Didática da História e o ensino de História: questões contemporâneas – Parte 1 | CLIO- Revista de Pesquisa Histórica | 2021

No Brasil, nos últimos vinte anos, temos assistido a uma ampliação das produções acadêmicas que abordam o ensino de História em suas múltiplas dimensões. Por caminhos diferentes, inúmeros investigadores têm realizado trabalhos, projetos e pesquisas que visam analisar as relações que estudantes e professores estabelecem com a disciplina de História, como se dá o processo de produção do conhecimento histórico escolar, bem como os desafios e as vicissitudes presentes no ensinar e aprender História em contextos escolares e não escolares.

No entanto, se hoje entendemos que existe uma pluralidade de abordagens relativas ao ensino de História e que diferentes espaços continuam sendo construídos visando o desenvolvimento de investigações nessa área, isso só possível devido aos constantes embates, resistências e diálogos que foram travados, a partir dos anos de 1970, que objetivaram reconstituir a História, enquanto disciplina escolar autônoma, que naquele momento havia perdido o seu espaço epistemológico para os Estudos Sociais.

Maria Lima destaca que as pesquisas realizadas no campo do ensino de História, de modo geral, passaram a se preocupar com “(…) a constituição de um ensino de história renovado, investigando não só a história ensinada e aprendida no interior da escola, mas também os usos sociais do passado e as aprendizagens que s e dão para além dos muros dessa instituição1. Além disso, os pesquisadores e professores procuraram, cada vez mais, destacar que ensinar de História na escola não significava de modo algum “depositar conteúdos prontos e acabados”, produzidos no interior das universidades. A escola passou a ser entendida como o lócus da produção do conhecimento histórico escolar, isto é, o espaço em que alunos e professores poderiam construir análises e interpretações sobre a História e suas vidas em sociedade.

Neste sentido, uma das vertentes investigativas que tem procurado evidenciar as diferentes formas do saber histórico presentes na cultura histórica, em especial suas implicações na formação da identidade e do pensamento histórico de estudantes e professores, é a chamada Didática da História. No Brasil, as principais referências são os textos de autores alemães como Klaus Bergmann, Jörn Rüsen e Bodo Von Borries.

Oldimar Cardoso, no Dicionário de Ensino de História, salienta que

O campo da didática da história foi criado originalmente na República Federal da Alemanha, mas expandiu-se já na década de 1970 pela reunião com historiadores austríacos e suíços de língua alemã. Em 1980, com a criação da Sociedade Internacional de Didática da História ou Internacional Society for History Didactics (ISHD; https://ishd.co/), a concepção alemã sobre esse campo de pesquisa começou a ser partilhada com muitos países, sendo bem recebida especialmente a partir da década de 1990 nos antigos países comunistas. A experiência alemã sobre como lidar com um passado nazista e comunista, embasada em grande medida pelas pesquisas do campo da didática da história, serve de modelo desde então a diversos países, especialmente àqueles com histórias traumáticas recentes2.

A Didática da História tornou-se, pois, um campo fértil de investigações em diferentes países. A principal contribuição dos estudos dessa área é perceber a importância da História e do ensino de História para a vida prática dos indivíduos, para a formação da consciência histórica e do pensamento histórico, bem como os usos públicos da História e suas relações com a cultura histórica. Os referenciais teórico-metodológicos são desenvolvidos pelos investigadores a partir das demandas de orientação temporal de suas próprias realidades sociais, o que a faz ser um campo heterogêneo em suas abordagens.

Na Alemanha, por exemplo, a Didática da História – Neu Geschichtsdidaktik – agrega um conjunto de reflexões e pesquisas, pautadas na teoria e epistemologia da História e é concebida, conforme Jörn Rüsen3, como a ciência da aprendizagem histórica, isto é, uma parte indissociável da História enquanto Ciência. Esse campo investigativo não se ocupa apenas com a realidade escolar, mas sim com todas as formas e expressões da consciência histórica e da cultura histórica da sociedade.

Na França, a Didática da História – Didactiques de l’Histoire – tornou-se uma área de preocupação de pesquisadores como Nicole Tutiaux-Guillon, Nicole Lautier, Nicole AllieuMary, Marc Deleplace, Henri Moniot e François Audigier, que a partir dos anos de 1980, num contexto de transformações sociais e escolares em que o modelo de cultura escolar tradicional mostrou-se incompatível com a cultura juvenil que se desenvolvia naquele momento4 . Na vertente francesa, a Didática da História investiga os conteúdos, objetivos e práticas de ensino e aprendizagem da História pautadas em referências teórico-metodológicas provenientes dos campos da educação, história da educação, psicologia, ciências sociais (etnologia, antropologia, sociologia), dentre outros e, que ao mesmo tempo, constrói suas próprias abordagens teóricas5.

