Didática da História e o ensino de História: questões contemporâneas – Parte 1 | CLIO- Revista de Pesquisa Histórica | 2021

No Brasil, nos últimos vinte anos, temos assistido a uma ampliação das produções acadêmicas que abordam o ensino de História em suas múltiplas dimensões. Por caminhos diferentes, inúmeros investigadores têm realizado trabalhos, projetos e pesquisas que visam analisar as relações que estudantes e professores estabelecem com a disciplina de História, como se dá o processo de produção do conhecimento histórico escolar, bem como os desafios e as vicissitudes presentes no ensinar e aprender História em contextos escolares e não escolares.

No entanto, se hoje entendemos que existe uma pluralidade de abordagens relativas ao ensino de História e que diferentes espaços continuam sendo construídos visando o desenvolvimento de investigações nessa área, isso só possível devido aos constantes embates, resistências e diálogos que foram travados, a partir dos anos de 1970, que objetivaram reconstituir a História, enquanto disciplina escolar autônoma, que naquele momento havia perdido o seu espaço epistemológico para os Estudos Sociais. Leia Mais

Livro didático de História: conhecimento histórico e didática da história no mundo contemporâneo / História & Ensino / 2018

Neste dossiê, intitulado “Livro didático de História: conhecimento histórico e didática da História no mundo contemporâneo”, reunimos artigos com discussões sobre a produção e uso do livro didático e suas políticas de avaliação. Dois eventos realizados na Universidade Estadual de Londrina contribuíram, direta ou indiretamente, com o estudo sobre o livro didático no Brasil e os resultados de tais estudos se fazem presentes nas questões apresentadas nos textos que, dentre outras temáticas, avançam quanto à compreensão do espaço que o livro didático assume na atualidade. O primeiro evento foi a participação da UEL no Programa Nacional do Livro Didático – 2017 (PNLD – 2017), no período de 2015 a 2017. O segundo deles, ocorrido em outubro de 2017, foi a realização do Seminário “Livro Didático de História: Conhecimento Histórico e Didática da História no Mundo Contemporâneo”.

O debate em torno do que é um bom manual didático em História sempre esteve presente entre os segmentos da sociedade [3] e são vários os processos instaurados, pelas mais diferentes pessoas e instituições, demandando do Ministério da Educação (MEC) explicações e reformulações quanto ao tratamento que os autores concedem a este ou aquele conteúdo. Em paralelo a um expressivo crescimento quanto ao conhecimento no campo da Didática da História, vivenciamos, nas últimas décadas no país, a intensificação das contestações sobre a História que se ensina na escola, interpelações estas que precisam ser compreendidas a partir de um contexto expandido, pois colocam em disputa o projeto de Educação escolar do país.

Segundo o Historiador Jörn Rüsen (2011, p. 115) o livro didático ideal teria quatro características importantes: um formato claro e estruturado; uma estrutura didática clara; uma relação produtiva com o aluno; e uma relação com a prática da sala de aula.

Ao elegermos os temas a serem contemplados na apresentação deste dossiê, optamos por explanar, com algumas minúcias, os caminhos e descaminhos vivenciados durante o processo de avaliação de obras didáticas de História articulando com o decurso da gestão pública, revisitando e transcrevendo trechos de documentos que registram o projeto de Educação em pauta.

Há tempos em que a tarefa do historiador é intensificada quanto a sua função de chamar o passado para contextualizar e ampliar a compreensão das infindáveis disputas do tempo presente. Em 1993, Jacques Le Goff, ao prefaciar a obra póstuma e inacabada de Marc Bloch, Apologia da História ou O ofício de historiador, reeditada por seu filho Étienene Bloch, finaliza argumentando de que a obra é produto de um momento no qual Bloch “[…] capta os primeiros frêmitos de uma esperança, tanto de uma libertação da história, que é preciso ajudar na resistência ativa, como de um progresso da ciência histórica, que é preciso esclarecer escrevendo este livro” (2001, p. 34). Oito anos após, na apresentação para a edição brasileira, Lilia Schwarcz destaca os tempos difíceis a partir do qual Bloch escreve a obra e conclui que:

Mesmo nesses contextos extremos, em que a realidade se torna mais do que confusa, inomeável, Bloch defendeu a autonomia da reflexão e a ideia de que a responsabilidade e a necessária militância não eram sinônimos de fórmulas acabadas e índices milagrosos (2001, p. 12).

Le Goff e Schwarcz formulam seus argumentos tendo por referência a reflexão inacabada de Bloch que nos coloca a pensar sobre o ofício do historiador o qual deve, a todo momento, questionar as evidências:

[…] preciso prová-la. Depois, uma vez fornecida esta prova – que não temos o direito de considerar evidente, ou mesmo antecipadamente impraticável – restava ainda, aprofundando mais a análise, perguntar-se por que, de todas as atitudes psicológicas possíveis, estas se impuseram ao grupo. Pois, a partir do momento em que uma reação da inteligência ou da sensibilidade não for natural, ela exige, por sua vez, caso se produza, que nos esforcemos para descobrir suas razões. Resumindo tudo, as causas, em história como em outros domínios, não são postuladas. São buscadas. (BLOCH, 2001, p. 159).

O inacabamento do texto nos coloca frente ao convite de prosseguir com as buscas em todos os campos nos quais se fizer necessário. Hoje, no mundo contemporâneo, o campo do Ensino de História, e, em particular, no que se refere à produção de material didático para essa área do conhecimento, se configura como um campo emergencial para o historiador exercer o seu ofício.

  1. O PNLD 2017 – História: contexto e desdobramentos

No ano de 2015, a Universidade Estadual de Londrina foi selecionada, via Chamada Pública SEB / MEC Nº 01 / 2015, para coordenar o processo de avaliação pedagógica dos livros didáticos de História destinados aos alunos e professores dos anos finais do ensino fundamental. Naquele ano, quando tomamos a decisão de participar do processo de seleção, o país vivenciava o primeiro ano do segundo mandato da Presidenta Dilma Rousseff, eleita em outubro de 2014, em pleito no qual concorreu à reeleição pela chapa liderada pelo Partidos dos Trabalhadores [4] (PT), tendo por vice Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). O então senador Aécio Neves, candidato opositor pela chapa encabeçada pelo Partido Social Democrata Brasileiro [5] (PSDB) e seus aliados, questionaram, abertamente, o resultado das urnas e colocaram em curso um regime de oposição que, distanciando dos temas voltados para o desenvolvimento social, cultural e econômico do país, pautou-se no acirramento de um processo de construção de um inimigo nacional comum, o Partido dos Trabalhadores, na figura da então Presidenta e do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que governou o país de 2003 à 2010.

