Do hábito à resistência: freiras em tempos de ditadura militar no Brasil | Caroline Jaques Cubas

Caroline Jaques Cubas é Doutora em História, pela Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, com estágio sanduíche na Université de Rennes II, e Mestre em História, também pela UFSC. É Especialista em História Social do Ensino Fundamental e Médio, pela Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC, e graduada em História, pela Universidade do Vale do Itajaí, UNIVALI.

A autora é Docente Adjunta no Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC, onde também leciona no Programa de Pós-graduação em História e no Mestrado Profissional em Ensino de História. É pesquisadora nos grupos: “Memória e Identidade” e “ Ensino, Memória e Cultura”, nesta mesma instituição.

O livro “Do hábito à resistência: freiras em tempos de ditadura militar no Brasil” é resultado de sua tese de doutoramento, com o título “Do hábito ao ato: vida religiosa feminina ativa no Brasil (1960 – 1985), defendida no ano de 2014. Este trabalho foi um dos agraciados com o Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas, 2015, em sua sétima edição, promovido pelo Arquivo Nacional, sendo o texto publicado no ano de 2016.

A obra está cartografada em quatro capítulos, com as seguintes divisões, “Mudanças de Hábitos: transformações visíveis e novos sentidos para a vida religiosa feminina”; “O Social, O Político, O Religioso: enfrentamentos”; “Freiras e a Ditadura Civil-Militar: recrudescimento e lutas democráticas”; e “A Exacerbação da Violência”.

A partir de uma ampla pesquisa em documentos eclesiásticos do Vaticano e de conferências realizadas em cidades da América Latina, documentos de arquivos no Brasil e na França, fontes bibliográficas, matérias veiculadas em órgãos de imprensa (jornais e revistas), leis e decretos, inquéritos e investigações policiais, (sobretudo do Projeto Memórias Reveladas e do Brasil Nunca Mais) e na interpretação de depoimentos/memórias orais, Cubas propõe:

[…] a realização de uma análise da vida religiosa feminina no Brasil, durante os anos de ditadura militar, a partir das transformações institucionais e às possibilidades de participação em movimentos organizados ou ações isoladas de resistência ao regime estabelecido a partir de 1964. (CUBAS, 2016, p. 24).

No primeiro capítulo, Caroline tece suas discussões problematizando as modificações institucionais que ocorreram na Igreja Católica Apostólica Romana, através das decisões tomadas no XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica – ou Concílio Vaticano II – iniciado em 1962 e encerrado em 1965.

Tais mudanças incidiram diretamente na vida religiosa feminina, a qual passou por um processo de redefinição (abandono gradual do uso do hábito– costumes e vestes – religioso, novas possibilidades de trabalho profissionalizado fora do claustro, vida em inserção social junto ao “povo de Deus”), e se deram para adequar a Igreja aos “tempos modernos”, como, por exemplo, o aggiornamento (atualização), que consistiu em adaptar o catolicismo às transformações vigentes no mundo daquele contexto e aproximar cada vez mais religiosas/os e leigas/os.

Essa dinâmica ocorreu de forma concomitante à emancipação feminina (neste aspecto Cubas identifica unidades/noções de discurso, conceituados por Michel Foucault, nas declarações pontifícias oficiais, em relação as mulheres) e concordou com o advento da segunda onda do movimento feminista, na década de 1960. Não obstante, a adesão das irmãs não foi homogênea, o que gerou crise de identidade e abandono da vida religiosa em alguns casos. Ainda assim, o texto demonstra que a saída do convento, para morar em pequenas comunidades, fez com que muitas adotassem uma atitude de engajamento político-social e se aproximassem de movimentos com características de resistência ao regime autoritário imposto.

No segundo capítulo, a autora detém atenção em tratar das relações, marcadas por tensões e alterações institucionais, entre Igreja Católica e o Estado brasileiro, devido, para citar, o posicionamento da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ao destoar do regime. É enfatizada, ainda, a atuação de freiras em movimentos coletivos de rua (protestos, manifestações, marchas, passeatas) o que gerou descontentamento por parte do governo golpista, e que levou a ameaças às religiosas, sob a acusação do que chamavam majoritariamente de subversão.

Neste aspecto, é dado destaque às práticas pedagógicas progressistas, de conscientização, ensinadas por irmãs em colégios, que também serviam como locais de resistência – esta apresentada na obra como categoria de análise teorizada por Jacques Semelin (que destaca que uma resistência não precisa ser necessariamente armada) e ligada, no caso, às representações e relações de gênero – com atitudes como: acobertamento de foragidos e de pessoas presas injustamente, alojamento de estudantes, denúncias de abusos, torturas e pessoas desaparecidas; como ocorreu em Maceió, com o caso emblemático da Madre Zelly Perdigão Lopes, das Missionárias de Jesus Crucificado, a qual foi diretora da Escola de Serviço Social Padre Anchieta, e se opôs à ditadura; ação que contraria a ideia de que as feiras em geral seriam apolíticas e alienadas, pois várias outras também se fizeram presentes e atuaram em militâncias democráticas. Por isso, Cubas destaca:

