Didática da História e Ciência Histórica: possibilidades e limites da ciência do aprendizado histórico / Revista de Teoria da História / 2014

A organização de um dossiê sobre Didática da História em uma revista de Teoria da História não é algo que pode ser considerado comum, cotidiano, banal. Por muito tempo, a didática da história foi considerada uma área estranha à ciência histórica e aos historiadores. Se hoje a teoria da história se interessa pela didática da história, isso ocorre tanto porque a teoria tem ampliado a sua compreensão sobre a ciência histórica, como porque a didática da história tem legitimado a sua importância no interior dessa ciência.

A teoria da história, enquanto meta-teoria (Historik), investiga os fatores e fundamentos da ciência histórica. Ao perceber que tal ciência surge da própria vida humana no presente e exerce sobre ela uma função de orientação temporal, ela torna a didática uma de suas preocupações fundamentais. Ao mesmo tempo, a didática da história, ao deixar de ser uma simples reflexão sobre como ensinar história nas escolas e passar a se preocupar com a relação entre a história (todas as histórias e dentre elas a ciência histórica) e a vida, torna-se uma área inerente ao pensamento histórico e relevante para a teoria da história.

Tal dossiê não é, portanto, um marco inaugural de uma relação, mas o resultado de uma transformação, iniciada no começo do século XXI, no modo como se compreende ciência histórica, didática da história e teoria da história no Brasil. Essa transformação tem, claramente, como impulso a influência da teoria da história e da didática da história alemã nos estudos sobre o ensino e a aprendizagem históricas no contexto brasileiro, ocorrida especialmente a partir da tradução dos livros e artigos de Jörn Rüsen i, pelo desenvolvimento da metodologia da educação histórica ii, como também pela influência de autores alemães não traduzidos para o português, mas acessados por alguns pesquisadores brasileiros iii.

São várias as contribuições que a didática da história alemã trouxe para a área tradicionalmente conhecida por ‘ensino de história’ no Brasil. Citarei somente três delas, que foram discutidas direta ou indiretamente nesse dossiê. Primeiro, a reivindicação de que a didática é inerente à ciência histórica e não uma área externa a ela. Em segundo lugar, a peculiaridade do pensamento histórico na formação humana, tornando a preocupação com a aprendizagem histórica uma preocupação com o modo específico de se pensar historicamente. Em terceiro lugar, uma ampliação do campo de investigação para além da escola, entendendo que toda e qualquer história (mesmo as histórias extra-científicas e extraescolares) produz aprendizagem histórica e é importante para a orientação do agir humano na vida prática (desse modo, o cinema, a música, a literatura, os jornais, a internet, os museus, etc., tornam-se relevantes não somente em suas relações com a cultura escolar).

Tendo em vista estas contribuições, os 08 artigos que compõem o presente dossiê trazem importantes questões para o atual estado da Didática da História. O primeiro artigo desse dossiê, de Willian Barom, intitulado “OS MICRO CAMPOS DA DIDÁTICA DA HISTÓRIA: a teoria da história de Rüsen, pesquisas brasileiras e o ensino de história (2001 a 2009)”, apresenta uma síntese do impacto da Teoria da História de Jörn Rüsen sobre as pesquisas brasileiras, a partir do estudo de 24 dissertações e 10 teses publicadas no período de 2001 a 2009. Barom percebe dois eixos fundamentais das pesquisas em didática da história. 1) Investigação empírica em ambiente escolar e 2) Investigação empírica em ambiente não escolar. Desse modo, ele corrobora a tese de que a didática da história não se reduz, como antes, somente ao ensino escolar da história, mas se preocupa também com o modo como a história extra-científica e extra-escolar, o que chamamos de Uso Público da História, produz aprendizagem histórica. O pesquisador faz, assim, um mapeamento do que ele chama de microcampos da didática da história, apresentando as diferentes áreas em que a didática da história no Brasil tem se debruçado.

Outros artigos desse dossiê trazem reflexões extremamente relevantes sobre um dos temas fundamentais da nova didática da história e da metodologia da educação histórica: a especificidade do pensamento histórico no processo de aprendizagem histórica. Trata-se de uma valorização da relação entre o que é ensinado em história e o modo de pensar histórico referenciado na própria ciência histórica. O artigo de Itamar Freitas surge de uma importante e inovadora hipótese: as reivindicações atuais de que deve-se ensinar histórica como ciência histórica não são tão atuais como parecem ser, tendo sido preocupação de diferentes autores desde o século XIX. No artigo desse número, intitulado “Aprendizagem história nos parâmetros curriculares nacionais para o ensino de história e estudos sociais nos Estados Unidos (1944-2014)”, ao analisar o currículo dos EUA, Freitas levanta outras questões bastante relevantes.