Problemas crônicos do sistema político brasileiro, cuja origem pode ser identificada em nosso passado colonial, patriarcal e escravocrata, foram simplificados e personificados vendendo-se a ideia de que extirpando tais pessoas, ou partidos, os problemas nacionais seriam resolvidos. No que se relaciona ao objeto desse dossiê, consideramos importante destacar que o cenário político nacional, em curso durante a realização do PNLD / 2017 (que para as universidades respondentes à Chamada Pública realizada pelo MEC, teve início em 2015 e finalização em 2017 [6] ), precisa ser registrado, pois influenciou, efetivamente, na redefinição dos contornos ao qual foi submetido o programa após o golpe de 2016 que levou à presidência de Michel Temer (PMDB).

No Ministério da Educação, o entra e sai de mandatários seguiu o clima conturbado vivenciado no país nos anos de 2015 e 2016: Cid Gomes (PDT) assume o ministério em 02 de janeiro de 2015 e permanece por menos de três meses, deixando a pasta em 19 de março. Em abril de 2015, o professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo, Renato Janine Ribeiro, assume o cargo, permanecendo no mesmo até outubro do mesmo ano quando, em meio à readequação política no governo, é substituído por Aloizio Mercadante (PT) que ficará no cargo até 11 de maio de 2016, dias antes do início da tramitação do processo de afastamento da Presidenta Dilma, finalizado em 31 de agosto de 2016. Em seu lugar, Michel Temer indica Mendonça Filho (DEM), que sairá em abril de 2018 para concorrer a uma vaga no senado pelo estado de Pernambuco, não sendo eleito.

Na Secretaria de Educação Básica (SEB) e na Coordenação de Materiais Didáticos (COGEAM) – setores diretamente responsáveis pela implementação das políticas públicas sobre o livro didático no Ministério da Educação – a alteração nos cargos de chefia foi menor, o que, de certa forma, favoreceu à realização do PNLD 2017 em patamares menos conflituosos quanto à relação da Universidade com o Governo Federal. A Secretaria de Educação Básica (SEB) passou pela coordenação de Maria Beatriz Luce, pedagoga e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Rossiele Soares da Silva, advogado e ex-Secretário de Educação do Estado do Amazonas. Na COGEAM, passaram pela coordenação Junia Salles Moreira, historiadora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Tassiana Cunha Carvalho, Cientista Política e funcionária de carreira do MEC. Durante alguns meses, Cristina Thomas de Ross, funcionária de carreira do MEC, respondeu pela COGEAM até a efetivação da Tassiana Cunha Carvalho no quadro.

A realização de cada etapa do PNLD é marcada por uma exaustiva rotina de reuniões, envolvendo os responsáveis pelas pastas, os coordenadores do processo avaliativo e os representantes das editoras. Os gestores são peças fundamentais nesse processo e a depender de seu entendimento, envolvimento e atuação no campo da Educação escolar, e, em especial, no campo da produção de material didáticos, vai se constituindo um perfil para o que se entende por um bom livro didático que pode, ou não, influenciar na elaboração dos mesmos, considerando que estamos a tratar de processos com uma temporalidade alargada. Por isso, entendemos que o estudo minucioso do histórico de cada processo avaliativo, em suas singularidades e abrangendo vários escalões do MEC, forneceria dados importantes para a compreensão de como vai se configurando, e também se desconfigurando, os desenhos de uma política pública para a elaboração, avaliação e distribuição dos livros didáticos no país.

Retornando ao PNLD – 2017 – História, sob a responsabilidade da UEL, o resultado da Chamada Pública SEB / MEC Nº 01 / 2015 foi publicado via Portaria nº 28, de 10 de Agosto de 2015, e divulgado no Diário Oficial da União do dia 11 de Agosto de 2015 (Figura 1). Foram selecionadas sete instituições, sendo a UEL a única instituição estadual. Não temos conhecimento do número de concorrentes em cada componente curricular e esta informação seria relevante, pois indicaria o interesse e envolvimento das universidades públicas com o processo de avaliação dos livros didáticos.

Quadro 1 Instituicoes publicas selecionadas para coordenacao do PNLD 2017 Livro didático de História

Em dezembro de 2015, publica-se no Diário Oficial da União a Resolução nº 13, de 4 de Dezembro de 2015, na qual o Presidente Substituto do Conselho Deliberativo do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE aprova o apoio financeiro para a UEL realizar o PNLD 2017- História. O que se seguiu foi um amplo processo de adequações e gerenciamentos entre a Secretaria de Educação Básica, por meio da Coordenação Geral de Material Didático, então sob a coordenação de Tassiana Cunha Carvalho [7] , visto que, como já dito, a UEL foi a única instituição estadual selecionada, o que demandou ajustes no sistema de descentralização de verbas por se tratar de transferência de recursos entre esferas administrativas distintas (federal e estadual). Efetivamente, os recursos chegaram à UEL no mês de março de 2016. Apresentamos tais dados para registrar e fomentar futuros estudos sobre o tratamento que as políticas públicas sobre o livro didático receberam do governo federal ao longo de quase um século de existência, a considerar como marco inicial a criação do Instituto Nacional do Livro (INL), em 1929. Em 1994, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), coloca-se, em curso, um processo de retomada e redefinições quanto à distribuição e avaliação dos livros, o qual confere os contornos ao PNLD, vigorando, com alterações, até os dias atuais.

O MEC nomeou para a coordenação técnica do PNLD 2017, cuja função foi estabelecer o contato entre o MEC e a Instituição que sediaria o processo de avaliação, a Profª Drª Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e o nome de todos os participantes do processo está publicado junto ao Guia PNLD 2017 – História, disponível na página do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) [8] (BRASIL, 2016).

Nos textos de introdução do Guia citado [9] , para além da contextualização de todo processo, da apresentação dos dados e das análises do Edital PNLD 2017, tem-se um estudo que detalha como as coleções aprovadas abordam os seguintes eixos: tratamento escolar das fontes históricas; relação entre texto-base e atividades; tratamento da temporalidade histórica; Temática Africana e Temática Indígena.