No Brasil, existem inúmeros investigadores e grupos que tem realizado importantes trabalhos na perspectiva da Didática da História, procurando evidenciar, sobretudo, os efeitos do conhecimento histórico na construção dos diferentes modos de geração de sentido histórico por estudantes e professores. O projeto coordenado pelo professor Luis Fernando Cerri, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) – e publicado em forma de livro com o título “Os jovens e a História: Brasil e América do Sul” (2018), é um dos grandes exemplos de pesquisa empírica que tem, como um de seus objetivos, identificar e analisar os elementos que formam a consciência histórica dos jovens, em diferentes contextos e países. Trata-se um projeto coletivo que, conforme o próprio autor, de maneira mais específica

(…) buscou identificar e analisar, comparativamente, elementos de cultura histórica, cultura política e consciência histórica de jovens estudantes entre 15 e 16 anos no Brasil e em outros quatro países da América do Sul. A metodologia consistiu na análise estatística aplicada às Ciências Humanas de dois bancos de dados, produzidos a partir das respostas de milhares de estudantes e centenas de professores de História a um extenso questionário para cada grupo, aplicado entre agosto de 2012 e maio de 2013. O estudo permitiu a produção de reflexões no campo da Teoria da História, consideradas as condições sociais de produção, circulação e uso do conhecimento histórico enquanto questões atinentes à teoria, segundo a formulação de Klaus Bergmann (1989/1990)6.

Nos textos que compõe a obra podemos encontrar inúmeras reflexões, realizadas por diferentes pesquisadores de universidades distintas, que abordam temas como as ideias dos jovens, do Mercosul, sobre presente, passado e futuro; as concepções de ensino e aprendizagem; cidadania e intencionalidades no ensino de História como elementos da formação histórica, política e cidadã; cultura política e cultura histórica; representações dos estudantes sobre os heróis nacionais; identidade latino-americana, dentre outras temáticas7.

Nos países de língua espanhola da América Latina, embora a tradição alemã da Didática da História seja menos conhecida, nos últimos anos ela vem se firmando como referência teórica e metodológica a partir da qual tem-se realizado um questionamento acerca da visão instrumental do um ensino de História, pautado pela transferência de conhecimentos e memorização acrítica de informações associadas a eventos e processos do passado, geralmente ligados à origem e desenvolvimento da nação. Da mesma forma, a abordagem da Didática da História tem permitido iniciar uma discussão curricular em torno dos limites e problemas dos modelos do ensino da História baseados nas concepções de transposição didática, da formação cívica e cidadã, bem como das metodologias ativas sem base epistemológica.

Assim, conceitos como o de consciência histórica8 e Burdening History9 começaram a se tornar ferramentas analíticas para se compreender, dentro e fora dos espaços escolares, as tensões, as disputas e as negociações que são geradas em torno do passado, e como elas influenciam o presente e o futuro. Em conjunto, e em diálogo aberto com outras tradições que fazem parte da chamada Educação Histórica – History Education –, a perspectiva da orientação temporal é vista, assim, como uma forma possível de pensar a aprendizagem histórica, já não, a partir da promoção e consolidação de crenças, mas a partir de um constante trabalho formativo que visa fornecer condições para que as pessoas – especialmente crianças e jovens – construam seus próprios pensamentos históricos.

Uma vez compreendido que o campo da Didática da História não se encerra exclusivamente na abordagem alemã (embora ela seja uma referência), e que há inúmeras possibilidades de construção de diálogos e investigações, é que nos propusemos a pensar o presente dossiê: Didática da História e Ensino de História: questões contemporâneas. A nossa preocupação central, desde o início, foi criar um espaço plural – e não fechado em determinadas epistemologias – para congregar trabalhos e experiências que de alguma forma estabelecem diálogos entre os pressupostos da Didática da História, em suas múltiplas vertentes, e o ensino de História.

Desse modo, os dez artigos que compõem esse dossiê constituem uma importante evidência das possibilidades de articulações entre os pressupostos da Didática da História e os demais conceitos gestados nesse campo como consciência histórica, cultura histórica, formação histórica, pensamento histórico e narrativa, com os princípios do ensino e da aprendizagem histórica.