Em primeiro lugar, apresenta a possibilidade de ensinar história no interior de uma disciplina como social studies sem que essa desejada especificidade do pensamento histórico seja prejudicada. Aqui, a reivindicação de Itamar Freitas é extremamente atual e relevante, uma vez que as reformulações recentes e em andamento do ensino médio no Brasil têm implicado em uma orientação para a integração das disciplinas específicas (história, geografia, sociologia e filosofia) em uma área ampla (Ciências Humanas e suas tecnologias). Um dos grandes riscos desta orientação é justamente o de que a especificidade do pensamento histórico seja deixada de lado. O artigo de Itamar Freitas nos faz pensar que a perda da especificidade de uma disciplina, quando se integra em uma área ampla, não é necessária, embora, tampouco diríamos que o risco, no caso brasileiro, esteja eliminado. De todo modo, concordando ou não com a integração, a reflexão sobre o Social Studies nos EUA nos parece bastante relevante para pensarmos a condição brasileira.

Entretanto, Freitas não se preocupa somente em reivindicar a possibilidade do ensino de história como ciência da história nos EUA. Para além disso, ele nos provoca uma reflexão sobre os limites da reivindicação do ensinar história como ciência histórica. Em nossos termos, até que ponto questões que estão vinculadas à filosofia e outras à pedagogia podem ficar de fora das preocupações da didática da história? Como ele afirma, “o princípio ‘ensina-se a história como ciência da história’ abriga múltiplas variantes, incorporando, por ciência da história, em diferentes graus de intensidade, filosofias especulativas da história e uma diversidade de teorias do conhecimento que, não necessariamente, corroboram, em sua totalidade, com as sentenças reinantes da metódica, sendo empregadas como parte dos fundamentos da maioria das ideias renovadas de didática da história, seja no nosso tempo vivido (século XXI), seja no início do século XX”.

Suas questões na conclusão do seu artigo são bem colocadas: o historiador e professor de história deve “restringir-se aos instrumentos e estratégias de cognição histórica? Deve continuar excluindo preocupações ditas metafísicas como aquelas que se acercam da natureza (capacidades), da existência de comportamentos e valores universais, de perspectivas gerais de futuro? Deve permanecer alheio às similitudes entre uma suposta epistemologia histórica e os princípios epistemológicos das ciências ditas experimentais? Deve eximir-se dos estudos sobre como os humanos “conhecem” o mundo? Enfim, deve chamar ao diálogo a filosofia e a pedagogia ou deve ela mesma (a história) ocupar-se, novamente do objeto desses antigos e ameaçadores concorrentes?”

Um outro artigo desse dossiê também pretende apontar limites a esta reivindicação de ensinar história como ciência histórica. Augusto Ridson de Araújo Miranda e Antonio Germano Magalhães Junior apresentam a necessidade da Educação Histórica não perder de vista, ao se preocupar prioritariamente com a Cognição Histórica dos alunos e professores, “a dimensão plural dos saberes necessários à constituição do docente em formação”. Nesse sentido, reivindica a possibilidade de trabalhar com a Educação Histórica e com as preocupações próprias da chamada epistemologia da prática.

O artigo “CONSEQUÊNCIAS DA TEORIA DA NARRATIVA HISTÓRICA PARA A DIDÁTICA DA HISTÓRIA: ALGUMAS POSSIBILIDADES PARA A PRÁXIS DOS PROFESSORES” do professor Thiago Augusto Divardim de Oliveira e da professora Maria Auxiliadora Schmidt também apresenta contribuições inestimáveis para a didática da história. Tal artigo participa de um movimento de percepção do professor historiador como intelectual e nos coloca a tarefa de pensar a educação histórica na perspectiva da práxis.

Para tanto, Oliveira e Schmidt parte da noção de que “Rüsen admite que a matriz epistemológica que referencia seu conceito de práxis está pautada no pensamento de Marx e Engels (…) e nas possibilidades ontológicas da realização humana”. Desse modo, o autor utiliza as contribuições de Karel Kosik (1976) para “ampliar a discussão sobre práxis e totalidade”, fornecendo alguns questionamentos sobre as possibilidades e os limites do humanismo de Rüsen. Pensada a partir da perspectiva da práxis, a didática da história se abre para uma noção de emancipação mais ampla, que precisa ser pensada de modo profundo pela didática da história no Brasil.

