Crime e Relações Internacionais | Monções – Revista de Relações Internacionais | 2020

“Crime”. Essa palavra nos remete quase imediatamente a transgressões penais que acontecem dentro dos Estados, nas cidades, nos bairros, nas ruas, naquilo que é entendido como local e doméstico. E, de fato, esse espaço interno foi historicamente o espaço privilegiado para compreender o crime e para definir políticas para o seu combate. Os trabalhos de criminologia, cuja interdisciplinaridade incorporou abordagens sociológicas, antropológicas, jurídicas, entre outras, evoluíram ao longo do século XX por tais parâmetros (LOADER; SPARKS, 2007).

No entanto, as últimas décadas presenciaram novas dinâmicas da criminalidade, da percepção política sobre esse fenômeno e da produção de conhecimento a seu respeito. Nesse novo momento, o internacional ganhou proeminência, tornando-se um espaço social crescentemente relevante. Isso repercutiu na importação de conceitos da área de Relações Internacionais pela Criminologia, como é o caso do “transnacional”, ao mesmo tempo em que estudos de Relações Internacionais passaram a incorporar parâmetros criminológicos nos seus referenciais analíticos (LOADER; PERCY, 2012). Tráfico de drogas, armas e pessoas, contrabando, comércio ilegal de vida selvagem e de bens culturais e lavagem de dinheiro são alguns dos tópicos que passaram a ter o “internacional” como qualificador.

Isso não significa que as atividades ilícitas internacionais sejam uma novidade. Na verdade, elas surgiram com o próprio sistema internacional moderno, o capitalismo global e, principalmente, a evolução e fortalecimento do Estado baseado na soberania política, uma vez que é a lei do Estado que define as zonas de ilegalidades e o crime (GALLANT, 1999, p. 50). A pirataria e o tráfico de escravos são exemplos de dinâmicas criminais internacionais antigas que estiveram conectadas aos principais processos de exploração, dominação e violência que estruturaram nosso mundo atual (ANDREAS; NADELMANN, 2006, p. 23).

Contudo, é inegável que o aumento da importância acadêmica da dimensão internacional do crime ocorreu em paralelo ao aumento de sua importância política desde os anos 1980. Concorreram para isso a evolução e expansão global do tráfico de drogas e dos grupos que o operam, com destaque para aqueles localizados na América Latina, e a cruzada internacional de guerra às drogas levada a cabo pelos Estados Unidos, inclusive com ações militares e de aplicação extraterritorial da Lei e da justiça. Os anos 1990, por sua vez, presenciam o adensamento de tal preocupação com o fim da Guerra Fria e a incorporação do crime, designado por vezes como “O novo império do Mal”, entre as novas ameaças a esta emergente ordem internacional (C.f. ANDREAS; NADELMANN, 2006, p. 158). A percepção prevalecente era de que o crime se tornara um assunto de segurança internacional, impulsionado pelas inovações tecnológicas e pelas variadas dinâmicas da globalização e integração regional, colocando em risco as democracias ocidentais, os direitos humanos e o desenvolvimento econômico e social. O resultado institucional dessas preocupações foi a criação da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional no ano 2000. Também nessa época surgem as novas classificações do crime, que passaram a ser utilizadas por organizações internacionais e não governamentais, pela mídia, por governos e acadêmicos: crime global, crime internacional organizado, redes criminosas internacionais, crime internacional, crime multinacional, crime transnacional, fenômeno de zonas gris e crime organizado transnacional (SERRANO, 2005, p. 28).

Após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 aos Estados Unidos, as preocupações com o crime transnacional se articularam à guerra global ao terror. O nexo crime-terrorismo mobilizou, a partir daí, uma importante agenda política e acadêmica em diferentes partes do mundo, gerando produções direcionadas à compreensão dessas articulações, sua amplitude e consequências em termos de segurança (e.g. SHELLEY, 2007).

