Cultural Heritage and the Future | Cornelius Holtorf, Anders Högberg

A obra Cultural Heritage and the Future, editada pelos arqueólogos Cornelius Holtorf e Anders Högberg, conta com a contribuição de 19 autores especializados em diversas áreas das Humanidades relacionadas ao estudo de patrimônio e tem como público-alvo profissionais, acadêmicos e estudantes dos campos de museologia e estudos patrimoniais, arqueologia, antropologia, arquitetura, estudos de conservação, sociologia, história e geografia. Embora esses campos estejam citados na primeira página do livro, o seu conteúdo vai além, podendo ser lido por qualquer pessoa que se interesse pela memória humana e o futuro dela: mesmo não tomando para si essa responsabilidade, o livro também pode ser lido como uma contribuição (muito relevante) aos estudos sobre o Antropoceno.

O livro é dividido em quatro seções, todas elas subdivididas em capítulos de leitura rápida, variando entre dez e 20 páginas, sobre temas referentes ao estudo do patrimônio e, principalmente, como podemos nos desvencilhar do senso comum de que “devemos preservar o patrimônio para as gerações futuras” sem pensarmos no que, de fato, esse futuro significa. Desse modo, todos os capítulos, embora cada qual lidando com um assunto próprio, acabam por convergir com esse tema central sobre a preocupação de porquê e como iremos transmitir para o futuro aquilo que no presente achamos valioso o bastante para ser preservado e patrimoniado.

Na primeira seção do livro, ocorre a conceituação teórica sobre o futuro nos estudos de patrimônio. É de particular interesse o capítulo de Rodney Harrison sobre o armazém mundial de sementes Svalbard Global Seed Vault localizado na Noruega: o exemplo apontado pelo autor deixa claro o quanto nós ainda pensamos pouco sobre o patrimônio como algo futuro (nossos pensamentos tendem a focar muito no passado daquilo que deve ser preservado, mas não como irei preservá-lo) – esse projeto internacional é uma colaboração com o intento claro de que as próximas gerações possam conhecer e desfrutar dos produtos plantados por nós atualmente. Gerações futuras que, comumente, pensamos serem crianças, tal como aponta Sarah May em seu capítulo. Essa visão infantilizada do futuro acaba por nos colocar em um papel de quem oferta o patrimônio como um presente àqueles que virão depois de nós: segundo May, isso traz problemas sérios, pois teríamos de sempre pensar no que legaríamos às crianças e, mais ainda, se elas receberiam sempre de bom grado esses “presentes” patrimoniais que desejamos dar. O capítulo de May me foi bastante provocador, principalmente ao me fazer rever meus conceitos sobre para quem devemos assegurar os patrimônios. Como deixa claro a autora, se “sacralizarmos” as crianças, isso fará com que diminuamos os seus papéis enquanto agentes que não necessitam de nosso cuidado (conforme pensamos agora), mas, sim, que possuem independência, competências e preocupações próprias no presente e no futuro também. Do mesmo modo, Cornelius Holtorf e Andres Högberg, no capítulo 4 [Perceptions of the future in preservation strategies (Or: why Eyssl von Eysselsberg’s body is no longer taken across the lake) ], discorrem sobre as percepções de futuro que existem em estratégias de preservação. Tomando por base a vila de Hallstatt, na Áustria, os autores mencionam três marcos importantes de conservação do passado na região: o sítio arqueológico do cemitério do período Neolítico; o ossuário de crânio pintados da Capela medieval de São Miguel; e a fascinante réplica em escala real do centro da vila na província chinesa de Guangdong. Sobre este último caso, é interessantíssima a passagem do texto que menciona o fato de que, para os chineses, as cópias são tão valiosas quanto os originais, tornando-se uma releitura do passado de outra parte geográfica (nesse caso, europeia) dentro da cultura futura da China (juntamente com questões de patrimônio imaterial também, como aponta Luo Li no capítulo 5, The future and management of ICH in China from a legal perspective). Pessoalmente, a leitura desse capítulo de Luo Li em particular me faz pensar em como será a valorização do patrimônio quando a tecnologia de réplicas em 3D em escala real estiver boa o suficiente para produzir cópias de patrimônios de qualquer lugar do mundo (isso, por exemplo, ajudaria muito na questão da reconstrução da Catedral de Notre-Dame, em Paris, ou do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, ambos edifícios destruídos por incêndios). Contudo, a pergunta que sempre ficará após o término desta seção do livro é: para quem deveríamos imprimir essas réplicas? Seria importante para o futuro da mesma forma que é agora para o presente?

