Disputa de un cristiano con un gentil sobre la fe cristiana | Gilberto Crispino

A História se faz com documentos. O ensinamento deixado há algumas décadas por Henri-Irénée Marrou é um dos fundamentos do ofício de historiador. Portanto, na lida cotidiana com estes vestígios do passado, somos responsáveis por trazer a lume algo a respeito das experiências de homens e mulheres de outrora. Infelizmente, por negligência ou simples desconhecimento, tal premissa está a se desbotar sobre as mesas de trabalho de muitos destes profissionais. Cada vez mais, do ensino à pesquisa, as fontes secundárias ampliam seus domínios e ganham ar de autoridades definitivas. São recorrentes os artigos, dissertações e teses nos quais um rosário bibliográfico se abre e se sobrepõe ao contato direto com a documentação histórica.

No caso dos medievalistas da América do Sul, e dos brasileiros em específico, tal situação se agrava em função da escassez de boas bibliotecas com seções dedicadas à Europa medieval e arquivos minimamente organizados. Ainda que a Internet tenha amenizado muitos dos problemas e encurtado as distâncias quase intransponíveis em um passado recente, o quadro requer cuidados. Infelizmente, não podemos fechar os olhos para a realidade: um oceano continua a nos separar literalmente dos bons centros de pesquisa europeus e de seus acervos quase sempre fartos e atualizados (alguns, com invejável rapidez para nós sul-americanos de boa vontade). Dos que iniciam suas pesquisas aos mais experientes, as viagens periódicas de atualização para o Velho Mundo e a importação de material bibliográfico de ponta, sobretudo boas edições críticas, continuam a se impor.

Diante deste quadro, é importante saudar iniciativas como a da professora Dra. Natalia Jakubecki do Departamento de Filosofia da Universidade de Buenos Aires e do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnicas. Em 2017, ao trazer à luz Disputa de un cristiano con un gentil sobre la fe cristiana de Gilberto Crispino (1045-1117), a professora Jakubecki não apenas colocou à disposição do público latino-americano a tradução de uma fonte até então inédita em uma língua moderna como o espanhol, assim como também nos ofereceu uma melhor inserção analítica no período de grande efervescência econômica, política, social e cultural que antecedeu a formação das primeiras universidades na Europa medieval.

Monge ainda desconhecido de boa parte dos medievalistas que lidam com os séculos XI e XII, Gilberto Crispino veio da lavra de discípulos formados pelas mãos de Anselmo de Bec (1033-1109). Vários dos rebentos da escola da abadia de Bec se tornaram personagens de grande poder e importância na administração eclesiástica de então. Como abades, bispos, priores e legados papais, espalharam-se pelo mundo anglo-normando e além. Assim como Guiberto de Nogent (c.1055- c.1125) e Eadmero de Canterbury (c.1060-c.1126), discípulos assaz conhecidos de Anselmo, Crispino dedicou parte de sua vida adulta à escrita. Há pelo menos dez escritos de sua autoria que chegaram aos dias atuais. Crispino escreveu na esperança de oferecer seus préstimos às demandas intelectuais de seu tempo, uma delas a afirmação do cristianismo sobre as demais religiões, destacadamente judaísmo e islamismo. Gilberto Crispino terminou sua vida como abade de Westminster, na Inglaterra, cargo que assumiu em 1085 por indicação de Lanfranc (†1089), arcebispo de Canterbury e amigo de Anselmo. Crispino ocupou o cargo em Westminster por trinta e dois anos seguidos até a sua morte, em 1117.

Com um prólogo de teor biográfico e notas produzidas pela própria tradutora, a edição e publicação de Disputa de un cristiano con un gentil sobre la fe cristiana de Gilberto Crispino ficou sob a responsabilidade do Centro de Investigaciones Filosóficas de Buenos Aires. De um total de cinquenta páginas, trinta e nove foram dedicadas à tradução. As restantes trazem detalhes sobre a vida e as origens de Gilberto e algumas das características básicas da edição, como a preocupação da tradutora em preservar o verniz teológico do texto original em latim. As dimensões liliputianas da publicação dão um toque de delicadeza ao seu precioso conteúdo.

Provavelmente escrita entre os anos de 1093 e 1094, a Disputa de un cristiano con un gentil sobre la fe cristiana traz resquícios da provável influência de Cur Deus Homo de Anselmo de Bec sobre Gilberto Crispino, sobretudo no que se refere à defesa dos dogmas da fé cristã e da natureza de Deus a partir do uso exclusivo da razão humana. No caso específico do texto de Gilberto, o diálogo se dá entre um cristão e um gentil cujo nome não foi revelado. Das várias questões debatidas em tom sobremaneira cordial, tal diálogo permite ao leitor moderno, seja ele um estudioso da cultura medieval ou não, vislumbrar traços da percepção de um cristão acerca da própria religião e sua tentativa de afirmá-la teológica e racionalmente como superior a todas outras.