No artigo intitulado Contar história (s) e despertar (in) visibilidades: reflexões sobre Didática da História, Literatura e Direitos Humanos, as autoras Vera Lúcia Silva Vieira e Beatriz Rodrigues nos apresentam um conjunto de reflexões que articulam historiografia, ensino de História e os usos públicos do passado, no intuito de perceber os desafios que se estabelecem, aos professores e pesquisadores, frente ao negacionismos, na contemporaneidade, a partir dos estudos dos temas sensíveis no ensino de História, literatura e Direitos Humanos.

Em seguida, Caio Cobianchi da Silva, em seu artigo intitulado A Cultura histórica no RPG O Desafio dos bandeirantes: elementos políticos, estéticos e cognitivos, discute as possibilidades do uso dos jogos de RPG (role-play game) enquanto um artefato cultural, nos processos de construção do conhecimento histórico com os jovens estudantes, bem como as relações destes jogos com as dimensões política, estética e cognitiva da cultura histórica. Sob o prisma das discussões da Didática da História, o autor concebe que o jogo de RPG escolhido para a sua análise, proporciona diferentes momentos de mobilização de ideias históricas tácitas, por parte dos jogadores/estudantes, e estas são essenciais para a construção de uma aprendizagem histórica crítica e não desconectada com a cultura histórica.

Na esteira das discussões sobre a construção do conhecimento histórico escolar, Jeferson José Gevigier nos fornece alguns resultados de sua pesquisa realizada no Mestrado Profissional em História – PROFHISTÓRIA – que lança um olhar sobre o uso de fontes históricas na aula de História. Sob o título Professores e estudantes produzindo o conhecimento histórico: reflexões teóricas e práticas sobre a aula-oficina, o autor parte da concepção de Aula-Oficina, tal como proposta por Isabel Barca (2004), e apresenta as possibilidades da construção de sequências didáticas que articulam pesquisa historiográfica, ensino de história, interpretação e uso de fontes, literacia histórica, bem como a produção de narrativas historicizadas em sala de aula.

O texto de Max Lanio Martins Pina, intitulado As influências da Didática da História em Goiás: uma análise das pesquisas acadêmicas realizadas no PPGH-UFG (2013-2020), nos oferece um rico panorama acerca da produção acadêmica desenvolvida sob a perspectiva epistemológica da Didática da História no Estado de Goiás. Para tanto, o autor analisou um total de treze fontes que correspondem a doze dissertações de mestrado e uma tese de doutorado, todas realizadas no PPGH da UFG. Além disso, ao apresentar os detalhes das produções, o autor também evidencia o modo como os conceitos da Didática da História são trabalhados pelos pesquisadores tanto nas questões teóricas como nas práticas (empíricas).

Na composição desse dossiê pudemos também contar com uma experiência internacional. Paulina Latapí Escalante, professora da Universidad Autónoma de Querétaro, no México, aborda as possibilidades de compreensão do teatro histórico como uma manifestação da cultura histórica. Com artigo intitulado Cultura histórica componentes cogemocionais do teatro histórico, a autora apresenta um quadro sobre as discussões que envolvem o teatro histórico e a educação histórica, bem como as suas relações com as dimensões cognitivas, emocionais, corporais e suas linguagens, sempre visando questões relacionadas ao ensino de História.

Os autores Carlos Eduardo Rodrigues e José Franciso dos Santos trazem contribuições significativas sobre as perspectivas eurocêntricas no Ensino de História através do artigo Perspectivas históricas: passado, presente e futuro sobre a Lei 10.639/2003, que discute a situação dos afro-brasileiros na sociedade atual e os avanços relacionados às políticas de ações afirmativas na área da educação, com destaque para as seguintes leis: a nº 10.639/2003 e a nº 11.645/2008, que instituíram a obrigatoriedade do ensino de História da África e Cultura Afrobrasileira e Indígena.

Ana Paulo Squinelo, contribui com o artigo pautado no conceito de “história difícil” sobre a Guerra do Paraguai (1864-1870) no artigo 150 anos depois; Narrativas Históricas de jovens Estaduantes Brasileitos/as sobre a Guerra do Paraguais/Guerra Guasu a partir das aulas de História. De acordo com a autora, a guerra é vista como traumática para a América Latina e desde seu término constituiu-se em um dos conteúdos escolares sujeitos a inúmeras revisões e manipulações históricas. O artigo usou pressupostos da Educação Histórica e buscou responder à pergunta: “O que os/as estudantes compreendem sobre o conteúdo Guerra do Paraguai a partir das narrativas didáticas e das aulas de história?”

