Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século | Sérgio Carrara

O trabalho de pesquisa desenvolvido por Sérgio Carrara, sob a orientação do prof. Peter Fry, é resultado de dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ. O livro vem suprir a falta de estudos e análises sobre questões bastante complexas e inerentes ao universo da loucura e do crime.

Por opção do autor, o livro segue não só a forma e divisão originais dados à dissertação como também seu texto é o mesmo, pois atualizá-lo seria o mesmo que reescrevê-lo, o que poderia alterar profundamente sua estrutura, além de a obra estar inserida num determinado contexto de meados da década de 1980. Assim, a edição vem enriquecida de um valioso posfácio, onde Carrara elabora um balanço bibliográfico bastante minucioso do que se produziu durante os últimos dez anos acerca das temáticas afins. Nele menciona-se a importância de estudos, alguns já familiares a nós hoje, como o trabalho de Maria Clementina Pereira Cunha (O espelho do mundo: Juquery — a história de um asilo), Ruth Harris (Assassinato e loucura: medicina, leis e sociedade no fin de siècle), Pierre Darmon (Médicos e assassinos na Belle Époque), além dos trabalhos de Roberto Nye (Crime, madness & politics in modern France: the medical concept of national decline) e Daniel Pick (Faces of degeneration: an European disorder), ambos inéditos no Brasil.

O livro de Carrara é dividido em três capítulos. No primeiro, intitulado ‘O objeto da investigação e sua construção’, o autor apresenta seu objeto de pesquisa, descreve como se deu o processo de construção do tema, o contato com a instituição pesquisada e as primeiras impressões da mesma, além das ‘armadilhas’ nas quais caiu ou das quais conseguiu escapar durante a trajetória do trabalho.

No segundo capítulo, ‘Loucos e criminosos’, o objetivo central é tratar das relações da construção da loucura e do crime como enquadramentos patológicos a partir da tese de criminoso nato elaborada pelo psiquiatra italiano Cesare Lombroso, em fins do século XIX, principalmente. A tese da monomania, da degeneração e do criminoso nato e suas contradições inerentes terão imensa importância no corpo médico e jurídico da época, apontando para um novo e necessário diálogo entre estas duas áreas: a medicina e o direito.

No terceiro capítulo, ‘Hércules e o comendador, o caso de um certo Custódio’, trata de como surgiu a necessidade, num determinado momento histórico específico, da construção de uma instituição com as características de um manicômio judiciário. A discussão tem seu início no final do século XIX, 1896 para ser mais exata, quando Custódio Alves Serrão assassina seu tutor, o comendador Belarmino Brasiliense Pessoa de Melo, e vai até o início da década de 1920, quando é criado o Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, o primeiro da América Latina.

O leitor poderá estar se perguntando: mas, afinal, o que levou um antropólogo a se interessar pela criação de uma instituição que tem, como internos, duas categorias tão complexas em nossa sociedade como loucos e criminosos, ao mesmo tempo? Poderíamos tentar responder ao curioso leitor que o interesse de Carrara pelo tema surgiu a partir de uma pesquisa empreendida por Peter Fry no início da década de 1980, mas que tomou forma como objeto seu a partir de uma opção emocional, segundo ele, em detrimento de um trabalho com dados mais etnográficos, como seria esperado de um antropólogo. Explicaremos já o que isso significa.

A pesquisa de Peter Fry objetivava uma análise a respeito da constituição de vários saberes sobre homossexualidade e miscigenação a partir de um estudo de caso. O caso era a condenação de Febrônio Índio do Brasil por ter assassinado vários jovens nos subúrbios do Rio de Janeiro, após atraí-los para lugares ermos e com promessas vãs de que lhes poderia proporcionar grandes oportunidades profissionais e, algumas vezes, deixando claro sua preferência sexual. Sua prisão e posterior julgamento sob o argumento de se tratar de um louco moral e irresponsável por seus atos o levou à internação no Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro.

Em dado momento, Peter Fry soube que Febrônio ainda estava vivo e era interno do Manicômio Judiciário: não teve dúvidas quando surgiu a oportunidade de conhecê-lo. Entretanto, algum tempo depois teve que abandonar a pesquisa, mas deixando como seu assistente nosso autor. A partir daí, temos o início da incursão de Sérgio Carrara, ‘um aprendiz de antropólogo em apuros’, na tentativa de iniciar sozinho a construção de seu objeto de pesquisa: a observação do cotidiano na década de 1980 do Manicômio Judiciário e procurar compreender o porquê de sua criação.