Cada um dos eixos citados fornece uma chave de leitura para interpretar as obras aprovadas, bem como remetem a pontos cruciais que um “bom livro didático de História deveria contemplar”, de acordo com o processo avaliativo e o edital que direcionou a forma e o método de avaliação. Na linha interpretativa seguida para a apresentação dos resultados no Guia optou-se por trabalhar com quatro indicadores de qualificação, independentes entre si, e entre os quatro volumes que compõem a coleção, mas que apontam para os patamares quanto ao que se espera com relação à progressão da complexidade em torno do tratamento do eixo, ao longo da coleção. Além disso, se o professor colocar lado a lado os resultados de cada coleção, disponibilizada no Guia em formato de alvos, o documento oferece dados que permitem compreender as diferenças entre as coleções. Os indicadores de qualificação dos eixos (Figura 2) foram formulados a partir do exigido no Edital PNLD 2017 – História, em seu Anexo III.

Os cinco eixos e os quatro indicadores de qualificação, acrescidos da análise, também apresentada no Guia, quanto à concepção sobre os significados de ensinar e aprender História para jovens no ensino fundamental, que alicerçava o Edital 2017, balizaria o perfil de livro didático de História almejado e indicaria os desafios a serem enfrentados. Dentre tantos desafios destacamos:

[…] a proposição de um ensino que conecte, efetivamente, os jovens a um saber contextualizado e que promova o protagonismo juvenil, dimensão tão cara, em nosso caso, à construção da compreensão da noção de sujeito histórico. (GUIA PNLD 2017, p. 10).

Chegamos, assim, ao segundo evento que confere contornos a proposição deste dossiê: a realização, em outubro de 2017, do Seminário “Livro Didático de História: Conhecimento Histórico e Didática da História no Mundo Contemporâneo”. A realização de uma ação avaliativa no formato evento, foi uma das propostas constantes no plano de trabalho enviado, quando da participação da Chamada Pública SEB / MEC Nº 01 / 2015. A princípio, e em síntese, seu objetivo seria avançar na construção de caminhos para os desafios identificados durante o processo de avaliação. No entanto, o sistema público de Educação no país, nos anos de 2016 e 2017, foi assolado por uma série de acontecimentos que imprimiram urgências quanto à discussão sobre o que se entende por conhecimento histórico, bem como a respeito de qual seu lugar e função na escola.

O acirramento de posições em torno do processo de elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as alterações impetradas no PNLD via decreto, redimensionaram o formato e a dimensão do Seminário, cujo objetivo inicial era promover análises que nos auxiliassem a compreender a relação entre a historiografia e os conteúdos nos livros didáticos de História, na almejada articulação com o pensamento dos jovens e as narrativas do mundo contemporâneo, fosse ampliado a fim de contemplar temáticas que contribuíssem com o pensar de caminhos para o livro de História, seja no contexto das reformulações em curso no PNLD, seja quanto às perspectivas para o mesmo na relação com a BNCC.

  1. O livro didático e sua função em meio aos embates contemporâneos

Considerando o que estamos vivenciando no país nos últimos quatros anos (2015 – 2018), observamos que os textos presentes neste dossiê transitam por temáticas que reafirmam, e aprofundam, princípios do Ensino de História (muitos dos quais anunciados no já citado Guia PNLD 2017 – História) construídos ao longo de décadas, em diferentes países do mundo, por pessoas que tem o campo do Ensino de História como lugar de ofício, quer seja na pesquisa, docência ou mesmo na produção de material didático. O resultado de todo esse trabalho foi (e continua sendo) publicado em diversos livros, periódicos, eventos e encontros. Portanto, estamos a tratar de uma caminhada construída passo a passo, pesquisa a pesquisa, aula a aula, ao longo de 30 anos, a qual fornece respostas plausíveis para o que se compreende por conhecimento histórico e em como ensiná-lo na escola. Estamos a tratar da Didática da História e de um dos temas caros a esse campo – o livro didático. Nesse sentido, não podemos silenciar frente a propostas que, simplesmente, desconsiderem toda a produção científica de uma área.

Ao longo do século XX, o livro da História da humanidade ampliou-se com capítulos dolorosos e sangrentos, mas, também, com conquistas científicas que redimensionaram as relações entre as pessoas em todo o planeta. Recorrer a Marc Bloch para iniciar a apresentação deste dossiê tem toda uma simbologia e direciona nosso objetivo para muitos comprometimentos. No Brasil, avançamos na produção de uma historiografia que valorizou outros eixos, para além do político, e possibilitou conhecer as várias histórias que formam a História do Brasil. Nos documentos curriculares produzidos no final da década de 1980, no contexto de redemocratização nacional, já se identifica o questionamento a um ensino de História direcionado somente para o passado e pautado na memorização de alguns fatos canônicos de uma história erigida a versão oficial (BITTENCOURT, 1998)

No apagar das luzes do século XX, a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9394 / 1996) reafirma e legaliza, em seu artigo terceiro, o compromisso do país em construir um sistema de Educação Escolar baseado nos seguintes princípios:

I – Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. II – Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber. III – Pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. IV – Respeito à liberdade e apreço à tolerância. V – Coexistência de instituições públicas e privadas de ensino. VI – Gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais. VII – valorização do profissional da educação escolar. VIII – gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino. IX – Garantia de padrão de qualidade. X – Valorização da experiência extraescolar. XI – Vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais. XII – Consideração com a diversidade étnico-racial. (BRASIL, 1996)

O contexto de elaboração e promulgação da LDB foi marcado por divergências, mas não identificamos, até o fechamento deste texto, estudos que apontem rupturas quanto a indicação de tais princípios como estruturantes da Educação Escolar no país. Podemos concluir que, em 1996, havia um certo consenso em torno de tais princípios. É neste contexto que são publicados os Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1997 (BRASIL, 1997), com o objetivo de indicar, como o nome mesmo assinala, parâmetros para a elaboração das propostas curriculares dos estados e municípios. Em sintonia com o preconizado na Lei, e como uma tentativa de concretizar nas escolas os princípios anunciados, o MEC elege os temas Ética, Saúde, Meio Ambiente, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo, e Pluralidade Cultural, para que perpassem todas as disciplinas e os anos de escolaridade, denominando-os por Temas Transversais.