Um dos resultados desse cenário em evolução ao longo das últimas décadas foi a maior atenção que a área de Relações Internacionais passou a dar ao crime enquanto objeto de estudo. E isso impôs à disciplina alguns importantes tensionamentos, dos quais destacamos três. O primeiro deles refere-se ao lugar privilegiado que a guerra ocupa como fenômeno de análise. Contextos de paz formal com altos índices de violência criminal expandem-se pelo mundo, fragilizam sociedades e tornam-se cada vez mais importantes, demandando novos referenciais teóricos e metodológicos que incorporem o papel de processos e atores transnacionais. Nessa mesma linha, resulta cada vez mais relevante compreender como os “ilegalismos transnacionais” mobilizam múltiplas formas de violência (estatais, privadas e ilícitas), cujas lógicas e práticas merecem ser pensadas em relação à clássica noção de monopólio do uso legítimo da violência pelo Estado soberano.

O segundo tensionamento diz respeito à crescente indistinção entre a clássica separação entre militares e policiais como, respectivamente, instrumentos do Estado no âmbito internacional para lutar a guerra e derrotar o inimigo e instrumentos do Estado no âmbito doméstico para promover a ordem e conter as transgressões criminais de seus cidadãos. Com o novo lugar que o crime transnacional assumiu nas agendas políticas, tais instrumentos adquirem novos formatos e funções. Os militares atuam cada vez mais em âmbito doméstico para combater as manifestações criminosas de diferentes grupos, enquanto a polícia atua cada vez mais transnacionalmente para promover a aplicação da lei em âmbito regional e internacional (ANDREAS; PRICE, 2001). A polícia torna-se, assim, cada vez mais um objeto de análise da área de Relações Internacionais.

O terceiro tensionamento refere-se ao papel central que cumpre a reflexividade para a compreensão das relações de poder e conhecimento entre o campo das Relações Internacionais e os policymakers e profissionais que lidam com os assuntos de segurança vinculados ao crime (BIGO, 2016). Como a incorporação da temática do crime transnacional às Relações Internacionais evoluiu pari passu com o aumento da relevância política do tema para os Estados, particularmente para os Estados Unidos, um imperativo analítico e ético de independência intelectual torna-se cada vez mais relevante. Compreender os argumentos oficiais do “combate ao crime” não deve significar aceitá-los como explicações sobre os processos sociais em análise. É, assim, fundamental identificar, por exemplo, os diferentes interesses em disputa nas redefinições de fronteiras entre crime e guerra, polícia e militar, interno e externo. Da mesma forma, esse olhar sobre o fenômeno da “lei e ordem” em âmbito internacional sugere à disciplina a necessidade de se aprofundar em temas transversais relacionados às transgressões e ao controle social, como racismo, gênero, capitalismo, encarceramento, desigualdade, punição, sistema de justiça etc.

Os “porquês” ganham enorme relevância em tais pesquisas e tornam-se desafios analíticos, que obrigam os pesquisadores do campo a elaborarem novas teorias, metodologias, abordagens e inovações no tratamento das fontes. Isso pressupõe o reconhecimento de que os conceitos não podem ser separados do contexto nos quais são criados, uma vez que são resultados de forças institucionais, ideias e capacidades materiais que compõem determinado espaço em um momento específico (COX, 1986). Por outro lado, permite ao pesquisador descortinar os parâmetros pelos quais o “problema” e a “resposta” às práticas ilícitas são definidos e com quais objetivos. Em outras palavras, resulta possível compreender “como ‘o problema’ é narrado e como isso respectivamente seleciona estratégias de controle e seus instrumentos operacionais concomitantes” (EDWARDS; GILL, 2002, p. 247).