A segunda seção do livro trata do futuro refletido no patrimônio cultural, apresentando exemplos de edifícios que comumente não associamos a essa temática. Alfredo González-Ruibal, no capítulo 6 [Decolonizing the future: Folk art environments and the temporality of heritage] chama a nossa atenção para ambientes de arte folclórica, um tanto comuns nos EUA. Construídos por arquitetos e artistas não profissionais, esses espaços geralmente são erigidos com materiais reciclados, artefatos quebrados (garrafas e cerâmicas) e decorações baratas: esses ambientes, por dentro, podem lembrar os antigos gabinetes de curiosidade europeus, também, onde aquilo que fica exposto, em grande parte, se deve mais ao campo afetivo e exótico dos objetos do que qualquer tentativa de catalogação ou descrição científica. Os ambientes de arte folclórica, como mostra o autor, são um exemplo que vai de encontro à administração de patrimônio comumente aceita academicamente, ao invés de representarem uma tentativa de parar ou reverter a entropia, ou seja, a perda do passado (tanto em memória como fisicamente), os ambientes e seus donos aceitam a entropia (sendo que em muitos casos ela só se encerra com a morte de seu criador, dono do espaço): essa mudança na percepção da temporalidade, tornandose fluida, pode nos auxiliar a descolonizar o futuro. Já o capítulo 7 [The spectre of non-completion: An archaeological approach to half-built buildings], de James Dixeon, traz para os arqueólogos a visão de que os edifícios que encontramos no presente ou no passado são objetos criados para preencher um propósito repletos de vida (humana ou não). É extremamente interessante a noção apresentada de que não existem edifícios completos: todos são sempre um processo, que se inicia antes de sua construção e não acaba com sua desocupação – os prédios pela metade, não construídos completamente ainda, não fazem parte de uma trajetória temporal, mas possuem também redes próprias de movimento cultural material (por exemplo, o processo de construção que carrega consigo toda a compra de materiais e sua execução/concretização). Relacionando patrimônio e Cientologia, Robert Charlotte Maxwell aponta como a construção do edifício (a base Trementina, nos EUA) da crença fundada por L. Ron Hubbard na década de 1950 segue alguns padrões de medo ocasionados durante a Guerra Fria, com instalações subterrâneas. Por fim, essa seção se encerra com uma leve e divertida conversa entre Sara May e a arqueóloga espacial Alice Gorman, no capítulo 8 [Future visions and the heritage of space: Nostalgia for infinity], sobre a estética do futuro e os artefatos criados por humanos que orbitam o nosso planeta atualmente. Embora menos teórica, essa seção do livro traz contribuições importantes para quem trabalha com patrimônio, principalmente ao questionar se devemos legar às gerações futuras um passado “intocado” (se é que isso é possível) ao invés de sermos cocriadores desse futuro. Do subterrâneo da Cientologia ao satélite espacial, o patrimônio é sempre sobre o futuro, nunca sobre o passado: nós pensamos em porquê preservar e para quem preservar. Contudo, devemos ter a humildade em aceitar que nossas escolhas podem fracassar se não dermos ouvido a quem vai receber esse patrimônio.