Nas primeiras décadas do século XXI, fomentou-se a necessidade de olhar ao redor e identificar as diferenças, de todos os tipos, para podermos construir relações de respeito, de empatia. No campo específico da História, os estudos sobre nosso passado, a partir dos mais variados recortes e fontes, e sob a liberdade de um regime democrático, ampliaram-se significativamente. Com a ampliação de universidades por todo território nacional, novos cursos de História foram criados e, em decorrência, ramificaram-se os olhares atentos para a realidade vivida, interpretando-a na constante relação temporal que caracteriza o trabalho do historiador. Soma-se, aqui, também, a ação de diversos Movimentos Sociais que, em torno de pautas distintas, colocaram em visibilidade uma cartela de justas reivindicações de populações que eram (e são) empurradas para a margem da sociedade. A conquista de direitos, por esses grupos, redimensionou, dentre outras tantas questões, o que se ensina sobre a História do Brasil na escola.

O que o livro didático de História ainda não alcançou é a capacidade de permitir ao aluno, a partir de sua leitura, chegar aos sentidos, despertar a fascinação e os raciocínios históricos. A forma de apresentação do passado nas narrativas do livro didático de História não incita a percepção das experiências históricas. Segundo Rüsen (2001, p.119) “[…] o livro didático de história deveria abrir os olhos das crianças e jovens para as diferenças históricas e as diferentes qualidades da vida humana através dos tempos.” Não apresentando como fazem hoje os livros didáticos “[…] unicamente experiências históricas já interpretadas e a percepções já assimiladas de forma cognitiva” (p.119). Caramez (2014), em estudo com professores de História, ao analisar as relações com a experiência de utilização do livro didático, percebeu que ele não proporciona determinados tipos de experiências didáticas como, por exemplo, o uso da internet possibilitaria:

Como a ruptura com a linearidade da história, a possibilidade de visitar vários passados e de encontrar diferentes perspectivas de um mesmo acontecimento histórico, uma vez que nos livros didáticos, as fontes primárias e secundárias, geralmente, concordam com o texto didático do autor, como também, no que diz respeito à mudança na relação entre o presente e o passado, na medida em que a relação com o passado é quantitativamente aumentada e qualitativamente expandida (CARAMEZ, 2014, p. 98-99).

O livro didático de História que temos hoje no país traz em sua constituição todo esse histórico de alterações. No processo de elaboração de cada edital, a equipe técnica responsável tinha a difícil tarefa de transformar os princípios, acima elencados, em regras claras para comporem, juntamente com os saberes de cada disciplina, um conteúdo escolar. Como o PNLD é um programa de temporalidade alargada é possível, ao longo dos últimos 20 anos, identificar como os livros didáticos de História se alteraram e, sem nenhuma dúvida a respeito, se modificaram na direção de uma abordagem da História mais próxima daquela compreendida como capaz, se não de fomentar o desenvolvimento do pensamento histórico, pelo menos de permitir que os alunos tivessem acesso a uma história plural e com contornos sociais definidos por políticas públicas que inseriram, no campo da produção didática, temas antes relegados à iniciativa do professor para serem abordados em sala de aula. Como exemplo tem-se a História da África e dos africanos antes da escravização no Brasil, assim como a abordagem da História indígena antes da chegada dos portugueses por estas terras, bem como a continuidade da existência de indígenas para além do mundo colonial brasileiro. Além deles, há outros temas, já abordados pela historiografia contemporânea, mas que demoraram para serem trabalhados nos livros didáticos de História, como a História das mulheres, dos idosos ou mesmo das crianças.

Os critérios de avaliação dos livros didáticos de História preservaram, até o momento, aquilo que é mais importante na área de História: o respeito pela produção científica. Temos de garantir que sejam quais forem os princípios e critérios propostos para avaliação de livros didáticos, estes estejam representados pela pluralidade de ideias, bem como pelo rigor metodológico e científico e, de igual modo, que a legitimidade dos conteúdos históricos seja determinada pela ciência histórica e não por valores morais ou religiosos. Pensando, como afirma Isabel Barca, que a avaliação de livros didáticos se insere em políticas públicas para formação de cidadãos, defendemos que estes sejam avaliados com o objetivo de formar gente livre, com ideias próprias e atentas ao que se passa à sua volta, em vez de simples cidadãos – robôs, muito competentes tecnicamente, mas que não pensam por suas consciências, e sim, o que lhes propõem pensar. Estes objetivos são importantes para defesa dos valores da democracia e da liberdade em sociedades contemporâneas.

Notas

3. Sobre o assunto ver MIRANDA; ALVIM. (2013) e CASSIANO (2017), dentre outros.

4. Coligação “Com a força do povo”, PT, PMDB, PSD, PP, PR, PDT, PRB, PRÓS e PCdoB.

5. Coligação “Muda Brasil”, PSDB, SD, PMN, PEN, PTN, PTC, DEM, PTdoB e PTB.

6. O prazo de finalização do PNLD em cada universidade pode apresentar variações ditadas pelas demandas dos editais e recursos.

7. O processo de avaliação das obras teve início no mês de dezembro de 2015, antes da liberação dos recursos, devido a mediação da COGEAM que custeou as passagens e a estadia dos avaliadores para a realização do primeiro treinamento.

8. Disponível em: http: / / www.fnde.gov.br / programas / programas-do-livro / livro-didatico / guiado-livro-didatico / item / 8813-guia-pnld-2017

9. Os textos de introdução do Guia PNLD 2017 – História foram elaborados pela Profª. Drª. Sonia Regina Miranda, da Universidade Federal de Juiz de Fora, convidada para compor a equipe na função de Coordenadora Pedagógica do Guia do Livro Didático

Referências

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Propostas curriculares de História: continuidades e transformações. In: BARRETO, Elba S. de Sá. (Org.). Os currículos no ensino fundamental para as escolas brasileiras. São Paulo: Autores Associados / Fundação Carlos Chagas, 1998, p. 127-161.

BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BRASIL, Lei de Diretrizes e B. Lei nº 9.394 / 96, de 20 de dezembro de 1996.

BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC / SEF, 1997.

BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais – História / Geografia (1ª a 4ª séries). Brasília: MEC / SEF, 1997.

BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais – História. Brasília: MEC / SEF, 1998.

BRASIL. Guia dos livros didáticos. PNLD 2017: História – Ensino Fundamental / anos finais. Brasília, DF: Mistério da Educação, Secretaria de Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, 2016.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Fundamental. Edital de Convocação 02 / 2015 – CGPLI: Edital PNLD / 2017.