Em busca de visibilidade e legitimidade

Na virada dos anos 1990 para o novo século, não era simples o trabalho de quem pretendia pesquisar “crimes” em sua expressão internacional. Em um momento no qual a área das Relações Internacionais passava por grande crescimento, com a abertura de dezenas de cursos de graduação e a abertura e/ou consolidação de programas de pós-graduação em importantes universidades, a produção nacional sobre atividades ilícitas e Relações Internacionais era praticamente nula. Uma única exceção destacava-se: a publicação, em 1997, do artigo “O Brasil no contexto do narcotráfico internacional”, escrito pelos professores do Instituto de Relações Internacionais (IRel) da Universidade de Brasília, Argemiro Procópio e Alcides Costa Vaz. Estampando as páginas da Revista Brasileira de Política Internacional, o artigo foi o primeiro a ser produzido por pesquisadores brasileiros da área das Relações Internacionais e expressava resultados finais de pesquisa financiada pelo CNPq e liderada por Procópio (PROCÓPIO; VAZ, 1997).

Apesar de apresentar poucas novidades para um estudioso da questão do narcotráfico, e de fiar-se em dados de apreensões de drogas ilícitas oferecidos pela Polícia Federal brasileira sem uma detida problematização dessa fonte, o artigo é pioneiro em considerar que o tráfico internacional de drogas ilegais era um assunto a ser incorporado pela academia das Relações Internacionais. Esse papel não é pequeno, pois, até o momento, a questão do narcotráfico aparecia nas prateleiras de livrarias apenas nas seções de Direito Penal (em geral, livros comentando a então vigente Lei de Tóxicos de 1976 e suas emendas) ou no campo do jornalismo investigativo (AMORIM, 1994; ARBEX Jr., 1996). Enquanto na Europa, nos Estados Unidos e na própria América Latina, a preocupação com o narcotráfico e com os programas de combate a ele, inspirados pela perspectiva estadunidense da “guerra às drogas” já ocupava sociólogos/as, cientistas políticos, antropólogos/as e historiadores/as que consideravam a dimensão transnacional do tráfico de drogas como uma dimensão indispensável para o estudo desse complexo fenômeno (SOMOZA, 1990; DEL OLMO, 1990; ORMAZÁBAL, 1999; McALLISTER, 2000; LABROUSSE, 1993; LABROUSSE; KOUTOUZIS, 1996).

Autores que se tornariam referência para o estudo dos ilegalismos no Brasil e suas conexões internacionais, como o sociólogo Michel Misse, estavam começando suas investigações: sua tese de doutorado, Malandros, Marginais, Vagabundos & a acumulação social da violência no Rio de Janeiro foi defendida no então Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), em 1999. Assim como avançavam os estudos no campo sobre violência, criminalidade e segurança pública (KANT DE LIMA, MISSE E MIRANDA, 2000) e do crime (historiadores, antropólogos, cientistas políticos e juristas), esses autores formaram uma primeira geração de empreitadas analíticas sobre a temática dos ilegalismos desde uma perspectiva das ciências humanas (VELHO, 1977; ZALUAR, 1994; CARNEIRO, 1994; McRAE, 1992; BATISTA, 1990; PASSETTI, 1991; TELLES, 2001). Nenhum/a deles, no entanto, provinha do campo das Relações Internacionais – naquela época, recente no Brasil. Uma pesquisa mais aprofundada sobre os primeiros trabalhos publicados na perspectiva da dimensão transnacional/internacional do “crime” é um esforço que ainda precisa ser feito, já que o Portal de Teses e Dissertações da Capes ou o Portal Domínio Público do Governo Federal não apresenta a totalidade dos trabalhos acadêmicos defendidos em programas de pós-graduação brasileira. Uma busca no portal do indexador Scielo Brasil indica que, após o mencionado artigo de Procópio e Vaz, o seguinte registro é de 2002, com o artigo “A infindável guerra americana: Brasil, EUA e o narcotráfico no continente”, de autoria de Thiago Rodrigues, um dos editores deste dossiê (RODRIGUES, 2002).