A primeira descoberta de Carrara foi o valioso acervo bibliográfico existente na instituição, constituído por exemplares do que de mais recente e moderno poderia haver acerca das temáticas crime e loucura, a existência de vários exemplares do periódico Archivos do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, símbolo de uma época em que se produzia verdadeiro conhecimento científico segundo Heitor Carrilho (criador do Manicômio Judiciário e seu diretor até sua morte em 1954) e Juliano Moreira (diretor na época da criação do Manicômio Judiciário da Assistência Geral aos Alienados no Brasil e do Hospital Nacional de Alienados), além de outras importantes obras de referência no assunto em diferentes idiomas.

Ele começa a perceber certa contradição existente desde a criação da instituição, pois esta não consegue cumprir seu caráter terapêutico proposto. Assim, o conceito tecido por Erving Goffman de ‘instituição total’ não consegue explicar satisfatoriamente as complexidades existentes num lugar onde se pode reunir características tão peculiares: é um espaço prisional e asilar, penitenciário e hospitalar e para onde se enviam os culpados e inocentes, ao mesmo tempo, pois a prisão recebe os primeiros e o hospício, os inocentes. A partir dessa contradição, Carrara procura compreender como se constrói esse processo de diferentes transgressões realizadas pelos considerados ‘alienados’ (sem controle nem consciência de suas ações) e os considerados ‘normais’ (que possuem consciência e controle de suas ações desviantes).

Carrara procura assim descobrir como a legislação vigente à época (e é bom que se ratifique, não houve grandes alterações nesse sentido) pode levar o sujeito a fazer parte da estatística de pacientes do Manicômio Judiciário. Essas situações são basicamente duas: uma se refere ao condenado preso, e a outra ao acusado no decorrer do processo penal. Assim, pode-se perceber que são duas as posições em que se encontram os psiquiatras e os juízes: o juiz por não ser psiquiatra é obrigado a pedir uma perícia médico-psiquiátrica nos casos onde há dúvidas em relação à existência ou não de loucura no indivíduo envolvido, mas também por ser juiz ele pode recusar ou contestar os resultados desta mesma perícia, integralmente ou em parte.

Outro aspecto observado pelo autor é o que se refere ao tempo de internação, existindo clara diferença entre os prazos legais das penas impostas ao indivíduo ‘sadio’ e ao ‘louco’: no papel de paciente, o delinqüente deveria ser retirado das malhas da lei para se tornar objeto do saber especializado do psiquiatra. No entanto, um internamento com prazo definido por lei é para o autor excelente exemplo da complexidade da interpenetração dos dois saberes: o modelo médico e o jurídico. Assim, sob esta ambigüidade é construído o estatuto médico-legal dos loucos criminosos, deixando antever de alguma forma a confusão desempenhada pelos papéis dos juízes e peritos psiquiatras, podendo-se perceber uma clara relação de concorrência entre saberes e campos científicos de saberes especializados. Carrara traça uma analogia entre o sistema brasileiro e o norte-americano a partir da análise elaborada por Thomas Szasz, na qual são percebidas as mesmas indefinições destes papéis.

As ambigüidades e peculiaridades do Manicômio Judiciário e seu duplo papel de hospital/prisão podem ser percebidas no que se refere ao perfil dos profissionais que lá atuam: os guardas e os terapeutas. Como é de se supor, há problemas no momento de atuação de cada uma destas categorias profissionais, com instantes de tensão entre a tênue linha divisória que separa a autoridade de um ou de outro frente ao paciente.

A auto-identidade inconsciente que o paciente delinqüente tece para si é observada por Carrara no sentido de que todos se vêem como presos e não como doentes, divididos entre ‘doidinhos’ e ‘pepezões’, segundo denominação dos próprios internos. No que se diferencia um grupo do outro? Os primeiros são os classificados como efetivamente doentes e projetam para os demais a imagem de estar num hospital em busca de um tratamento que nunca se sabe quando chegará ao fim. O segundo grupo é caracterizado por não apresentar qualquer distúrbio que pudesse ser caracterizado como da inteligência.