CARAMEZ, Cláudia Senra. A aprendizagem histórica de professores mediada pelas tecnologias da informação e comunicação: perspectivas da educação histórica. 2014. Dissertação (Mestrado em Educação) – Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná, Curitiba.

CASSIANO, Célia Cristina de Figueiredo. Política e economia do mercado do livro didático no século XXI: globalização, tecnologia e capitalismo na educação básica nacional. In: ROCHA, Helenice; REZNIK, Luis; MAGALHÃES, Marcelo de Souza (Org.). Livros didáticos de história: entre políticas e narrativas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017, p. 83 – 100.

LE GOFF, Jacques. Prefácio, por Jacques Le Goff. In: BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 15 – 34.

MIRANDA, Sonia Regina; ALVIM, Yara. Livros na batalha de ideias: a sedução da verdade no debate público em torno dos livros didáticos de história. In: GALZERANI, Maria Carolina Bovèrio; PINTO JUNIOR, Arnaldo; BUENO, João Batista Gonçalves (Org.). Paisagens da Pesquisa Contemporânea sobre o Livro Didático de História. Campinas: Paco Editorial / Centro Memória Unicamp, 2013, p. 373-398.

RÜSEN, Jörn. O livro didático ideal. In Schmidt, M.A., Barca, I., & Martins, E.R.. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora da UFPR; Braga (PT): Uminho. 2010

SCHWARCZ, Lilian Moritz. Apresentação à edição brasileira. In: BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 7 – 12.

Marlene Rosa Cainelli1 – Professora do Departamento de História e Pesquisadora do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação e do programa de Mestrado em História- Coordenadora Institucional do PNLD / 2017.

Sandra Regina Ferreira de Oliveira2 – Professora do departamento de Pedagogia da Universidade Estadual de Londrina e Pesquisadora do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação- Coordenadora Pedagógica do PNLD / 2017.


CAINELLI, Marlene Rosa; OLIVEIRA, Sandra Regina Ferreira. Livro Didático de História: conhecimento histórico e Didática da História no mundo contemporâneo. História & Ensino, Londrina, v.24, n.2, 2018. Acessar publicação original [DR].

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Didática da História e ensino de História / Antíteses / 2016

As reflexões em torno do ensino de História (também) vêm de longa data. No caso do Brasil, desde o início do século passado, diversos trabalhos têm se caracterizado por propor reflexões em torno dos objetivos, finalidades e métodos de ensino. Esses estudos caracterizaram-se de forma predominante pela proposição de metodologias de ensino mais eficazes, visando superar o chamado ensino tradicional, e por definir objetivos e finalidades direcionadas à função do conhecimento na formação da personalidade e do comportamento cívico dos educandos.

Uma característica predominante no longo processo de consolidação desse Código Disciplinar tratou-se da cristalização dos conteúdos em torno de uma visão predominante da história como uma grande narrativa, no chamado modelo quadripartite – história antiga, medieval, moderna e contemporânea – que privilegia uma abordagem político-econômica, com centralidade na concepção de herança judaico-cristã como raiz do “mundo ocidental”, que depois se subdivide em diversas histórias nacionais particulares.

Outra característica relevante é a centralidade que tiveram, e ainda têm, as discussões influenciadas por teorias advindas dos campos da psicologia e da pedagogia para refletir sobre o ensino e a aprendizagem da História. Nesta perspectiva, quando se trata de discutir o ensino, o foco se estabelece na busca por estratégias de ensino que facilitem a aprendizagem. E quando a discussão é a aprendizagem, há uma ênfase em concepções cognitivistas, que abordam o problema do aprender em concepções predominantemente psicológicas, distanciando-se dos aspectos relacionados à epistemologia do conhecimento histórico, que influenciam no processo de aprendizagem (URBAN, 2009).

Em contraponto a essas abordagens historicamente hegemônicas, os estudos da Didática da História tem se difundido no Brasil a partir de proposições inovadoras. Essas reflexões surgiram na Alemanha nos anos 1970, e alargaram as preocupações com a história produzida nas universidades e a história ensinada nas escolas, tomando como objeto de investigação e reflexão as formas como o pensamento histórico era partilhado pela sociedade e quais efeitos sociais e culturais produzia.

Klaus Bergmann (1989) postulou os fundamentos básicos da Didática da História, definindo três tarefas para essa área do conhecimento. Uma tarefa empírica, que teria como fundamento a investigação dos processos de internalização, reprodução, produção e divulgação do conhecimento histórico, entendidos como processos coletivos da formação da consciência histórica, conduzidos por sujeitos que agem em contextos e experiências específicos. A tarefa é reflexiva, que revelaria elementos didáticos internos à ciência histórica  e analisaria seu significado geral para a vida humana prática, a partir da explicitação de processos de ensino / aprendizagem e formação e autoformação dos indivíduos, grupos e sociedades a pela História e a partir dela. E a tarefa normativa, que ressalta a regulamentação da História nos processos de ensino, nos contextos de orientação da vida prática e nas apropriações que são feitas dessa ciência pelos meios de comunicação de massa.

Esse enquadramento proposto por Bergmann sugere o caráter dessa concepção de Didática da História, que entende o conhecimento histórico como vinculado a um conjunto de processos de formação cultural dos indivíduos, de representações da memória e de lutas político-sociais. Sendo que as três tarefas definidas se articulam aos objetivos de investigação e reflexão, especialmente sobre a natureza especificamente histórica do pensamento e da explicação histórica, bem como de normatização das formas de transmissão e publicização do conhecimento histórico.

Seguindo essa mesma vertente, Jörn Rüsen (2012) define a Didática da História como ciência da aprendizagem histórica. A partir dessa definição, busca fundamentar a superação daquelas visões tradicionais, que concebiam a Didática da História como área voltada à formação de professores, a partir da transmissão de técnicas e métodos de ensino. Nesse enfoque, passa a ser central o papel da teoria da consciência histórica. Há uma preocupação em envolver sujeitos aprendizes no processo de investigação e reflexão sobre a aprendizagem histórica. A expansão para a análise global de todas as formas e funções da consciência histórica leva, portanto, a Didática da História a ser compreendida como autônoma, uma subdisciplina da ciência da História.