Desde 2000, novos trabalhos acadêmicos passaram a tomar questões relacionadas aos ilegalismos em escala transnacional, dentre os quais se encontram aqueles produzidos pelos organizadores desse dossiê (CAMPOS E KOERNER, 2011; RODRIGUES, 2012; VIANA; VIGGIANO, 2013; PEREIRA, 2015). No entanto, o tema continua enfrentando problemas de legitimidade que se aproxima do que Steve Smith colocou como o desafio a qualquer pesquisa no campo das Relações Internacionais que não tenha o Estado e as relações entre Estados como seu objeto. Comentando sobre a disciplina das Relações Internacionais, Smith afirma que “those approaches that do not treat inter-state war as the core problem to be explained by the discipline, run the risk of their work being deemed ‘irrelevant’ or ‘not IR’” (2000: 358). Sendo a questão dos ilegalismos ou da “criminalidade” ligada à ação de indivíduos ou de grupos não-estatais, de expressão local, nacional ou transnacional, a ausência do Estado como único ator relevante nos estudos sobre criminalidade abriu um grande flanco para que as perspectivas teórico-metodológicas mais tradicionais nas Relações Internacionais – notadamente, as escolas Realista e Liberal – tendessem a ignorar ou a minimizar a relevância do estudo do par “crime/relações internacionais” na academia.

No Brasil, país cujos começos da área acadêmica das Relações Internacionais deram-se tardiamente em comparação aos países centrais, e mesmo a outros latino-americanos como Argentina, México, Chile e Colômbia, a abertura dos primeiros programas de pós-graduação e cursos de graduação – com a exceção de alguns poucos, como o Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio – foi moldada por acadêmicos provenientes da Ciência Política, da História, da Economia e do Direito que traziam como referências teóricas no campo das Relações Internacionais os debates clássicos entre liberais e realistas, neoliberais e neorrealistas. Dessa forma, o estudo da dimensão ilegal das relações internacionais teve seus começos marcados pela busca de referenciais teórico-metodológicos na Sociologia Política ou na Filosofia Política até que autores e autoras de correntes contemporâneas do pensamento teórico internacionalista, como os Pós-Estruturalistas, Pós-Coloniais ou Feministas, passassem a ser mais conhecidos e difundidos entre os estudantes brasileiros/as.

A baixa incidência de temáticas relacionadas a pesquisas sobre atividades ilícitas no espaço internacional fica aparente quando se faz um breve levantamento nos anais dos encontros nacionais da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI) de 2007, data do primeiro evento, a 2019, o mais recente (com exceção do 2º Encontro, realizado em 2009, cujos anais não estão disponíveis no site da ABRI). Levamos em consideração: 1) as palavras-chave “crime”, “narcotráfico”, “tráfico”, “ilícito”, “criminalidade” e “drogas” (a escolha por “narcotráfico” e “tráfico” não é redundante, pois “tráfico” costuma ser usado, por exemplo, para designar o mercado ilegal transnacional de armas e pessoas, enquanto “drogas” pode estar associado às expressões “guerra às drogas” – como sinônimo de “combate ao narcotráfico” – ou “política de drogas”); 2) as palavras-chave que ocorrem nos títulos das apresentações e/ou comunicações, de modo a evitar sobrecontagem, pois podem ocorrer repetidas vezes no resumo da comunicação. Sendo assim, chegamos aos seguintes números:

Encontros da ABRI/

palavras-chave

2007 2011 2013 2015 2017 2019
crime 0 0 1 0 2 5
narcotráfico 1 2 1 0 1 0
tráfico 1 1 1 0 0 1
drogas 1 0 2 1 1 5
ilícito 1 0 0 0 3 0
criminalidade 0 0 0 1 1 1 0 0 1 1 1

 

