(Des)medidos – A revolta dos quebra-quilos (1874- 1876) | María Verónia Secreto

Quebra-quilos – termo usado para designar revoltas que acometeram diversas localidades em oito províncias brasileiras (sete delas no Nordeste do país) nos anos de 1874 a 1876 – foi a última grande revolta do Período Imperial, e teve como protagonistas os pobres-livres das regiões rurais: sertanejos, criadores de gado, agricultores de subsistência. Apesar do nome pelo qual ficou conhecida, a resistência à introdução do sistema métrico era apenas um entre vários motivos das manifestações.

A autora identifica e evidencia as “camadas interpretativas” que recobriram o movimento dos quebra-quilos, desde os primeiros registros sobre ele. As autoridades provinciais e os letrados contemporâneos à revolta impingiram um colorido supersticioso e ignorante às manifestações, e creditaram-nas à influência de “agentes externos”; os historiadores regionais, muito concentrados em seus universos locais, deixaram de enxergar o movimento em sua magnitude completa. A autora indica ainda o erro recorrente e bastante comum, presente em trabalhos mais recentes, de se considerar tais manifestações como meros “espasmos” sociais, desarticulados de qualquer contexto mais profundo.

Todas estas interpretações dificultam a compreensão do caráter essencial dos quebra-quilos: o movimento era na verdade uma manifestação aguda de um sentimento maior e mais antigo, de uma inquietação quase “universal”. Secreto apresenta fenômenos correlatos, por exemplo, entre os camponeses da Inglaterra. Tais desarmonias originaram-se de choques entre as sociedades tradicionais, amparadas em costumes e práticas muito antigas e arraigadas dos quais dependiam para a manutenção de sua existência, com os esforços “modernizantes” e centralizadores do Estado, orientados de maneira liberal, racionalista e secular, resultando em arranjos alheios a compromissos com os esquemas anteriores, e mesmo antagonistas deles. Tais embates fizeram emergir resistências tenazes e duradouras. Também na Inglaterra, segundo Eric Hobsbawm, tais resistências foram interpretadas de maneira enviesada e incompleta.

A formação de uma malha fiscal abrangente e unificada, o estabelecimento de sistemas de recrutamento militar uniformizados e mais eficientes, a criação de um plano nacional de recenseamento, a modernização e laicização dos registros de nascimento, casamento e óbito, eram manifestações múltiplas de um mesmo fenômeno, eram parte da ereção de um estado central forte e dotado de mecanismos eficientes de coerção e extração, processo que se deu a contrapelo dos interesses de vastas camadas da população (sertanejos, religiosos, pobres-livres, libertos e escravos etc.). O quebra-quilos era, afinal, parte de um amplo movimento de reação a essa construção, uma tentativa de obstar o aparelhamento da “pulsão extrativa” do Estado.

Essa é uma das maiores contribuições da obra de Secreto: desnuda o evento de interpretações reducionistas e alarga a perspectiva sobre ele, por meio da análise de vasta documentação, produzida nas diversas Províncias onde o movimento se manifestou, enriquecendo estas observações com apontamentos colhidos numa bibliografia internacional, demonstrando a abrangência territorial destes fenômenos. Deve-se ainda a este trabalho uma compreensão mais ampla da dimensão temporal da revolta, uma vez que Secreto aponta conexões diretas entre o quebra-quilos (1874-76) e as revoltas do Ronco da Abelha (contra as novas leis de recenseamento e do registro civil, ocorridas em 1851-52), e estende a duração das inquietações até as grandes insurreições de Canudos e do Contestado, já nos domínios do século XX, também oriundas destes atritos entre as sensibilidades tradicionais e as modernizações do Estado brasileiro.

Nas palavras de Secreto, todo o cotidiano dos homens pobres-livres estava sendo transformado e normatizado, e um Estado que não lhes dava nada agora tentava se apoderar dos poucos espaços de manobra que lhes restavam, de direitos originados de acordos e costumes antigos tidos como imutáveis. Pela tradição, não competia ao Estado se imiscuir em coisas como batizar, registrar os filhos e enterrar os mortos (competências da Igreja), cultivar e vender o excedente pelas medidas tradicionais, ganhar alguma renda extra comercializando “retalhos” (quitutes e gêneros silvestres, que até então não eram taxados), negociar com os agenciadores sobre quais membros da família seriam recrutados. O Estado intervinha em territórios que a tradição reservara para a Igreja e para o sistema patriarcal/local, e a resistência a essa arremetida era inevitável (SECRETO, 2011: 114).