O autor encerra este capítulo apoiando sua hipótese na ambigüidade da instituição e procura encontrar um lugar para os internos que estão, via de regra, colocados numa estranha encruzilhada: inocentes mas tutelados e sem direitos, de um lado; culpados mas sujeitos a certos direitos e deveres, por outro.

Apoiado em Szasz, Carrara sugere que neste espaço paradoxal ocupado pelo Manicômio Judiciário não há ganhadores nem perdedores, mas duas versões: a jurídico-racionalista (que vê o sujeito acusado possuindo deveres e direitos) e a psicológico-determinista (que vê o alienado não como um sujeito, e sim como objeto de suas paixões e desejos descontrolados). O autor propõe-se a pensar como surgiu historicamente a figura do louco criminoso e de como o nascimento dessa nova figura ‘obrigou’ as autoridades médicas e jurídicas a buscar uma instituição com estrutura voltada para esse tipo específico de paciente.

A partir daí, ele expõe suas apreensões metodológicas sempre pensando em como uma instituição assim pôde ter se tornado algo pensável e defensável e compreender quais seriam os condicionantes históricos para seu surgimento: a produção erudita em torno da questão do crime e da loucura e a prática judicial concreta. Para isso abdica de alguns conceitos caros à antropologia, como totalidade, sistema, estrutura ou organização social, trabalhados por autores como Malinovski, que propõe um estudo de totalidade social, algo como se pensar num objeto como uma inserção total à realidade vivida naquela determinada ‘aldeia’. Contrapondo-se a tais conceitos, Carrara apóia-se em Geertz para justificar um estudo ‘nas aldeias’ e não ‘das aldeias’.

Assim, mergulha no que ele classifica de ‘aldeias arquivos’: os mais diferentes tipos de fontes, tais como artigos de periódicos especializados que se ocuparam das questões médico-legais, psiquiátricas, criminais etc., coletadas em diversas instituições, além de bibliografia também especializada e a utilização de vários casos médico-legais entre 1890 e 1920 com processos colididos com a imprensa. Enfim, um exaustivo e original trabalho de pesquisa que reuniu algo em torno de 14 dossiês com documentos oficiais e comentários da imprensa. Ao trabalhar com o segundo ponto a que se refere à discussão mais teórica do assunto, o autor defrontou-se com diversas categorias, como monomania, degeneração e criminalidade nata, que irão perpassar o discurso médico-jurídico do período, e para compreender o uso que o autor faz destas categorias é que passamos agora ao segundo capítulo, intitulado ‘Loucos e criminosos’.

O final do século XIX e o início do XX foi marcado por discussões sistemáticas acerca do crime e dos criminosos. Várias foram as explicações encontradas para a existência de ambos: crescimento arquitetural desordenado das cidades, um grande êxodo rural que causou certo desequilíbrio demográfico ou até mesmo a incapacidade de uma sociedade absorver o expressivo número de mão-de-obra ex-escrava, e agora livre, e, ainda, os estrangeiros imigrantes, no caso brasileiro. Nesse período, temos o surgimento de várias instituições médicas e carcerárias e seus objetivos, de maneira abrangente, seriam a exclusão de alguns tipos que não se enquadrassem em uma nova ordem burguesa de trabalho, de ordem e progresso, onde até mesmo a vadiagem será devidamente inserida num patamar de transgressão, configurando crime passível de inserção no Código Penal.

Essas instituições carcerárias, como já apontou Michel Foucault em Vigiar e punir, têm seu processo de construção acompanhando um dispositivo de disciplinarização dos desviantes em corpos dóceis através de vigilância constante e observação duradoura. No entanto, esse modelo para disciplinar sujeitos tidos como perigosos em corpos dóceis não é privilégio do campo policial, que cria técnicas cada vez mais sofisticadas de controle das perícias médicas e antropométricas e se estenderam por todo o tecido social que necessitava de cuidados para a construção, vigilância e disciplina de uma sociedade saudável. Assim, o autor aponta para a importância do diálogo exercido pela psiquiatria e antropologia criminal, sendo esta última também uma espécie de fornecedora de algumas das bases teóricas necessárias para a doutrina da Escola Positiva de Direito Penal.