[…] ser possível afirmar que houve, durante os anos de ditadura militar, uma participação efetiva de freiras na resistência ou em movimentos de oposição a determinadas situações ocasionadas pelo governo instituído. Mesmo que esta resistência não ocorra, na maioria das vezes, de uma forma declaradamente contrária ao governo […]. (CUBAS, 2016, p. 119)

No terceiro capítulo, a autora deixa bem clara a sua intenção de não escrever um trabalho biográfico, muito menos de generalizar a atuação de freiras no embate ao governo, ou mesmo mitificá-las. Todavia, reconhece a importância de narrativas de histórias pessoais de irmãs, como Derlei Catarina de Luca, que foi presa e torturada no período. Assim como apresenta aos leitores/as um “símbolo de resistência ao arbítrio”, na pessoa de Madre Cristina Maria, também chamada de “freira comunista”; entre vários outros casos como os de Maria Valéria, que fez denúncias de casos de tortura – então institucionalizada – e Rafaela Bimbi, que lutou contra o desrespeito aos direitos humanos. Vale salientar, ainda, o uso de declarações de Dom Paulo Evaristo Arns e Frei Betto para compor a análise proposta.

Cubas prossegue seus argumentos colocando um aspecto interessante em foco que é a questão da invisibilidade imposta às irmãs, que eram submetidas a uma forte hierarquia masculina e não tinham acesso ao púlpito; ficando, portanto, a cargo de feitos voltados ao âmbito privado, e agindo, numa perspectiva demonstrada por Judith Butler, com características que são remetidas culturalmente ao feminino. Neste sentido, não foram poucas as ações de resistência naqueles tempos: esconder procurados pela polícia, guardar material considerado subversivo, facilitar fugas de perseguidos, transportar bilhetes e cartas de opositores, dar assistência psicanalítica aos militantes, curar feridos de ações revolucionárias, prestar solidariedade a pessoas reprimidas (atitude que foi criminalizada pela Lei de Segurança Nacional – LSN), acolher presos políticos, atuar em lutas sociais (como na questão agrária, em relação à posse da terra) e principalmente no envolvimento direto com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o qual fundamenta nos textos de Maria José Rosado Nunes.

No quarto e último capítulo, são apresentados casos peculiaridades de extrema violência, como o que ocorreu com Maurina Borges da Silveira, a única freira que foi oficialmente torturada e exilada (no México) pela ditadura brasileira. Esta passou por abusos físicos, como choques elétricos, e psicológicos, além de sofrer abuso sexual. Foi presa acusada de fazer parte de um grupo “terrorista” e de “aquiescência”, tendo, inclusive, sua prisão legitimada pela imprensa da época.

Prosseguindo na leitura, Caroline faz referência a freiras perseguidas, como ocorreu na Bolívia e no Chile. Isso coincide também na eclosão de ditaduras no contexto latino americano, bem como nas semelhantes transformações culturais, sociais e políticas pelas quais passavam as religiosas sul-americanas através das ressignificações trazidas pela oficialidade católica. Assim, apresenta dois casos de freiras francesas: Alice Domon, que demonstrou intenso posicionamento político contrário ao regime militar argentino, e Léonie Duquet, que atuou em grupos campesinos e indígenas, as quais foram sequestradas, espancadas, estupradas e assassinadas, de uma forma covarde chamada de “voo da morte”, pela ditadura na Argentina.

Por conseguinte, a autora argumenta: Este trabalho partiu de um questionamento bastante objetivo: houve participação de freiras em movimentos de resistência e oposição à ditadura civil-militar instaurada no Brasil a partir de 1964? (CUBAS, 2016, p. 193). E conclui que sim! Mesmo que as ações de resistência – no sentido francês do termo – bem como ações sociais e políticas, não tenham sido adotadas por todas as religiosas, as fontes consultadas pela autora demonstram que em diversas situações as irmãs não ficaram alheias ao momento opressivo. Caroline Jaques Cubas, portanto, ao elaborar sua narrativa aponta para reflexões que vão além dos muros das congregações e dos conventos, e pensa a vida religiosa feminina de forma ativa, protagonista e não silenciosa.

José Edson da Silva Santos Junior – Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Alagoas (PPGH/UFAL). Área de Concentração: Poder, Cultura e Sociedade. Linha de Pesquisa: Culturas Políticas, Representações, Discursos e Narrativas.

CUBAS, Caroline Jaques. Do hábito à resistência: freiras em tempos de ditadura militar no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2016. Resenha de: SANTOS JUNIOR, José Edson da Silva. “Para além dos muros”: freiras contra o regime militar no Brasil. Crítica Histórica. Maceió, v.10, n.19, p.260-264, junho, 2019. Acessar publicação original [DR]

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