Nominalmente ligado à “história vista de baixo”, o trabalho de Secreto vai além, invertendo outras perspectivas de análise. A obra investiga o movimento dos quebra-quilos a partir de paradigmas incomuns e extremamente reveladores: o olhar dos sertanejos livres e pobres sobre os fenômenos que lhes ameaçavam, a ótica das Províncias do Norte sobre os movimentos nacionais que lhes colocavam em posição inferior em relação ao Sul, a observação feita do campo para a cidade. Em função dessas decisões analíticas, a obra serve como teste das generalizações e se propõe a reformular interpretações atinentes ao período analisado. Trabalhos dessa natureza, segundo Maria Yedda Linhares, quando voltados para observações regionais, preocupados com a heterogeneidade e com a multiplicidade de enfoques e fontes, permitem que se extrapolem limites historiográficos – tanto modelares, como plantation, quanto temporais, como as periodizações Colônia, Império etc. – que impedem a visualização abrangente do objeto, ou que nublam, com posições enviesadas, as possibilidades de interpretações mais oportunas (LINHARES, 1997: 172). A obra de Secreto contrapõe-se, dessa maneira, a uma historiografia feita majoritariamente a partir da perspectiva de letrados, urbanos e sulistas, e foge da abordagem institucional, política e macroeconômica.

A partir dos trabalhos de Guillermo Palacios, María Verónica Secreto reintroduz em cena um ente bastante importante na historiografia do Brasil colonial e imperial: os agricultores pobres-livres. A “descoberta” e valorização da atuação deste segmento na história tem alimentado revisões que tendem a apagar as descrições polarizadas da sociedade brasileira. No caso da análise dos quebra-quilos levada a cabo por Secreto, eles aparecem como protagonistas da movimentação, compreendidos como segmento capaz de articular autonomamente interesses e ações. Desta forma, a autora refuta a interpretação – comum entre os contemporâneos das revoltas, incapazes de enxergar as motivações reais dessas pessoas – de que eles agiam sob influências externas. Secreto descreve o contexto cultural subjacente às ações dos quebra-quilos, explicitando uma “economia moral sertaneja” amparada em acordos consuetudinários que estavam frontalmente ameaçados pelas ações do Estado. Deixa claro também o caráter político dessa revolta, manifestação de uma categoria social que se expressava fora das instituições e empregava outro repertório de estratégias para marcar suas posições.

As consequências da revolta foram profundas e duradouras. Secreto aponta na violência desmedida da repressão aos quebra-quilos a gênese do banditismo social que marcaria os sertões do Nordeste pelas décadas seguintes. A revolta foi responsável também por retardar a adoção do sistema métrico, que em algumas áreas só foi definitivamente incorporado na década de 1930. Além disso, alguns daqueles impostos novos foram definitivamente suspensos, o que torna o movimento parcialmente vitorioso.

O Estado brasileiro e as camadas sociais mais ricas e poderosas, que amiúde fundem-se em única entidade, tiveram, ao longo do tempo, uma relação conflituosa e tensa com um grupo social que, de certa forma, era um corpo estranho impedindo a concretização da estrutura social ideal do sistema escravista: os trabalhadores não-escravos pobres. Dentro de um regime em que o trabalho, além de aviltar, era apropriado violentamente e com poucas exigências de contrapartida, a negociação e o estabelecimento de condições eram incômodos e aberrantes. Desacostumados com limitações a sua sanha extrativa, Estado e elite encontraram, tanto em termos cotidianos quanto em explosões atípicas, resistências inesperadas e duradouras, consubstanciadas em recusas, revoltas, sonegações, sedições.

Também a historiografia, ao que parece, demorou em aceitar entre seus objetos de estudos essas camadas intermediárias, que dessa forma permaneceram invisíveis nas produções por longo período. Preferiu-se a imagem polarizada de uma sociedade de senhores e escravos. A obra de María Verónica Secreto faz parte de uma historiografia comprometida com esses grupos, constituindo-se um trabalho que busca nas fontes o seu ponto de vista, suas motivações culturais e econômicas.

Referências

LINHARES, Maria Yedda. História Agrária. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínos da História – Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997. pp. 165-184.

SECRETO, María Verónica. (Des)medidos – A revolta dos quebra-quilos (1874-1876). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2011.


Resenhista

Daniel Rincon Caires – Especialista em História – PUC – SP. Pesquisador do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM).


Referências desta Resenha

SECRETO, María Verónica. (Des)medidos – A revolta dos quebra-quilos (1874- 1876). Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2011. Resenha de: CAIRES, Daniel Rincon. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 6, n. 11, jan./jun. 2012. Acessar publicação original [DR]

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