Esta escola rejeitava a noção de livre-arbítrio que se encontrava presente no direito clássico e sobre cujas bases foi elaborado o Código Penal de 1890 do Brasil que vigorou até 1940, quando foi promulgado um novo código fortemente influenciado pelo direito positivo. Esta Escola Positiva rejeitava a noção quase metafísica de livre-arbítrio, concentrando sua ação no criminoso e não no crime, não na punição mas em tratar e regenerar o criminoso. O importante era investigar o caráter e a personalidade dos criminosos e uma maneira adequada de tratá-los, tornar seus corpos dóceis e sujeitos disciplinados. Entretanto, este processo não é simples. Pelo contrário, como já apontou Robert Castel, será bastante complexo, pois a psiquiatria ao olhar para fora da sua ‘instituição totalitária’, o hospício, direciona seu olhar para a questão do crime e assim desenvolve uma reflexão bastante significativa para o crime e a loucura, que acompanharão a lógica da criação dos manicômios judiciários.

É nesse contexto que Carrara inicia sua discussão acerca de como era vista a questão do crime e do criminoso no início do século. Vários são os conceitos médicos que irão ratificar o pensamento médico sobre tais categorias, e o autor trabalhará com três delas: o conceito da monomania, a tese da degeneração e a tese dos criminosos natos.

O psiquiatra Pinel (1745-1826) foi quem criou, em princípios do século XIX, a primeira nosologia da loucura, dividindo os alienados irresponsáveis em dementes, idiotas, maníacos e melancólicos. Algum tempo depois, Esquirol (1772-1840), discípulo e continuador de seu trabalho, foi quem teceu a nosografia da monomania, definindo-a como um delírio parcial que afeta uma parte do campo cerebral. Ou seja, o sujeito poderia ter intervalos de lucidez e loucura paralelamente e, dessa forma, como definir com a certeza verdadeiramente científica se determinado sujeito era louco ou não? Partindo da premissa de que todo sujeito poderia guardar intervalos entre a razão e a loucura, o campo médico de intervenção da psiquiatria se torna bastante abrangente. A partir do momento em que o sujeito não apresentasse os sinais de sua loucura visíveis a qualquer olhar, somente um olhar médico, especializado, treinado para tal, seria capaz de identificá-los num sujeito aparentemente normal.

A obra desses dois psiquiatras irá representar, de modo geral, a síntese do pensamento psiquiátrico do século XIX e a noção de ‘loucura racional’ só será questionada a partir da segunda metade do século, quando recebeu um reforço da hereditariedade patológica, da biologia e da antropologia a partir da publicação de um livro. Trata-se de Traté des dégénérescenses, de Morel, publicado em 1857, onde ele busca uma resposta para o diagnóstico da loucura como sendo um conjunto de causas que uniam hereditariedade, ambiente social e declínio racial, ou seja, o louco racional existe mas é produto da hereditariedade mórbida. A tese da degeneração encontrou calorosa recepção junto à comunidade científica especializada e a partir daí os monomaníacos serão classificados como degenerados ou loucos hereditários, a partir de suas características físicas.

Carrara tece valiosos comentários acerca dessa teoria e podemos perceber o quanto ela é importante para o contexto médico do século XIX, onde a loucura e as doenças tornam-se aparentes e visíveis, graças à teoria de Morel. O sujeito traria em si e em sua hereditariedade traços, marcas que o poderiam levar não só à perda da razão mas também ao crime, pois ele teria essa predisposição de ‘tendência precoce para o mal’ a partir das manifestações degenerativas da espécie humana. Segundo Carrara, os criminosos degenerados estavam numa espécie de vazio legal e institucional, logo a distinção entre loucura e sanidade continuava sendo tão tênue quanto indecifrável, não havendo um consenso nem mesmo na área da psiquiatria sobre seu estatuto jurídico. Eram os ‘fronteiriços’ ou ‘semiloucos’ (demi-fou) que transitavam numa linha entre a inocência e a culpa, a responsabilidade e a irresponsabilidade moral, não havendo um terreno sólido que os pudesse amparar.

Segundo o autor, a partir da antropologia criminal que teve na figura de Cesare Lombroso (1835-1909) e seus estudos de craniologia e frenologia, o que se pretendia buscar era a tese do criminoso nato. Esta consistia na ‘descoberta’ de que os criminosos traziam inscritos em seu crânio a tendência para o crime, atentando-se a partir daí mais para o criminoso do que para o crime. Nesse sentido, era uma versão parecida com o que Morel fez com a degeneração: o sujeito já traria em si as marcas da transgressão. Para Lombroso, o crime seria uma espécie de barbárie, de volta aos tempos pré-históricos; o crime não faria parte da natureza humana saudável. Carrara enumera quais seriam esses sinais aparentes do criminoso nato: ausência de pêlos no corpo, comprimento exagerado dos braços, maxilares superdesenvolvidos etc., além da insensibilidade à dor, capacidade de rápida recuperação de ferimentos e, geralmente, apresentando tendências homossexuais.