O artigo da pesquisadora portuguesa Isabel Afonso analisa a relação de professores e alunos portugueses com o manual didático de história. Nesse sentido, Afonso avalia a importância do manual didático para professores e alunos, percebendo que ele é bastante utilizado nas aulas de história, mesmo por professores que o criticam. Também percebeu a importância que é dada às fontes, à narrativa do autor e às questões do manual, identificando a predominância de um modelo de aula próximo ao modelo de aula-oficina (modelo sugerido pela pesquisadora portuguesa da Educação Histórica Isabel Barca).

Os três últimos artigos desse dossiê tratam dos elementos estéticos da didática da história. Tal debate é fundamental, uma vez que para além do uso das diferentes linguagens artísticas na sala de aula (cinema, quadrinhos, música, literatura, etc.), a própria história possui elementos estéticos inerentes e fundamentais para o acesso à sensibilidade do público alvo das histórias e, portanto, para a produção de sentido (orientação para o agir).

O artigo de Marcelo Fronza traça um quadro das discussões teóricas sobre o conceito de significância histórica e sua importância para a compreensão de artefatos da cultura histórica. Fronza apresenta, assim, “uma das entradas teóricas possíveis para a compreensão do poder narrativo das imagens”. Dessa forma, percebe o modo como no contato com imagens visuais os alunos desenvolvem ideias de significância histórica.

O artigo do professor Eder Cristiano de Souza trata do cinema como um objeto da didática da história. Ele pergunta pela contribuição que a didática da história alemã fornece para a transformação do modo como se entende o cinema. Suas questões são: “que impactos o envolvimento com a narrativa fílmica provoca nas ideias históricas dos espectadores?” ou ainda: “assistir a um filme possibilita uma relação de aprendizagem histórica ou apenas uma experiência de envolvimento com uma narrativa fílmica?”. Uma de suas contribuições é não se restringir, neste artigo, à utilização do cinema nas aulas de história. Antes, Souza preocupa-se com o cinema como elemento da cultura histórica, ajudando assim a ampliar o campo da didática da história. Outra grande contribuição deste artigo parece ser a percepção da forma como os referenciais teóricos da Didática da História alteram o modo como o cinema pode ser compreendido.

Para Souza, a análise do cinema não pode se limitar apenas ” ao estatuto de uma determinada produção fílmica em relação aos critérios metódicos de validação do conhecimento”. Tampouco deve se restringir, como em Rosestone, à análise interna do filme, buscando a formula que ele “usa para narrar o passado”. Com a Didática da História, Souza percebe que torna-se importante se perguntar sobre “como determinadas leituras do passado realizadas pelos filmes atuam na vida prática”. Assim, o filme produz conhecimento histórico não simplesmente por se referir ao passado, mas por entrelaçar interpretações de passado, compreensão do presente e produção de orientação temporal para o agir humano.

Por último, o artigo do professor Luciano de Azambuja traça uma reflexão “sobre as apropriações e usos da canção popular fonográfica nos processos de ensino e aprendizagem histórica acerca do conceito histórico substantivo Ditadura Militar Brasileira (1964-1985)”. São várias as inovações da abordagem de Azambuja, embora aqui destacaremos somente a que consideramos mais importante. Ao partir da metodologia da Educação Histórica, Azambuja não está interessado nem em simplesmente analisar a relação entre música e história, ou música e ensino de história, nem em uma abordagem prescritiva da canção no ensino. Embora seja possível perceber algumas contribuições para uma metodologia do uso da canção em aulas de história, tais contribuições advém do fato do autor ter se preocupado em investigar empiricamente o modo como os alunos no contato com a canção produzem interpretações sobre o passado, compreensão do presente e expectativas de futuro.

Além do dossiê, publicamos ainda alguns artigos que revelam o crescente respaldo nacional que a revista vem ganhando entre diversas universidades e institutos. Diego Pimentel de Souza Dutra, em “Um estudo da relação entre a cultura dos descobrimentos e o conhecimento acadêmico na renascença”, apresenta ao leitor um estudo sobre como a expansão Ultramarina estabelece um diálogo com o conhecimento na Renascença. Já no artigo de Renata Carvalho Silva “Cotidiano, poder e negociação: rediscutindo conceitos e possibilidades interpretativas para a escrita de uma história indígena”, a autora realizou uma revisão epistemológica acerca da história indígena, ou nativa, e suas novas possibilidades. A partir desse objeto, empreende um reexame da produção historiográfica interrogando pela participação do sujeito histórico indígena na escrita da história nacional e regional, se apropriando dos conceitos de cotidiano, negociação e poder para assim ampliar a abordagem da história indígena no interior dos debates interdisciplinares. Aruanã Antonio dos Passos, em “História e historicidade em Hannah Arendt”, tece uma análise da contribuição de Hannah Arendt para o ofício do historiador por meio de conceitos como tempo e história, presentes no seio de sua filosofia política.