Para esclarecer melhor essa noção abrangente da Didática da História como uma subdisciplina no campo da ciência histórica, Rüsen retoma e reestrutura a definição das três funções atribuídas a essa área do conhecimento, estabelecendo que as três tarefas seriam a empírica, a normativa e a pragmática. Essa reorganização se dá no sentido de desenvolver uma compreensão global das formas e funções do conhecimento histórico na formação dos indivíduos, bem como estabelecer parâmetros científicos, metodológicos e normativos para o encaminhamento dos estudos sobre ensino e aprendizagem da História.

Dentre as tarefas a serem cumpridas no campo empírico, Rüsen (2012) define: examinar processos reais pelos quais se manifestam as diferentes condições da aprendizagem histórica; analisar suas formas e resultados, bem como seu papel no processo de individualização humana; perseguir o objetivo da aprendizagem histórica e descrever sua diversidade concreta; identificar seus fatores e esclarecer sua relação sistemática.

As funções normativa e pragmática são complementares, e se referem ao aspecto ativo da Didática da História como campo de conhecimento definidor de parâmetros, critérios, métodos e diretrizes para a aprendizagem histórica. Normativamente, Rüsen considera que a Didática da História deveria: levantar a questão do que deve ser a aprendizagem histórica; investigar pontos de vista nos quais a aprendizagem histórica deve influenciar, planejar, moldar, dirigir e controlar; e justificar tais pontos de vista como condições consensuais dos objetivos de ensino e da aprendizagem histórica.

No campo pragmático, a função da Didática da História se relacionaria a definições no campo da prática docente, como por exemplo: definir como a aprendizagem histórica pode ser organizada de acordo com planos e metas pré-determinadas; examinar estratégias do aprendizado histórico; analisar a prática em sala de aula, a experiência do professor e as regras e práticas. Enfim, trata-se de uma dimensão em que tal campo do conhecimento tomaria por tarefa analisar e refletir sobre a prática direta com o ensino da História.

Entendendo assim a Didática da História como ciência da aprendizagem histórica, que se fundamenta nos pressupostos da teoria da consciência histórica, Rüsen define também quatro temas: primeiramente a metodologia do ensino na sa la de aula, especialmente em razão da necessidade de superação do distanciamento entre ensino e alunos; em segundo lugar, a investigação da função do acontecimento e da explicação histórica na vida pública, no qual se inserem todas as formas de representação da experiência histórica; o terceiro tema seria o estabelecimento da finalidade do ensino de história, ou do que se espera que o conhecimento histórico mobilize nos estudantes; e por fim, o quarto tema seria investigação da natureza, da função e da importância da consciência histórica, a partir da qual entende-se que há conexões temporais essenciais num conjunto de operações mentais que definem o pensamento histórico e sua função na cultura humana.

Tomando como base essas contribuições, pensar e investigar o ensino de História hoje deixa então de ser uma questão de estratégia pedagógica, pois a escola é entendida como um espaço de difusão do pensamento histórico, o que se torna também objeto de pesquisa. Já a aprendizagem histórica deixa de ser pensada como processo cognitivo subjetivo, e surge um conjunto de investigações e proposições teóricas que visam identificar as interfaces entre a aprendizagem histórica e a forma como o pensamento histórico circula culturalmente.

Na mesma época em que surgiram os estudos da Didática da História na Alemanha, estudiosos ingleses também questionaram as formas hegemônicas de abordagem da aprendizagem histórica. Os estudos desenvolvidos por esses investigadores, conhecidos como Educação Histórica, que se difundiram posteriormente por países como EUA, Canadá, Espanha e Portugal, e mais recentemente no Brasil, se caracterizaram por problematizar as concepções de aprendizagem histórica fundamentadas conceitualmente na psicologia da aprendizagem, e encontraram nas discussões epistemológicas sobre o conhecimento histórico interfaces para desenvolver estudos sobre a aprendizagem histórica de crianças e jovens.

As duas vertentes, a Didática da História e Educação Histórica, chegaram ao Brasil e à América Latina nas décadas de 1990-2000, e têm contribuído de forma muito intensa para alargar as reflexões sobre o ensino de História. Esse alargamento se caracteriza tanto pela inovação teórica, que permite questionar o ensino como um processo consolidado de transmissão de conteúdos históricos, e a aprendizagem como processo individual de assimilação de informações históricas. E, do ponto de vista metodológico, têm permitido estruturar investigações que utilizam variadas abordagens, apresentando problemáticas e instrumentos diversificados de pesquisa, trazendo contribuições relevantes para se pensar a importância da história na sociedade, bem como do ensino de história na construção das identidades e do pensamento histórico dos sujeitos.

Nesse sentido, a denominação tradicional Ensino de História, já não pode ser pensada como categoria isolada. Uma vez que os estudos sobre conceitos, conteúdos e métodos do ensino de história, em ambientes escolares, não pode mais fugir ao debate sobre os impactos sociais do conhecimento histórico mobilizado na aprendizagem, nem deixar de contemplar as discussões da Didática da História, que objetivam alargar as reflexões e repensar o ensino em uma relação dialógica entre os sujeitos que mobilizam o conhecimento histórico nas interações sociais.

Devido à maior abrangência e possibilidade de aglutinação de diferentes formas e tendências de investigação, optou-se por denominar esse Dossiê “Didática da História e Ensino de História”, visando agregar contribuições renovadas nas pesquisas sobre ensino e aprendizagem histórica, sem menosprezar ou segregar quaisquer estudos que se preocupem com as formas pelas quais a história é ensinada, aprendida, difundida e partilhada, tanto em espaços de escolarização quanto na sociedade em geral.

Vale ressaltar que se trata de um campo de investigações amplo e com uma significativa profusão de trabalhos empíricos e teóricos publicados na última década, revelando uma inclinação a essas discussões e uma acentuada preocupação com a história escolar e com a cultura histórica. Como exemplo dessa relevância do tema, podemos destacar os diversos dossiês temáticos publicados nos últimos anos em revistas de circulação nacional: Educação Histórica, Teoria da História e Historiografia, nesta mesma Revista Antíteses em 2012; Didática da História, na Revista Teoria da História – UFG, em 2014; A Educação Histórica como campo investigativo, na Revista Diálogos – UEM, em 2015; Consciência Histórica, Ensino de História e Fronteira, na Revista Fronteiras – UFGD, em 2015; Ensino de História e Consciência Histórica, Revista História Hoje – ANPUH, 2015; Aprendizagem histórica: pesquisa, teoria e prática, na Educar em Revista – UFPR, em 2016.

