Cultura e Poder: O golpe de 1964 – 40 anos depois (I) | Projeto História | 2004

RC Destaque post 2 12 Golpe de 1964

Transcorridos quarenta anos do golpe militar de 1964, vários eventos significativos aconteceram nas universidades, no Brasil e nos Estados Unidos, nos centros culturais, privados e públicos, contando com a participação de muitos pesquisadores. Artigos foram publicados em jornais e revistas da grande imprensa. O público leitor em geral e acadêmico em particular teve a seu alcance biografias, narrativas de experiências pessoais, livros analisando o golpe e o significado histórico e político do governo militar. Todos esses eventos marcaram, em 2004, os quarenta anos da instauração do regime militar em nosso país. Na ocasião, várias linhas de pesquisa, várias interpretações do governo de João Goulart e do governo militar foram dadas a conhecer ao público.

Uma das posições que mais se difundiu foi a de que aqueles acontecimentos trágicos, em especial toda a atuação dos dez anos de governos, de Vargas a Jango, eram negadores da democracia. Como uma diátese, o grosso dessa interpretação contaminou todo o corpo do pensamento acadêmico brasileiro, em especial o paulista.

Walter Benjamin, em seu combate às concepções estéticas do fascismo, levantava a questão de que a crítica de esquerda não poderia ser apropriada pelos inimigos a quem precisamente esta crítica estava voltada. A estigmatizada “república sindicalista”, na visão conservadora, era sinônimo de caos, anarquia, instabilidade das instituições, subversão, ausência de hierarquia, esquerdismo, corrupção, indisciplina, amoralidade. Mais ainda: a “República sindicalista” seria a antecâmara para a entrada do comunismo em nosso país.

É oportuno assinalar alguns pontos extremamente problemáticos da “teoria do populismo”, que, por sua vez, pertence a um quadro teórico da “escola sociológica paulista”, a saber: as teorias da dependência, marginalidade, autoritarismo. Este construto subjetivo, para além de suas insuficiências teóricas, acarretou conseqüências práticas e desarmou a própria construção de uma real alternativa de esquerda para os problemas estruturais do país.

Assim, a partir da instauração do regime de 1964, os teóricos da “analítica paulista” passaram a profetizar o “colapso do populismo” (ou o colapso da teoria?), identificado mais a um “estilo de política”, que se esgotara ao tempo em que os trabalhadores, ao se configurarem como classe, formaram seus próprios interesses específicos e a burguesia percebera que não seria mais possível “enganar” continuamente esta categoria social da cidade e do campo.

Para os ideólogos da autocracia burguesa, a crise geral da sociedade brasileira era atribuída à “algaravia populista”. As promessas inatingíveis da demagogia populista acabaram por conduzir a sociedade brasileira a um beco sem saída. Salários desmedidos em choque com a real produtividade da economia, escalada desenfreada da inflação, a estagnação da economia, a desobediência civil eram os efeitos de toda “política populista”. Com isso, os ideólogos orgânicos tentavam, ao sabor dos próprios acontecimentos, descaracterizar totalmente os projetos sociais em luta, as reformas democráticas assentadas numa plataforma econômica popular e nacional, que o trabalhismo inscrevia na realidade nacional, propugnando a democratização da propriedade da terra, a reforma educacional, a reforma política, a integração das massas no mercado interno, no que certamente se chocava com o capital estrangeiro e as várias frações monopolistas associadas.

O modelo teórico, na verdade, não é neutro, pois tem conteúdo ideológico delimitado: não permite mais as manipulações das massas, mediadas pela pequena-burguesia, por uma “liderança populista”, como no getulismo de massas. Há, segundo este arquétipo, uma correspondência entre esse atraso nas estruturas sociais e as formas políticas, cuja conseqüência vai estar na ausência de canais políticos que possam expressar os anseios crescentes das massas populares. Como disse um autor: “A inexistência destes canais coloca as massas mobilizadas em disponibilidade para a manipulação das elites incongruentes, comprometendo-se a possibilidade de uma ação racional de meios e fins no político. O populismo seria a tradução política do atraso social”.

Neste volumoso número da Revista Projeto História, que ora se apresenta, disposta em dois tomos, encontrar-se-á esta polêmica, evidentemente posta em aberto, como sói acontecer na história de sua trajetória temática e plural, mas com a explicitação rigorosa de novos conteúdos para uma revisitação desse danoso tempo para as multidões. Com a justa homenagem ao cientista político e historiador René Armand Dreifuss, autor de obra seminal intitulada 1964: a conquista do Estado, inauguramos o III Encontro de Estudos de Realidade Nacional, que o Programa de Estudos Pós-Graduados em História estimulou e organizou em fins de março e princípios de abril, de 2004.