Em “História e representação: a abordagem de Jacques Rancière”, André Fabiano Voigt tem como tema norteador a interpretação de Jacques Rancière acerca da relação entre história e representação, comparando esta abordagem com as propostas de Hans-Georg Gadamer, Michel de Certeau, Paul Ricoeur e Roger Chartier. Na comparação entre tais abordagens, o autor apresenta a seguinte hipótese: enquanto Rancière defende que a história – prática específica de escrita – está ligada às “contradições do regime estético”, os demais autores defendem um “regime representativo”. Em “O acontecimento na história: uma análise teórica sobre o conceito de acontecimento nas obras ‘O queijo e os vermes’ e ‘Eu, Pierre Rivière…'” de Munís Pedro Alves, há uma análise teórica sobre o conceito de acontecimento. Inicialmente perscruta o conceito de acontecimento na historiografia desde o século XIX, para assim, em seguida, estabelecer uma relação entre as obras de Carlo Ginzburg “O queijo e os vermes“ e Michel Foucault “Eu, Pierre Rivière”, situando a contribuição de cada um para o debate.

Publicamos também uma resenha de Raphael Guilherme de Carvalho, do livro “Aprendizagem histórica: fundamentos e paradigmas” de Jörn Rüsen. Na seção entrevista, realizamos uma entrevista com o pesquisador da Didática da História no Brasil: Luís Fernando Cerri. O pesquisador da Universidade Estadual de Ponta Grossa é uma das grandes referências da didática da história no Brasil. É considerado, juntamente com a professora Maria Auxiliadora Schmidt, um dos principais divulgadores do pensamento de Jörn Rüsen na área do ensino de história. O grupo de pesquisa que coordena (GEDHI – Grupo de Estudos em Didática da História) já foi responsável por diferentes dissertações e teses de doutorado na área. Ao mesmo tempo, Cerri é coordenador do amplo projeto de pesquisa “Jovens e a História”, que investiga a consciência histórica de jovens de diferentes países da América do Sul.

A entrevista foi feita por email durante os dias 11 de novembro e 04 de dezembro. Por sugestão do próprio Cerri, contou com réplicas minhas e tréplicas dele.

Desse modo, pudemos debater temas de primeira ordem para a didática da história brasileira, tais como: a importância da didática para a ciência histórica; as possibilidades e os limites da didática da história alemã no contexto brasileiro; o caráter disciplinar da Didática da História, sua relação com a história e com outras ciências da educação; a importância do projeto de pesquisa internacional “Jovens e a História; a Base Nacional Comum Curricular em elaboração no Brasil; e a relação entre Didática da História, Formação Política e Emancipação Social.

Assim, o presente dossiê traz questões importantes para a Didática da História no Brasil. Primeiro, demonstra que o uso público da história já vem sendo entendido como um campo de investigação da didática da história. Em segundo lugar, mostra que a reivindicação de especificidade do pensamento histórico não pode tornar a didática da história despreocupada com as questões já há muito tempo formuladas por outras ciências (sociologia, filosofia, pedagogia, psicologia da aprendizagem, etc.). Em terceiro lugar, apresenta a importância da didática da história para a formulação de uma nova forma de conceber a ciência histórica, o ensino de história, e as linguagens artísticas. Por último, dá o pontapé inicial para pensarmos a relação entre formação histórica e formação política, bem como para uma reflexão sobre a relação entre didática da história e emancipação social.

Notas

i. Neste trabalho de tradução se destacam tanto o esforço do professor Estevão Martins quanto do grupo de educação histórica da Universidade Federal do Paraná, coordenado pela professora Maria Auxiliadora Schmidt.

ii. A Educação Histórica e uma corrente de origem anglo-saxônica, mas que, especialmente no Brasil, tem dialogado com os autores alemães e fomentado a divulgação de conceitos como consciência histórica, aprendizagem histórica, cultura histórica e formação histórica.

iii. Um artigo inaugural a se utilizar de autores alemães não traduzidos para o português é o artigo de Oldimar Cardoso, ver: CARDOSO, Oldimar. Para uma Definição de Didática da História. Revista Brasileira de História. São Paulo: vol. 28, n. 55, 2008, pg. 153-170.

Rafael Saddi – Doutor (UFG). Membro do Comitê Editorial da Revista de Teoria da História

Marcello Felisberto Morais de Assunção – Doutorando (UFG). Membro do Comitê Executivo da Revista de Teoria da História


ASSUNÇÃO, Marcello Felisberto Morais de; SADDI, Rafael. Apresentação. Revista de Teoria da História, Goiânia, v.12, n.2, dez, 2014. Acessar publicação original [DR]

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