A questão da História Regional e Local é destacada por Renilson Rosa Ribeiro e Shirley Cláudia da Silva e Souza no artigo História Regional e Local: o que dizem os professores e os estudantes? Os autores trabalham com diferentes narrativas de professores de História e estudantes do Ensino Médio de escolas públicas estaduais da cidade de Cáceres, acerca das experiências relacionadas ao ensino de História regional e local.

Matheus Mendanha Cruz propõe uma discussão sobre o cinema da sala de aula por meio de uma pesquisa pautada nos pressupostos da Didática da História alemã. No seu artigo intitulado Troia: Uma reflexão sobre Cinema, História, Tradição Oral e Sala de aula, o autor toma o filme Tróia como uma organização de fatos que apontam para um sentido e o transmite aos espectadores. O autor pensa a obra cinematográfica para além do recurso pedagógico e o toma como fonte e narrativa, ajudando o estudante a perceber o papel da Indústria Cultural no tempo presente e como a arte se revela através da tradição oral grega.

Uma das discussões recorrentes na Didática da História é a questão da Identidade. Este dossiê foi presenteado com uma pesquisa de um importante pesquisador do campo da Didática da História. O texto é intitulado Identidades virtuais, pensamento histórico e vida prática de Wilian Carlos Cipriani Barom que trata de três estereótipos sociais que rondam as discussões políticas e culturais da atualidade em espaços virtuais como Facebook, Twitter e Instagram, a partir de uma proposta metodológica de correlação de ideias históricas. Estes estereótipos seriam: Nacionalistas, Individualistas-conservadores e Defensores da Família, e tiveram as suas características aproximadas às respostas de 3923 jovens estudantes, de 24 cidades brasileiras, que participaram do Projeto Residente no ano de 2019.

Por fim, entregamos ao público esse dossiê que aborda aspectos relevantes das pesquisas pautadas na Didática da História e que evidenciam que tal área não está fechada em sim, com referenciais pré-determinados, mas sim que estabelece o diálogo com outras áreas de pesquisas do Ensino de História.

Desejamos a todos e a todas uma excelente leitura.

Notas

1 LIMA, Maria. Consciência histórica e educação histórica: diferentes noções, muitos caminhos. In: MAGALHÃES, Marcelo (et.al). Ensino de história: usos do passado, memória e mídia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014, p.53- 78.

2 CARDOSO, Oldimar. Didática da História. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. (orgs.) Dicionário de Ensino de História. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2019.

3 RÜSEN, Jörn. Teoria da história. Uma teoria da História como ciência. Curitiba: Editora da UFPR, 2015.

4 TUTIAUX-GUILLON, Nicole. O paradoxo francês: cultura histórica significativa e didática da história incerta. Educação e Realidade, Porto Alegre, n.1, p.15-37, jan/abr, 2011.

5 BONETE, Wilian Junior. Identidade e consciência histórica: um estudo com professores de História que atuam na Educação de Jovens e Adultos – Paraná. 290 fls. Tese (Doutorado em História) – Programa de PósGraduação em História, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2019.

6 CERRI, Luis Fernando. (org.) Os jovens e a História: Brasil e América do Sul. Ponta Grossa: Ed. UEPG, 2018.

7 CERRI, Luis Fernando. (org.) Os jovens e a História: Brasil e América do Sul. Ponta Grossa: Ed. UEPG, 2018.

8 RÜSEN, Jörn. Teoria da história. Uma teoria da História como ciência. Curitiba: Editora da UFPR, 2015.

9 VON BORRIES, Bodo. Coping with burdening history. In: BJERG, Helle; LENZ, Claudia; THORSTENSEN, Erik (ed.). Historicizing the uses of the past: Scandinavian perspectives on history culture, historical consciousness and didactics of history related to Word War II. Bielefeld: Transcript, 2011


Organizadores

Arnaldo Martin Szlachta Junior – Doutor em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Atualmente é professor Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5839-8224

Wilian Junior Bonete – Doutor em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Atualmente é professor Adjunto da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0971-4192

Nilson Javier Ibagón Martín – Doutor em História pela Pontifícia Universidade Javeriana. Doutor em Ciências Sociais pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales – Argentina. Atualmente é professor associado do departamento de História da Universidad Dell Valle – Colômbia. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0708-2980


Referências desta apresentação

SZLACHTA JUNIOR, Arnaldo Martin; BONETE, Wilian Junior; MARTÍN, Nilson Javier Ibagón. Apresentação. CLIO: Revista de Pesquisa Histórica. Recife, v. 9, p.1-7, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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