A terceira seção, por sua vez, é dedicada a um tema que poucas vezes nos faz relacionar com patrimônio: o lixo nuclear. Cornelius Holtorf e Andres Högberg discorrem no capítulo 10 [What lies ahead? Nuclear waste as cultural heritage of the future] sobre como devemos administrar as transmissões dos registros de depósitos de lixos nucleares para as gerações futuras (afinal, eles podem durar cerca de 10.000 anos ou mais). Para tanto, os autores apresentam o conceito de “consciência futura”, no qual o agora tem papel fundamental sobre aquilo que passamos e pelo o que passaremos – esse agora é um ponto de intersecção fluido entre passado e presente que sempre se move na linha do tempo. As nossas percepções do passado moldam o presente sempre, enquanto o passado em si é imutável, e o futuro sempre maleável. O setor profissional de patrimônio, segundo os autores, pode aprender com as questões relacionadas ao lixo nuclear, uma vez que é fundamental transmitir o conhecimento de sua existência para gerações futuras. A visão de depósitos de lixo nuclear como sítios arqueológicos é apresentada por Rosemary A. Joyce em seu capítulo 11 [The future in the past, the past in the future]: a autora começa por apontar o fato de que os arqueólogos podem tratar sítios monumentais como mensagens de seus construtores para o futuro, mesmo que muitas vezes não haja evidências para isso. Criticando a noção de “consciência futura” de Holtorf e Högberg, Joyce baseia-se nos conceitos de tempos social e monumental desenvolvidos pelo antropólogo Michael Herzfeld na década de 1990 para se contrapor à noção de congelamento no tempo das estruturas erigidas pelos homens, incluindo os depósitos nucleares. Por fim, o capítulo em forma de diálogo entre Marcos Buser, Abraham Van Luik, Roger Nelson e Cornelius Holtorf deixa claro como os depósitos nucleares são também patrimônios partindo do ponto de vista antropológico. Essa parte do livro, a mais curta de todas, nos faz repensar sobre o quão delicada é a questão de informarmos corretamente as gerações futuras. A produção de lixo nuclear atualmente, embora tenha diminuído, deixa vestígios que não serão legados para cinco ou seis gerações: a existência desse material tóxico é de longo prazo, chegando a milênios. Como as gerações futuras irão conhecer esses depósitos se não tivermos um plano constante de administração de informações a longo prazo? Para além dos depósitos nucleares, essa preocupação deveria ser uma constante relacionada a qualquer patrimônio, como o livro enfatiza a todo instante.

A quarta e última seção do livro é dedicada à discussão sobre a relação entre patrimônio cultural e a fabricação do futuro. Erica Avrami toca em dois pontos cruciais sobre a temática do livro: a sustentabilidade e acumulação de patrimônio. Embora “lugar” seja um conceito abstrato, muitas vezes ligado à memória, temos de lidar com a questão do “espaço” também: algo muito mais concreto, pois é real e limitado. Assim sendo, nós temos a tendência de criar uma lista infinita de objetos que se enquadram como patrimônios, mas é necessário filtrarmos suas escolhas, pois o espaço que terão é finito. O que devemos preservar? O patrimônio é realmente mais importante do que as pessoas no presente? Deveríamos desapropriar ou proibir as construções arquitetônicas que serviriam para as pessoas do agora devido à presença de patrimônios? Não estaríamos “prejudicando” a construção do futuro ao fazermos isso? Essas são provocações advindas desse capítulo. Já o patrimônio em “estado terminal” é objeto do capítulo de Caitlin DeSilvey. Apresentando o caso do farol presente na paisagem de Orford Ness (Inglaterra) desde o século XVII, a autora discorre sobre como os patrimônios também ficam doentes e que, aqueles que já estão condenados às ruínas, recebem tratamentos “paliativos” para ganharem uma sobrevida: sob esse ponto de vista, o patrimônio, ao meu ver, recebe um teor muito mais delicado e até mesmo humanizado, o que é algo extremamente interessante de se pensar quando lidamos com o seu legado para gerações futuras. Por sua vez, Paul Graves-Brown utiliza seu capítulo para afirmar que o futuro é uma episteme, ou seja, ele foi inventado como no final do século XIX e segue mudando desde então. Para o autor, existem três conceitos-chave relacionados ao futuro: afluência, planejamento (em relação à infraestrutura do patrimônio), e novidade (pois o futuro é definido como uma rejeição do passado para abraçar coisas novas). O autor desenvolve seu texto afirmando que a “indústria” do patrimônio surgiu em um contexto específico: durante as décadas de 1960 e 1970, houve uma perda de fé no futuro se nos debruçarmos sobre a cultura popular da época (por exemplo, Star Trek ou as revistas da série Amazing Stories) – isso nos levou a olhar para o passado novamente, buscando, cada vez mais, a sua preservação. O último capítulo, de Richard Sandford e May Cassar, retoma o lado mais teórico da obra, descrevendo os campos de pesquisa que lidam com o futuro e quais os seus pontos fortes e limitações, além de discutir meios em que o patrimônio e o futuro podem beneficiar um ao outro. Por fim, a conclusão de Anders Högberg e Cornelius Holtorf retoma os pontos discutidos ao longo do livro.