Coincidentemente, 2004 foi também o ano de desaparecimento de dois dos grandes vultos do nacionalismo. Tratando-se de Leonel de Moura Brizola, falecido a 21 de junho, e Celso Furtado, a 20 de novembro. Um, o político “empírico”, outro, o intelectual formador.

Este número da Projeto História também congrega inúmeras pesquisas de nosso mestrado e doutorado, as que estão em vias de se completar e aquelas já defendidas em nosso programa, abrigando contribuições de outras instituições e de fora do nosso estado. Podemos sumarizar, para não nos alongarmos em demasia, algumas delas, como a questão do “populismo” na práxis de Roberto de Oliveira Campos, a do terrorismo oficial e da rede de estruturas e equipamentos da repressão; a questão da anistia da perspectiva dos jogos de afetos, dos direitos humanos e das associações da sociedade civil que com sua luta criativa souberam penetrar no coração do regime. O papel da Igreja católica, abrigo e eficácia na denúncia do arbítrio e da barbárie, dos massacres transformados em “banalizações do mal”. No plano da cultura, importantes temas se apresentam, com destaque para resistência da arquitetura paulista, aqui representada por seu artífice principal, o arquiteto João B. Vilanova Artigas. Questão complexa e de difícil tratamento, mas vital para a compreensão das ditaduras latino-americanas, alinham-se pesquisas sobre a Operação Condor.

Por esta engrenagem monstruosa e seus resultados, é legítimo perguntar-se sobre a responsabilidade da guerra suja. Os crimes cometidos são, independentemente dos espaços nacionais onde foram praticados, crimes lesa humanidade. Assim como ocorreu com as Mães da Praça de Maio, em Buenos Aires, que mantêm a memória sempre viva, não para repor perdas do passado, mas porque representam a continuidade da luta pela “memória do futuro”; em nosso país, as responsabilidades pelos desaparecidos, crimes, seqüestros, torturas ficaram novamente impunes. A impunidade é a nossa marca registrada. Reconhece-se que houve abusos e atos arbitrários; no entanto, extinta a máquina, com ela desapareceram os agentes da repressão, e, com eles, os seus atos, mandantes e inspiradores.

No Brasil, se o oficialato atribuiu a quebra da hierarquia e da disciplina militar ao próprio presidente João Goulart, como ato irresponsável e ignominioso, passível de punição, a mesma questão se colocaria aos membros da ditadura. No caso de suposta omissão aos métodos terroristas dos torturadores, “o chefe é sempre responsável e, se sabe de irregularidades e não toma providências, é conivente. Mais do que isso: se não sabe o que se passa em sua unidade é também conivente por omissão e falta de responsabilidade”. Celina D’Araujo observou com justeza que, mesmo na argumentação fictícia da não-existência de tortura, do desconhecimento das altas patentes, nos depoimentos dos militares há o respingo do sangramento e dos ecos dos gritos quando confirmavam por via indireta que numa guerra “nem tudo pode ser controlado”: “Reforçando esta perspectiva, a tortura é, às vezes, banalizada como mais uma das várias iniciativas que tiveram de ser implementadas – ‘ossos do ofício’”.1

As conseqüências dos atos bárbaros e arbitrários se misturaram à violência caseira do cotidiano: a prática cotidiana da tortura – comum nas cadeias brasileiras – torna-se, com os esquadrões da morte, com os aparelhos do Estado, uma prática institucionalizada. Um tipo de prática de extorsão, de ascensão social rápida, de enriquecimento ilícito nos meios policiais, de prostituição e jogatinas à luz do dia, vão se juntar à prática suja e indigna dos empresários no financiamento da repressão oficial.

Em 1985, a Arquidiocese de São Paulo registrou todas as formas de barbarismo e atrocidades praticadas pela ditadura militar, desmontando toda a manipulação do sistema repressivo, com suas práticas de tortura em crianças, mulheres, gestantes; com a utilização dos métodos mais cruéis e inumanos que se possa imaginar; com a utilização da farsa no domínio do Direito e sob uma arquitetura que deixou marcas indeléveis na memória do povo brasileiro. Rebatiam-se, com coragem e dignidade, as violações dos direitos humanos. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, página A11, dia 29 de outubro de 2004, o cardeal Paulo Evaristo Arns, Arcebispo Emérito de São Paulo, indignado com a publicação das fotos atribuídas a Herzog, as atitudes conciliatórias e morosas do governo, com o anátema aos arquivos da ditadura, se expressou:

Na preparação do livro Brasil Nunca Mais, obtivemos autorização para copiar 707 processos da Justiça Militar. No total copiamos 1 milhão de páginas – um documento valioso na reconstituição das violações dos direitos humanos. Eram denúncias feitas diante de autoridades militares, em juízo, com nomes de torturadores, de locais de tortura, de presos desaparecidos. Penso nisso e pergunto: quantos outros arquivos existem por aí?