A partir da enumeração desta série de características para o criminoso nato, Carrara mergulha na discussão de como esta tese angariou simpatizantes na Escola Positiva de Direito Penal, onde se discutia a questão do livre- arbítrio presente no direito clássico, como já falamos. Outra questão que vale ressaltar é de como esta escola irá lutar pela implantação de asilos para a exclusão completa de menores que apresentassem tendências criminosas desde cedo e para a construção de manicômios judiciários e de como se deu esta discussão no âmbito da psiquiatria e do direito. A idéia da existência do criminoso nato, assim como o foi com a degeneração, cria uma série de debates nos campos específicos de cada área. A ambigüidade presente no sujeito que apresenta as mesmas características de degenerado e criminoso nato formulará uma pergunta de difícil resposta: Para onde enviar figuras tão complicadas e obscuras? Procurando responder a esta questão é que Carrara passa ao último capítulo.

Inicia sua resposta a partir da narrativa da fuga de um paciente do Hospício Nacional de Alienados em 1896. Seu nome era Custódio Alves Serrão e foi internado naquela instituição após cometer um assassinato. A vítima era o testamenteiro e tutor de seus irmãos, Belarmino Brasiliense Pessoa de Melo, que gozava de verdadeira confiança dos pais já falecidos. Seu irmão mais velho, Augusto, encontrava-se há cerca de quatro anos internado naquele mesmo hospício, vítima da “mania das perseguições”; a irmã mais nova, Irene, por não ter 18 anos também estava sob sua tutela. O único que gozava de total liberdade era Custódio, que cometeu o assassinato por achar que Belarmino o perseguia com a ameaça de interná-lo no hospício. Custódio queixou-se de que, após a morte do pai, Belarmino o queria “dar por louco” e sua reação foi de conversar e saber o porquê do desejo do tutor, mas que, após uma discussão, “num acesso de loucura” Custódio o matou, disparando o revólver nele, e logo após se entregou ao primeiro praça da polícia que o conduziu às autoridades competentes. A partir daí, Custódio não se desvencilhará de seu destino: será removido para o Hospício Nacional de Alienados e lá ficará internado.

Este caso, embora pareça tolo ou sem um interesse maior para a história foi importante por deflagrar uma discussão que há muito já se queria encaminhar no universo médico da época: o que fazer com os loucos criminosos e criminosos loucos? Onde abrigá-los? Como cuidá-los? Qual a maneira mais adequada de ‘encarcerá-los’ para o bem da sociedade? O caso Custódio é bastante significativo, e não é sem motivo que Carrara o usa para ilustrar como se deu a necessidade da construção do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro em 1921, ou seja, cerca de 25 anos depois.

Custódio Serrão foi internado no Hospício Nacional de Alienados contra a vontade de seu diretor à época, o dr. João Carlos Teixeira Brandão, por achar que estes ‘novos habitantes’, não sendo somente loucos, não deveriam usufruir da estrutura do Hospício Nacional de Alienados, causando, assim, problemas de superlotação. Se eles eram também criminosos, era necessário lhes dar um novo lugar que não haveria de ser o Hospício Nacional, por ser um local de cura para doentes e não abrigo de criminosos. Críticas à parte, o problema da superlotação do hospício era uma questão antiga e que o regime republicano acentuava demasiadamente. O hospício passou a internar muito mais devido, entre outros fatores, à abrangência do diagnóstico amparado na tese da monomania, o que nos leva a acreditar que os casos de superlotação já existissem e continuariam a existir.

Carrara narra detalhadamente a fuga de Custódio Serrão e o porquê: na verdade, Custódio queria ir para uma prisão e ser julgado como criminoso, pois tinha consciência de seu crime e não se achava louco. A partir de sua fuga, amplamente divulgada pela imprensa da época, os debates em torno do que fazer com tais pacientes se tornou uma questão que necessitava de solução urgente. Custódio foi julgado, inocentado e, no entanto, voltou para o hospício,  visto que ficou medicamente comprovado que ele sofria de imbecilidade moral, caráter peculiar aos degenerados e criminosos natos. A rede complexa de relações estava formada: Como e por que internar num hospital para loucos um assassino já absolvido de seu crime? Por que ele não era mandado para uma instituição que pudesse abrigá-lo? Por que foi parar novamente no Hospício Nacional de Alienados contra a vontade de seu diretor?