Cultural Heritage and the Future traz uma contribuição valiosíssima para um tema que, confesso, fazia parte de meus pensamentos como “senso comum”. Pensar o patrimônio não como passado, mas como futuro é algo que até então não me causava maiores preocupações, pois, enquanto arqueólogo e educador, estava claro para mim a necessidade de se preservar as ações humanas na paisagem para que gerações futuras pudessem ter acesso à (i)materialidade cultural. Contudo, os questionamentos colocados no livro me tornaram mais atento a essas problemáticas: Como devemos preservar? Para quem devemos preservar? O que devemos preservar? Nem sempre aquilo que consideramos como um patrimônio útil a ser salvaguardado servirá para o futuro: temos de respeitar e entender que as gerações futuras possuem voz e agência também. Desse modo, concordo bastante com um dos leitmotive da obra: o futuro (e a preservação do patrimônio) é um processo contínuo. Um aspecto bastante negativo do livro, no entanto, é a total exclusão da tecnologia de digitalização entre os tópicos abordados: não há nenhum capítulo que lide com o fato de que nós digitalizamos o patrimônio e, principalmente, que esse processo gera uma quantidade imensa de dados que devem ser armazenados fisicamente em algum local e, também, necessitam de manutenção e atualização constante: como iremos lidar com essa problemática? Se, tal como em alguns pontos o livro deixa claro que nem tudo deve ser preservado/patrimoniado fisicamente, por que não digitalizamos antes da ruína ou destruição de um candidato à patrimonialização? O livro traz exemplos muito interessantes sobre o que é patrimônio e como devemos lidar com ele (por exemplo, o caso dos depósitos de material nuclear), porém infelizmente ignora a existência da digitalização/virtualização de sítios, monumentos e artefatos, que a cada dia tem se tornado mais comum nas áreas ligadas à História humana. Porém, a contribuição de Cultural Heritage and the Future, enquanto conjunto, é inestimável para o campo. Uma leitura obrigatória e necessária para todos que se preocupam com o futuro e com aquilo que iremos legar a quem vier depois de nós.


Resenhista

Alex Martire – Pós- Doutorando em Arqueologia, Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisador no Laboratório de Estudos Antárticos em Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisador Associado do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial, Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo. Coordenador do Grupo de Pesquisa CNPq –Arqueologia Interativa e Simulações Eletrônicas (ARISE). E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1744-3900.


Referências desta Resenha

HOLTORF, Cornelius; HÖGBERG, Anders (Eds.). Cultural Heritage and the Future. London; New York: Routledge; Taylor & Francis Group, 2021. Resenha de: MARTIRE, Alex. Vestígios – Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica, v. 16, n.1, p. 150-154, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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