Visando contribuir com essa literatura, o presente dossiê foi organizado a partir da colaboração de investigadores vinculados a distintas universidades e centros de estudos, em nível internacional, destacando-se contribuições de colegas do México e do Chile, bem como de universidades de diferentes estados brasileiros, como Paraná, São Paulo, Mato Grosso e Rio Grande do Sul. O objetivo da proposta é difundir pesquisas que se preocupam com o ensino e a aprendizagem da história, bem como com a formação docente em história e com os impactos da difusão do conhecimento histórico nos âmbitos social, cultural e político.

Além da difusão espacial alargada desses estudos, destaca-se também um rejuvenescimento do campo, caracterizado pela adesão de jovens pesquisadores que abordam de forma original e complexa os problemas colocados por pesquisadores já consolidados. Outra característica relevante no dossiê é também o esforço de aproximação entre diferentes leituras dos referenciais teóricos das pesquisas em Ensino de História, Educação Histórica e Didática da História, refletindo o período de transição que vivenciamos e a possibilidade de diferentes leituras quanto a conceitos fundantes, como consciência histórica, aprendizagem histórica, saber histórico e ciência histórica.

Optamos por dividir o dossiê em duas partes, cumprindo distintas tarefas da Didática da História: A primeira parte é composta por cinco artigos, que apresentam estudos vinculados à tarefa empírica da Didática da História, pois trazem estudos empíricos, de caráter qualitativo, preocupados com a análise das ideias históricas de sujeitos em processo de escolarização, professores e alunos, e as problemáticas identificadas que dizem respeito à condução das diretrizes e fundamentos da Didática da História num âmbito geral. Já a segunda parte do Dossiê é composta por seis artigos, que trazem estudos dedicados a tarefa normativo-pragmática na Didática da História, focando a pesquisa em documentos e práticas que visam regular e definir conceitos, normas e procedimentos de difusão do conhecimento histórico, estabelecimento de diretrizes de ação e interpretação do conhecimento histórico partilhado socialmente e formação dos profissionais do ensino de história.

Assim, na primeira parte do Dossiê, o artigo do pesquisador Éder Cristiano de Souza, docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana – UNILA, relata uma pesquisa sobre as ideias históricas de professores da educação básica e estudantes de licenciatura em História, brasileiros e paraguaios, a partir dos conceitos de objetividade e multiperspectividade.

A pesquisa evidencia como a cultura histórica influencia nas interpretações históricas, e faz isso a partir de uma experiência investigativa sobre como os sujeitos da pesquisa interpretam documentos relativos à história da Guerra da Tríplice Aliança, o que lhe permite evidenciar diferenças qualitativas importantes nas interpretações de brasileiros e paraguaios. Os dados do estudo empírico permitem propor reflexões sobre a questão de se levar em conta que a aprendizagem dos conceitos de segunda ordem, ou conceitos epistemológicos, não pode ser isolada da relação afetiva e identitária que se estabelece com determinados conceitos históricos no âmbito da cultura histórica nacional.

O artigo da pesquisadora chilena Gabriela Alejandra Vasquez Leyton, da Universidad Católica de Valparaíso, aborda as noções dos estudantes chilenos de nível médio a respeito do conceito de Ditadura. Para isso, apresenta um estudo empírico com 616 jovens de Ensino Médio chileno, sobre os conceitos de Ditadura que formulam e sobre as implicações dessas concepções para seu comportamento como cidadãos. O estudo permite observar como os jovens desenvolvem variadas concepções sobre temas relevantes como concentração de poder, ditadura, liberdades individuais, direitos humanos, entre outros. Constata a predominância da liberdade de expressão e do direito ao voto como valores presentes entre os jovens, e apresenta o desafio de ensinar história a partir da temática da Ditadura, visando fomentar atitudes que permitam valorizar processo e instituições democráticas, a partir de estratégias de aprendizagem que favoreçam a participação, o respeito e a tolerância.

O artigo de Geyso Dongley Germinari, docente da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná – UNICENTRO, apresenta um estudo com jovens estudantes do Ensino Médio de uma escola técnica em Irati-PR. O pesquisador estabelece um debate sobre diferentes concepções de história e suas implicações epistemológicas e educacionais, o que lhe dá subsídios para analisar os dados do estudo empírico realizado, onde constata que a ideais dos jovens priorizam a compreensão da História como a totalidade das ações humanas no tempo e no espaço.

O artigo das pesquisadoras Glória Solé, docente da Universidade do Minho, Portugal, e Nayra Llonch, docente da Universitat de Lleida, Espanha, mostram a potencialidade do uso de objetos do patrimônio familiar para a explicação histórica, levando em conta que estes vestígios do passado são importantes para a história pessoal. Para isso, as autoras partem de dois estudos de caso interdependentes realizados de 2013 a 2016: um, envolvendo alunos do curso de formação de professores em educação primária com a finalidade de refletir sobre metodologias didático-pedagógicas para a aprendizagem histórica e outro, a estratégia de se criar o museu na escola. Neste último, as autoras tomam como inspiração o projeto Recriando Histórias coordenado pelas professoras Maria Auxiliadora Schmidt e Tania Garcia Braga da Universidade Federal do Paraná. O estudo realizado engloba futuros professores e alunos da escola primária, integrando pesquisa, extensão e ensino, e ainda, explorando diversas metodologias, como observação participante, relatos autobiográficos e questionários.

Fechando essa primeira parte do Dossiê, os pesquisadores Marcia Elisa Teté Ramos, da Universidade Estadual de Londrina – UEL, e Ronaldo Cardoso Alves, da Universidade Estadual de São Paulo – UNESP, Câmpus Assis, contrastam as representações 89 graduandos do curso de História da UEL com as representações de 424 alunos do Ensino Médio da escola pública. Partindo de elementos próximos ao estudo etnográfico, com depoimentos colhidos de 2011 a 2014, os autores demonstram como os jovens universitários pensam os jovens secundaristas. Contextualizando estes dois grupos de jovens, suas ideias históricas, seus códigos culturais e horizonte de expectativas, os autores procuram refletir sobre aspectos da orientação temporal e formação identitária. O artigo indica uma necessária desconstrução de estereótipos construídos em relação ao jovem aluno do Ensino Médio. Desconstrução esta que implica  pensar historicamente o aluno da educação básica, algo que deveria ser proposto nos cursos de formação de professores.

