e suas constantes mutações na atualidade, Couto (2012) dialoga com autores de diversas áreas – Aristóteles (1973), Baudrillard (1990), Benjamin (1985), Haraway (1995), Le Breton (1999), Santaella (2003), Sibilia (2008), Virilio (1996), dentre outros –, fornecendo-nos vasto amparo teórico para suas colocações. Isso respalda as ideias do autor, inserindo-as dentro das possibilidades do discurso científico de um campo do conhecimento humano. Por essa razão, Corpos voláteis é uma obra que deve ler levada a sério e encarada como bastante relevante não somente por quem deseja pesquisar sobre o corpo humano, mas também por todos os que se interessam por tecnologias, cultura, identidades, filosofias, linguagens, subjetividades, educação e novas aprendizagens.

Osvaldo Barreto Oliveira Júnior  Mestre em Letras. Doutorando em Educação pela UFBA, BA, Brasil. E-mail: [email protected]

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