Em eventos concorridos e com dezenas de mesas e simpósios temáticos, contando com centenas de participantes, nota-se que a temática do “crime nas relações internacionais” tem aparecido pouco naquele que é o mais importante evento brasileiro do campo. Um fato a ser destacado é que, dentre os trabalhos apresentados em tais eventos, encontram-se quatro com a palavra “crime” no título apresentados, sozinhos ou em coautoria, por organizadores deste dossiê (dois por Manuela Trindade e dois por Paulo Pereira), um com “narcotráfico” e outro com “tráfico” no título, ambos em coautoria com outro organizador deste dossiê (Thiago Rodrigues). A presença de três dos quatro organizadores deste dossiê nos programas dos Encontros da ABRI indica que suas inserções na pesquisa sobre “crime e relações internacionais” não são recentes, mas, ao mesmo tempo, explicita o limitado número de pesquisadores/as que se dedica ao assunto numa área muito dinâmica e com grande quantidade de acadêmicos/as, mestrandos/as e doutorados/as. Não obstante, o aumento recente dos trabalhos relacionados a debates sobre “crime” e “drogas” (5 ocorrências cada) pode ser pequeno no universo dos trabalhos apresentados, mas significa uma tendência expressiva de crescimento para essa subárea.

O presente dossiê, levado ao público pela Monções, procura contribuir para a difusão de pesquisas interessadas na dimensão transnacional/internacional das atividades ilegais, considerando-a um objeto não apenas legítimo para ser estudado e problematizado pelas Relações Internacionais, como um dado da nossa realidade como brasileiros/as, latino-americanos/as, e cidadãos/ãs do Sul Global. Os problemas da(s) nossa(as) realidade(s) não podem, acreditamos nós, ser resumidos às preocupações e temáticas elaboradas nos países centrais, porque os desafios não são os mesmos e o papel social do/a internacionalista como analista e agente em sua realidade imediata, consequentemente, também não o é. Pela reunião de artigos de autores brasileiros/as e estrangeiros/as, o dossiê coloca-se como um libelo em defesa da diversidade teórico-metodológica e do duplo “crime/relações internacionais” como um tema necessário de ser estudado, debatido e difundido na academia brasileira das Relações Internacionais.

Organização do dossiê

Um caleidoscópio sobre o crime. Os artigos que compõem esta edição especial percorrem diferentes fronteiras tangenciadas e confundidas quando tratamos do fenômeno do crime: legal-ilegal, doméstico-internacional, civil-militar, público-privado, crime-guerra. Ao fazê-lo, parte dessas contribuições ocupa-se de explorar a cumplicidade de conceitos e teorizações que circulam na disciplina de Relações Internacionais e Ciências Sociais com o apagamento de desigualdades na organização da violência e com a normalização da guerra como mecanismo regulador das relações sociais. Outro conjunto de artigos propõe abordagens alternativas sobre a produção de conhecimento a respeito do crime, problematizando aquilo que já se toma como dado no campo disciplinar, ou mesmo familiarizando a área de estudos com aquilo que lhe é ou lhe parece estranho. Nesse percurso, todas as contribuições são marcadas pelo olhar transdisciplinar, seja porque seus autores vêm de áreas diversas (História, Sociologia, Direito e Relações Internacionais), seja porque mobilizam, como matéria-prima de seus argumentos, trabalhos de outras disciplinas. É nesse sentido que oferecemos aos leitores um caleidoscópio, no qual a combinação das peças que formam o dossiê estimula engajamentos com novos frontes, a partir dos quais podemos explorar o fenômeno do crime e a construção deste como objeto de estudo – na disciplina de Relações Internacionais e para além dela.

Com esse espírito, esta edição especial é aberta por um jogo de artigos que se debruçam criticamente sobre o teorizar o crime. Buscando identificar os termos com que este tem sido reivindicado como um objeto elegível no campo das Relações Internacionais, Manuela Trindade Viana e Ana Clara Telles de Souza mapeiam as principais linhagens de produção de conhecimento nessa seara. As autoras revelam que tais práticas de objetificação encontram no “cruzar a fronteira” sua principal condição de possibilidade e, mobilizando perspectivas críticas sobre a fronteira guerra-crime e tecnocracias transnacionais, confrontam o apagamento daquilo que o aparato penal faz “dentro do Estado” como algo que não diz respeito à disciplina. Com isso, encorajam o engajamento com estudos críticos de criminologia como janela para interpretar processos de criminalização e suas conexões com práticas de inclusão/exclusão na política global.