Nas entrelinhas do texto, igualmente observamos um sentimento de abertura, um sutil desejo de conhecimento mútuo entre as partes envolvidas, algo que muito nos surpreende face à crescente intolerância religiosa observada na atualidade em diferentes regiões do planeta. Ainda que os judeus, por exemplo, tenham sido conhecidos como deicidas ao longo de toda a Idade Média, a época de Gilberto Crispino não foi a dos grandes e violentos progroms que resultaram em perseguições, expulsões e mortes de membros das comunidades judaicas espalhadas pela Cristandade. Não foram raros os casos nos quais cristãos e judeus conviveram de maneira pacífica durante dilatados períodos nas mesmas cidades e regiões. Em diversas cidades da Europa, foram os judeus os responsáveis diretos pelo comércio e empréstimo de dinheiro.

É igualmente interessante notar que a palavra “disputa” estampada do título da fonte pouco ou nada tem a ver com contatos físicos, violentos ou não. Na verdade, a disputa (disputatio) era uma forma de diálogo provocativo no qual os participantes ofereciam seus argumentos fazendo com que o oponente pensasse e oferecesse uma contra-argumentação plausível capaz de refutar seu adversário. Portanto, estamos a escrever sobre debates intelectuais cujo objetivo não era simplesmente (e vaidosamente) derrotar o oponente e sim alcançar um consenso cujo intento final era aumentar o conhecimento acerca dos assuntos tratados. Ainda que Gilberto não concordasse com o gentil, é interessante frisar como ele permitiu que aquele expusesse seu ponto de vista.

No caso específico da fonte traduzida que temos à mão e recomendamos a leitura, a fé cristã ocupou lugar de destaque em diversos momentos da disputatio. Fé que fora tema comum nos escritos produzidos em um período que começava a sentir os efeitos dos clamores emotivos que envolveram as cruzadas rumo à Terra Santa e o contato com aqueles que os cristãos então definiam como infiéis. Lado a lado com a defesa da fé cristã, correu o debate sobre a natureza humana do filho de Deus, algo refutado em absoluto pelo gentil a altercar com o interlocutor anônimo criado por Gilberto. É igualmente válido destacar que este debate tem sua origem mais remota nas contendas teológicas travadas entre personagens-chave ligados à história dos patriarcados cristãos ainda na Antiguidade. Sem revelar aos futuros leitores de Disputa de un cristiano con un gentil sobre la fe cristiana detalhes que possam tornar a leitura menos cativante, limitamo-nos a informar que este tema é o ponto auto do opúsculo de Gilberto Crispino.

Para nós historiadores, ávidos por encontrar e delimitar recortes temporais e temáticos nos quais sejam observadas permanências e rupturas, a fonte traduzida e comentada por uma filósofa nos indica a necessidade de olhar mais para as ideias dos humanos de outrora com os quais trabalhamos e um pouco menos para as estruturas institucionais nas quais eles viveram. Com isso, acreditamos que, para além das diferentes experiências humanas no tempo e no espaço, temos a oportunidade de perceber como estas pessoas responderam as demandas de sua época. Um diálogo que nos permite conhecer as diacronias da humanidade. Diacronias a serem explicadas em narrativas que busquem sínteses que não apaguem as marcas da diversidade social e cultural que temos diante de nossos olhos.

Se os séculos XI e XII foram cantados e decantados por diferentes gerações de medievalistas como um período de mudanças profundas, defendemos aqui que eles devem ser compreendidos como parte de um processo mais amplo e multifacetado. Processo que não foi o anúncio de uma modernidade antecipada para caber nos limites temporais da Idade Média ou de uma ruptura com um passado arcaico com ares de Antigo Regime a abrir espaço para as novidades revolucionários representadas pelo mundo urbano e suas representantes mais aclamadas: as universidades. Fruto de transformações orgânicas nas quais as tradições dialogavam e se ajustavam ao que era novo, Disputa de un cristiano con um gentil sobre la fe cristiana de Gilberto Crispino traz em suas entrelinhas uma Idade Média que apontava para o contato com a diversidade. Ainda que de forma tácita, diversidade que trazia em si o desejo de aprender. Desejo que também pode ser o nosso tantos séculos depois.

Carlile Lanzieri Júnior – Professor Adjunto C do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]

Francieli Aparecida Marinato – Professora Mestre do Instituto Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]


CRISPINO, Gilberto. Disputa de un cristiano con un gentil sobre la fe cristiana. Buenos Aires: Centro de Investigaciones Filosóficas, 2017. Resenha de: LANZIERI JÚNIOR, Carlile; MARINATO, Francieli Aparecida. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.7, n.14, p. 272-275, Jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]

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