A divulgação recente de várias fotos montadas e falsificadas, do jornalista Vladimir Herzog – numa delas nu e em posição desesperada e humilhante, e noutra com uma mulher ao lado –, só comprovam como os órgãos de repressão se valeram de todos os meios para intimidar, amordaçar, amedrontar, punir, eliminar.

Uma “Nota” afrontosa do Centro de Comunicação Social do Exército, publicada na Folha de S. Paulo, dia 19 de outubro de 2004, tentava justificar os seus “métodos” na luta contra a “subversão”. Nela se faz a apologia dos atos criminosos e, invertendo os próprios fatos, responsabiliza a oposição por se fechar ao diálogo. A facção durista sustenta que “as medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas”. Ao revés do esperado, não houve responsabilizações; pior, o posicionamento contrário de José Viegas Filho, o ministro da Defesa, custou-lhe caro, sendo destituído pelo governo dito de esquerda e popular, que atendeu às reivindicações dos chefes militares. A partir de então, a pressão pela abertura dos arquivos da ditadura foi realimentada ainda que o general Francisco Roberto de Albuquerque tenha salientado que o Exército não possuía mais nenhum documento sobre a guerrilha do Araguaia. A ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), de sua parte, diz ter aproximadamente 4 milhões de documentos da ditadura militar.

No Chile, a 10 de novembro, o presidente Ricardo Lagos divulgava relatório com mais de 35 mil testemunhos de 35 mil vítimas de tortura sob a ditadura de Augusto Pinochet (1973-90). “Quantos países se atreveram a olhar com profundidade sua própria história? Quantos países se atreveram a chegar ao fundo do que ocorreu? O Chile se atreve”, declarou o presidente chileno. Ao contrário da atitude regressiva e covarde do governo brasileiro, dito de esquerda e popular, o comandante-em-chefe do Exército, general Juan Emilio Cheyre, reconheceu a monstruosidade praticada pelas Forças Armadas de seu país no arbítrio e desumanidade dos atos cometidos. Como escreveu o jornalista Jânio de Freitas, a 19 de dezembro, à página A 13, de 19 de dezembro de 2004,

A participação de militares brasileiros na Operação Condor está razoavelmente conhecida. Mas as Forças Armadas brasileiras deram contribuição importante ao golpe de estado no Uruguai e tiveram participações comprometedoras no golpe de Pinochet. […] As razões para a recusa à abertura de arquivos são muito maiores do que a solidariedade por espírito de corporação.

Não custa repetir a rigorosa síntese acerca dos momentos significativos da ditadura militar, que o historiador Nelson Werneck Sodré fez, à época dos trinta anos do golpe, e, com isso, nós fechamos essa apresentação:

O movimento vitorioso em abril de 1964 foi uma ditadura anunciada, longamente anunciada, amadurecida ao longo dos anos da guerra fria. Estabelecida, desenvolveu-se em três etapas: a inicial, até o AI-5; a intermediária, do AI-5 à chamada distensão; o final, da distensão à derrocada. Note-se: a ditadura não foi deposta, daria lugar a profundas modificações na estrutura do regime. Tendo sido extinta pelos seus próprios gestores, pela impossibilidade em continuá-la como desejavam, transferiu à fase seguinte, à chamada distensão, todos os seus problemas, todas as suas mazelas, à carga de suas características de atraso. […] Não, por acaso, tornou normal e usual o que o nazi-fascismo estabelecera de mais torpe, com o exílio, o banimento, a prisão, a tortura, a privação dos direitos elementares, a insegurança do indivíduo, a destruição cultural e, para culminar, o assassínio estabelecido como processo comum e o seqüestro e desaparecimento dos adversários como norma costumeira. A ditadura foi o crime erigido em lei. Muitas das suas torpezas foram herdadas pelo que veio depois e por isso continuamos a nos debater com os mesmos problemas de trinta anos atrás. Isso prova que só o emprego da força da violência, sob todas as suas formas, pode impedir a sociedade brasileira de alcançar a vitória daquelas reformas estruturais de que o nosso povo tanto necessita. E merece.2

Quarenta anos depois, a tragédia brasileira parece continuar.


Editores

Antonio Pedro Tota

Antonio Rago Filho


Resenhas desta apresentação

TOTA, Antonio Pedro; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.29, n.1, 2004. Acessar publicação original [DR]

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