A todas estas perguntas, Carrara responde afirmando que o que estava em jogo eram as razões de ordem disciplinar, moral e científica, acrescidas de um problema de ordem jurídico-política. Para Teixeira Brandão, acatar o resultado do processo de Custódio e mantê-lo no hospício seria aceitar uma perigosa submissão dos peritos aos juízes, dos asilos aos tribunais. Carrara fala-nos com precisão dos debates travados entre Teixeira Brandão e Nina Rodrigues devido a suas posições antagônicas não só em relação ao caso Custódio, mas também em torno de que área seria mais competente para tratar tão delicada questão: a medicina legal ou a psiquiatria? Como estabelecer sua avaliação de responsabilidade criminal? Existia, de fato, uma diferença fundamental em como tratar o paciente criminoso, pois Teixeira Brandão acreditava que eles deveriam ser responsabilizados e não admitia que recebessem o mesmo estatuto médico-legal dos alienados, que eram inimputáveis. Nina Rodrigues admite que Custódio era um degenerado, mas que cometeu o crime num momento de delírio e, portanto, se tratava de um louco moral, ele possuía a loucura raciocinante.

Carrara não consegue descobrir o paradeiro final de Custódio, mas a partir deste caso temos o início de um debate necessário e a solução, ainda que temporária, foi a criação de uma seção especial dentro do Hospício Nacional de Alienados, assim como já existia seção de crianças, de homens (pensionistas ou não), de mulheres (pensionistas ou não). Esta seção chamou-se ‘Lombroso’, evidentemente em homenagem ao psiquiatra italiano, e tinha como objetivo abrigar os loucos que cometessem crimes e os criminosos que enlouquecessem nas prisões, realçando sua diferença em relação aos demais pacientes.

Com a aprovação do decreto no 1132, de 22 de dezembro de 1903, que reorganiza a Assistência aos Alienados já com Juliano Moreira na direção do Hospício Nacional de Alienados é que podemos perceber, de certa forma, a importância dos debates acerca dos loucos criminosos e criminosos loucos. Nos seus artigos 11 e 12 ele é claro: não se pode manter alienados em cadeias públicas ou entre criminosos e, enquanto os estados não possuírem manicômios judiciários, os alienados delinqüentes e os condenados alienados somente poderão permanecer em asilos públicos, nos pavilhões especialmente a eles reservados. A lei é cumprida em parte, pois somente alguns anos depois é que se inaugura a Seção Lombroso, tendo como primeiro responsável o jovem médico psiquiatra Heitor Pereira Carrilho. Esta seção será a célula inicial do Manicômio Judiciário que se inaugurou em 1921.

Parece que agora tudo se encaixa para o leitor, não? No entanto, as coisas não são tão simples assim: Carrara cita como fundamentais dois fatos que foram a gota d’água para que se cumprisse o decreto de 1903. Estes seriam o assassinato de Clarice Índio do Brasil e uma fuga ocorrida entre os internos da Seção Lombroso em 1920. Daí o porquê de somente tanto tempo depois de aprovado o decreto, cerca de 17 anos, é que se inaugura o Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, cujo primeiro diretor é exatamente o dr. Heitor Carrilho, que ficou à frente de sua direção até a sua morte. Portanto, falar em Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro é falar também de Heitor Carrilho. Os dois, criador e criatura, estão inexoravelmente ligados. Mas não nos alonguemos excessivamente: se o leitor quiser saber mais sobre estes dois fatos muito significativos para a criação do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, faço um convite para que mergulhe na leitura do livro de Sérgio Carrara. Com toda certeza, a submersão será bastante gratificante para entendermos a criação de uma instituição tão peculiar.


Resenhista

Laurinda Rosa Maciel – Historiadora, trabalha na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro/São Paulo: Eduerj; Edusp, 1998. Resenha de: MACIEL, Laurinda Rosa. Um lugar para aprisionar a loucura criminosa. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.6, n.2, jul./out. 1999. Acessar publicação original [DR]

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