Paulo Pereira e Leonardo Jordão propõem um mergulho na textura do caso conhecido como “helicoca” para expor como este só pode ser compreendido a partir dos fluxos transnacionais de cocaína. Mobilizando a estratégia metodológica de assemblages, o artigo oferece tratamento teórico à conceitualização do “transnacional” e revela como esta borra os termos que dão sustentação a dicotomias como doméstico-internacional, lícito-ilícito e público-privado. Nesse processo, os autores realçam a insuficiência analítica de uma abordagem calcada no “crime organizado transnacional” para compreender casos como o do “helicoca”, pois perde de vista a miríade de agentes públicos e privados, legais e ilegais, que compõem a trama desses fluxos transnacionais.

Por sua vez, Marina Vitelli, Suzeley Kalil Mathias e Helena Salim Castro empreendem uma análise crítica acerca de um dos conceitos-chave com que o crime tem sido articulado como objeto de estudo nas Relações Internacionais: “securitização”. Para as autoras, ainda que este tenha sido avançado a partir de uma proposta de ampliação da agenda de segurança, a mobilização do conceito de securitização para o estudo do crime na disciplina tem sido marcada tanto pela centralidade do Estado e do profissional militar como pelo vocabulário da segurança nacional. À luz de contribuições da Ciência Política e da Sociologia, o trabalho problematiza a fronteira legal-ilegal que marca grande parte dos estudos sobre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e do Comando Vermelho (CV) e argumenta que práticas de ordenamento são tecidas com o crime, e não contra o crime – principalmente em países com quadros deficitários de democracia e desenvolvimento.

Um novo jogo de artigos desfia-se a partir de reflexões investidas sobre a fronteira civil-militar. Esse é o caso do artigo assinado por Mariana Cardoso dos Santos Ribeiro, que analisa a cooperação entre o aparato policial-militar instituído na Espanha sob Francisco Franco e o regime de Getúlio Vargas entre 1936 e 1939, com o objetivo de perseguir, no Brasil, opositores políticos enquadrados como Rojos. Por meio de uma análise das correspondências trocadas entre ex-funcionários do Ministério de Estado espanhol no Brasil e de registros policiais de Rojos em São Paulo, a autora argumenta que tal colaboração foi condição para que a ditadura franquista se estendesse no tempo e, ademais, chama atenção para a impossibilidade de identificarmos contornos precisos para o aparato repressivo espanhol em termos espaciais e funcionais.

Desenhando um arco analítico que orbita em torno dos binômios civil-militar e público-privado, Gabriel Petrarca e Cléber da Silva Lopes discutem as transformações na responsabilidade pela segurança marítima de embarcações civis. Mais precisamente, o artigo explora as circunstâncias dentro das quais o centro gravitacional desse debate passou de uma inegociável defesa da responsabilidade militar-estatal para uma crescente flexibilização das regras, de modo a permitir que empresas militares e de segurança privada desempenhassem um papel cada vez mais central nessa seara.

Atenta à participação de empresas de segurança privada em uma fatia significativa do aumento de circulação de armas, Daniele Dionísio discute a regulação do porte de armas no Brasil a partir de um diálogo com a literatura de modelos de políticas públicas. Fechando esse conjunto de artigos, a autora argumenta que a forma com que se produz dados sobre essa matéria no país constitui um dos principais obstáculos à regulação da circulação de armas segundo uma abordagem integrada em termos de atores (de porte), categorias de uso e espaços de circulação.