A segunda parte do Dossiê se inicia com o artigo dos investigadores mexicanos Gerardo Daniel Mora Hernández e Rosa Ortiz Paz, da Escuela Normal Superior de México, que apresenta a experiência de organização da formação docente nessa instituição, resgatando problemáticas, percursos e contribuições teóricas para a definição do que chamam de um “Modelo de Educação Histórica” para a formação de professores. Explicitam então como desenvolvem uma formação docente em história com a preocupação em ressaltar as contribuições de uma didática específica da história, que leve em consideração distintos paradigmas formativos e que se preste a desenvolver distintas habilidades docentes, fugindo ao modelo recorrente de formação de professores, que separa os conteúdos históricos específicos dos conteúdos pedagógicos. Conclui afirmando que o modelo de Educação Histórica já permitiu o desenvolvimento de habilidades docentes de mais de uma centena de estudantes normalistas no contexto do ensino secundário público no Distrito Federal mexicano.

Na sequência, o artigo de Maria Aparecida Leopoldino, docente da Universidade Estadual de Maringá – PR, discute a possibilidade de estabelecimento de uma didática específica da História, que supere o modelo da narrativa eurocêntrica e identitária, e que leve em consideração as contribuições da epistemologia da história, especialmente na perspectiva da história problema, em consonância com um olhar sobre a cultura histórica e necessidade de constituição de uma pragmática da didática da história voltada para a orientação da vida prática. Pretende assim que o ensino de história utilize como prática pedagógica a operação historiográfica e problematize a memória social, possibilitando uma leitura temporal dos problemas sociais, vinculando passado e presente. Concluindo que “a Didática deve participar do debate sobre o campo epistemológico da história, sobre questões relativas à memória, sobre os usos do passado e a cultura histórica, contribuir, enfim, com a normatização da operação historiográfica escolar”.

Já o artigo “O legado da aprendizagem histórica: refazendo percursos de leituras” trata – se de um trabalho em conjunto do pesquisador Renilson Rosa Ribeiro, da Universidade Federal de Mato Grosso, com Halferd Carlos Ribeiro Júnior e Mairon Escorsi Valério, da Universidade Federal da Fronteira Sul, que discutem as formas predominantes de pesquisa sobre ensino e aprendizagem histórica no Brasil nas últimas décadas, identificando a inserção dos debates da Educação Histórica e da Didática da História no Brasil. Apresenta também um resgate dos primeiros estudos em Didática da História no Brasil, ressaltando que a problemática de se vincular a discussão sobre ensino e aprendizagem histórica aos fundamentos epistemológicos do conhecimento histórico já se fazia presente no Brasil na década de 1950.

O artigo “Os Parâmetros Curriculares Nacionais e o processo de constituição de uma didática da história para os anos iniciais” de Tiago Costa Sanches, docente da UNILA, em Foz do Iguaçu-PR, toma os PCNs como documentos privilegiados de estudos em Didática da História, tratando-os como textos visíveis que revelam características de um código disciplinar em história. Com enfoque no documento voltado aos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, destaca a prevalência de conceitos e abordagens vinculados a uma epistemologia educacional influenciada por teorias advindas do campo da psicologia e da pedagogia, e ressalta a importância do avanço no sentido de construir um código disciplinar mais próximo a uma epistemologia do conhecimento histórico.

O artigo “História e Ensino de História das Ditaduras no Brasil e na Argentina” de Juliana Pirola da Conceição Balestra, também docente da UNILA, em Foz do Iguaçu-PR, aborda a problemática do ensino de história sobre as Ditaduras de Segurança Nacional no Brasil e na Argentina, realizando um estudo comparativo que permite verificar como, no caso argentino, a inserção dessa questão no ensino tratou-se de um amplo projeto político, que fez com que essa questão se tornasse central no ensino de História naquele país nas últimas duas décadas. Enquanto no caso brasileiro, Juliana verifica uma determinada cultura do esquecimento, que leva a certa dificuldade de estabelecer na Didática da História a presença dessas discussões sobre as reais dimensões, os impactos e as heranças do último governo ditatorial vivenciado no país.

Fechando o Dossiê, o artigo “Manuais de Didática da História: contribuições para entender suas especificidades” de Osvaldo Rodrigues Júnior, docente da UFMT em Cuiabá -MT e Tânia Braga Garcia, Docente da UFPR, em Curitiba-PR, contribui para o estabelecimento de critérios de análise e investigação de manuais de formação de professores em história, estabelecendo parâmetros e categorias que auxiliam a entender a importância desses documentos como fontes de investigação da cultura escolar e das práticas, procedimentos e concepções de ensino e aprendizagem histórica.

Esperando contribuir qualitativamente com o avanço das investigações, concepções e práticas na Didática da História, concluímos essa apresentação convidando os leitores a uma imersão nas diversas problemáticas suscitadas nos últimos anos com relação ao Ensino de História e ao conhecimento histórico, com especial atenção à relevância desse debate no âmbito das políticas públicas e das lutas sociais vivenciadas atualmente.

Referências

BERGMANN, Klaus. A história na reflexão didática. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 9, n. 19, p. 29-42, set. 1989 / fev. 1990.

RÜSEN, Jörn. Aprendizagem histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W. A. Editores, 2012.

Éder Cristiano de Souza

Marcia Elisa Teté Ramos

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Didática da História e Ciência Histórica: possibilidades e limites da ciência do aprendizado histórico / Revista de Teoria da História / 2014

A organização de um dossiê sobre Didática da História em uma revista de Teoria da História não é algo que pode ser considerado comum, cotidiano, banal. Por muito tempo, a didática da história foi considerada uma área estranha à ciência histórica e aos historiadores. Se hoje a teoria da história se interessa pela didática da história, isso ocorre tanto porque a teoria tem ampliado a sua compreensão sobre a ciência histórica, como porque a didática da história tem legitimado a sua importância no interior dessa ciência.

A teoria da história, enquanto meta-teoria (Historik), investiga os fatores e fundamentos da ciência histórica. Ao perceber que tal ciência surge da própria vida humana no presente e exerce sobre ela uma função de orientação temporal, ela torna a didática uma de suas preocupações fundamentais. Ao mesmo tempo, a didática da história, ao deixar de ser uma simples reflexão sobre como ensinar história nas escolas e passar a se preocupar com a relação entre a história (todas as histórias e dentre elas a ciência histórica) e a vida, torna-se uma área inerente ao pensamento histórico e relevante para a teoria da história. Leia Mais