O último bloco de textos que forma este dossiê explora a fronteira guerra-crime. Nessa direção, Priscila Villela discute como a guerra às drogas emerge na agenda política internacional do Brasil nos anos 1990, a partir da ideia de “ameaça” como discurso central à segurança nacional. Em conexão com as políticas proibicionistas dos anos 1990, impulsionadas pela influência decisiva dos Estados Unidos nesse processo de indução da política externa, o Brasil permaneceria na esteira proibicionista gerada com sua lei anterior de drogas, promulgada em 1976. No entanto, segundo a autora, é a partir dos anos 1990 que se intensifica a apresentação do tráfico de drogas como ameaça à segurança internacional, e não apenas como um problema de ordem criminal interno.

Nessa linha, Thaiane Caldas Mendonça explora as políticas de exceção na interseção nebulosa entre o interno e o externo, o nacional e o internacional, o crime e a guerra – estratégia esta que, em conjunto, tem sido utilizada como justificativa para práticas “excepcionais” de segurança relacionadas à ideia de pacificação. Para a autora, tais pares e nexos – segurança e desenvolvimento – engendram práticas de pacificação relacionadas às políticas de segurança atuais, principalmente àquelas de “combate” ao crime organizado.

Por sua vez, Luísa Lobato e Victória Santos contrastam duas lógicas distintas de prevenção: o policiamento preditivo e a gestão de crises internacionais. Nos dois casos analisados, a categoria “crime” é tornada legível enquanto problema, possibilitando essas duas formas distintas de intervenção, a partir da realocação da presença policial, no caso do policiamento preditivo; e da difusão de modelos de boa governança, no caso da gestão de crises internacionais.

Luciana Costa revisa a literatura sobre políticas de drogas, pretendendo debater como a guerra às drogas está revolvida por constructos de ódio e medo que lhe são próprios. A autora chama atenção para as práticas de criminalização de pessoas negras e pobres que são constitutivas da guerra às drogas e mostra como isso impacta específica e diretamente o encarceramento das mulheres brasileiras. O trabalho conclui que os delitos de drogas têm servido como legitimadores da manutenção de uma ordem de extermínio e encarceramento.

Finalizamos este dossiê trazendo uma análise sobre fronteiras. Marília Pimenta e Luis Fernando Trejos Rosero analisam o marco de segurança na subregião amazônica, localizada na parte Sul da fronteira entre Colômbia e Venezuela, baseando-se em uma análise da presença de atores armados não estatais nos departamentos de Arauca, Vichada e Guainía. O artigo nos leva a refletir sobre os efeitos da presença estatal nessa região, assim como sobre os mecanismos informais de governança gerados por tais grupos. Para os autores, os grupos dissidentes formados após os Acordos de Paz aumentaram na região, gerando ainda mais instabilidade, disputas e insegurança para as populações locais.

Legal-ilegal, doméstico-internacional, civil-militar, público-privado, crime-guerra… Seja em um artigo de forma isolada, ou na combinação de contribuições, o trânsito por diferentes fronteiras neste dossiê oferece novos ângulos a partir dos quais podemos pensar o fenômeno do crime, os efeitos de práticas de criminalização e a própria construção do crime como um objeto disciplinar e disciplinado. Nesse sentido, esperamos que o leitor aprecie o percurso pelo caleidoscópio deste dossiê da Monções.

Referências

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Organizadores

Manuela Trindade Viana – Professora do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio), Rio de Janeiro-RJ, Brasil ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2243-358X E-mail: [email protected]

Marcelo da Silveira Campos – Professor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD), Dourados-MS, Brasil ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5242-7095 E-mail: [email protected]

Paulo José dos Reis Pereira – Professor do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo- SP, Brasil ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8334-9448 E-mail: [email protected]

Thiago Rodrigues – Professor do Departamento de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro-RJ, Brasil ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0962-0391 E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

VIANA, Manuela Trindade; CAMPOS, Marcelo da Silveira; PEREIRA, Paulo José dos Reis; RODRIGUES, Thiago. Criminalidade transnacional: olhares para além da disciplina de relações internacionais. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.9, n.17, p.1-14, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

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