Do hábito à resistência: freiras em tempos de ditadura militar no Brasil | Caroline Jaques Cubas

Caroline Jaques Cubas é Doutora em História, pela Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, com estágio sanduíche na Université de Rennes II, e Mestre em História, também pela UFSC. É Especialista em História Social do Ensino Fundamental e Médio, pela Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC, e graduada em História, pela Universidade do Vale do Itajaí, UNIVALI.

A autora é Docente Adjunta no Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC, onde também leciona no Programa de Pós-graduação em História e no Mestrado Profissional em Ensino de História. É pesquisadora nos grupos: “Memória e Identidade” e “ Ensino, Memória e Cultura”, nesta mesma instituição. Leia Mais

Escravos e rebeldes nos tribunais do Império: uma história social da lei de 10 de junho de 1835 | Ricardo Pirola

Resenhista

Douglas Guimarães Leite – Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected] Leia Mais

O terror renegado: a retratação pública de integrantes de organizações de resistência à ditadura Civil-militar no Brasil, 1970-1975 | Alessandra GAsparotto

O livro é resultado de uma adaptação da dissertação de mestrado de Alessandra Gasparotto, agraciada com o Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas 2010. Portanto, a obra cumpre com o pré-requisito de reunir informações relevantes sobre os fatos da história política recente no país a partir de meticulosa pesquisa.

O tema desenvolvido é o dos “arrependimentos” durante a ditadura civil-miliar no Brasil, em que jovens militantes de esquerda foram apresentados aos veículos de comunicação entre 1970 e 1975, renegando suas atividades na luta-armada e oposição ao regime imposto em 1964. Como apurado no livro, “as retratações eram apresentadas na forma de manifestações públicas, entrevistas coletivas, cartas escritas “de próprio punho” e aparições em programas de televisão, além de declarações de arrependimento atribuídas aos militantes por autoridades policiais e militares”. A autora coloca os termos “arrependidos” ou “arrependimento” sempre em itálico, pois considera que foram construídos pelo regime autoritário e pela imprensa da época.

Através de 42 casos referidos no livro, fica evidente que o período de maior incidência desses casos deu-se entre 1970 e 1971, porém o artifício estendeu-se de forma esporádica até 1975. A estratégia do regime foi a de apresentar uma mudança radical no posicionamento e no sentido das ações de antigos militantes que lutaram conta ele de armas na mão. Uma vez “arrependidos”, passavam a defensores do regime ao qual combateram. Essas retratações eram tidas como ações individuais, de militantes que se arrependeram da luta por aquisição de consciência de seus erros, foram exploradas com o objetivo apontar a fraqueza moral da esquerda e, principalmente, da luta armada.

Apresentados como “terroristas arrependidos”, também chamados na época de “desbundados” os militantes tiveram suas vidas sujeitadas à exposição, ganhando muito destaque na mídia nacional. Em alguns casos os protagonistas nunca foram perdoados pela suposta delação ou abandono da causa. Seus atos repercutiram “nas celas dos presídios, no isolamento da clandestinidade ou do exílio, foram recebidos como traição”, observa a autora. O tema nebuloso da traição e do arrependimento é tratado de forma madura, sem explicações simplistas e sem julgamentos de valores precipitados.

Preocupada em contextualizar de forma criteriosa e não repetir a desqualificação a qual foram submetidos por longos anos os “arrependidos”, a autora transita pela bibliografia do tema ditadura civil-militar com desenvoltura e naturalidade, dando assim um sentido acurado na análise de suas fontes primárias que são diversas e muito qualificadas: jornais, revistas, vídeos feitos para televisão, entrevistas pela internet, entrevistas com os “arrependidos” e familiares. Dessa maneira, Gasparotto dá voz as suas fontes, mas coteja suas posições com outros dados e caminhos de forma equilibrada, fazendo um balanço contextualizado e jamais anacrônico ou abusivo.

Merece destaque no livro, além de toda a construção teórico-metodológica clara, a abordagem muito bem articulada na reconstrução dos passos do primeiro grupo de “arrependidos” tornado público em 22/5/1970 no Rio Grande do Sul e veiculado com destaque pela televisão e nas capas de três dos principais jornais de Porto Alegre. Mobilizados por Rômulo Fontes, um grupo de cinco jovens chegou a tecer elogios ao governo do presidente Médici e sua realizações. Essa retratação serviu como pedra basilar na construção de uma estratégia de retratações. Foi de fato uma manifestação arquitetada pelos militantes “arrependidos”, porém o episódio espontâneo deu o tom para uma série de outros “arrependimentos”, ora negociados com contrapartidas de redução de penas ou liberdade, ora impostos a partir de brutal tortura. Também deu margem para diversos convites ao arrependimento e, ainda, falsificação ou alegação de arrependimentos. Então, se houve um movimento espontâneo, ele foi logo ampliado e transformado em ação psicológica para atingir a população, seus desdobramentos contaram com o terrorismo de Estado como meio de convencimento para os reticentes.

Pouco depois do primeiro caso de arrependimento, ganhou notoriedade o caso de Massafumi Yoshinaga de 21 anos, cuja entrevista foi exibida na TV Tupi de São Paulo, no Telejornal Ultra-Notícias do Dia, também foi capa da Revista Veja. Yoshinaga teria sido inclusive referido em discurso do próprio Presidente segundo a Folha de São Paulo em 4 de julho de 1970, e sua manchete “Médici indica o caminho da reconciliação”. O teor da matéria dava voz ao Presidente da República: “afirmou que a política nacionalista de desenvolvimento é o caminho para vencer o terrorismo e reconciliar o país, unindo a todos no esforço para a construção de um futuro promissor”. Médici ainda teria citado “o caso do ex-terrorista Massafumi Yoshinaga, que se entregou às autoridades em São Paulo, impressionado pelas recentes iniciativas do Governo”. Anos mais tarde, sem conseguir estabilidade emocional o jovem Yoshinaga suicidou-se.

Ainda no campo dos casos célebres, a autora dedica uma análise considerável a Celso Lungaretti. Foi tratado de forma muito dura, durante muitos anos por antigos militantes da esquerda que o responsabilizavam, ao que tudo indica injustamente, pela delação de um campo de treinamento da VPR. Ao ser apresentado na televisão, Lungaretti havia sido terrivelmente torturado.

“Foi assim que, na noite do dia 9 de julho de 1970, durante a exibição do Jornal Nacional, os telespectadores da TV Globo que esperavam por mais um capítulo da novela Irmãos Coragem, grande sucesso da época, viram-se surpreendidos pela aparição de Lungaretti – um jovem franzino, de 19 anos e aparência abatida, que renegou sua militância política, negou a tortura nos porões do regime, fez um apelo à juventude para que não ingressasse na luta armada e chegou até mesmo a elogiar algumas obras do Presidente Médici” (Gasparotto, 76-77).

Os anos do governo Médici atestam a face mais dura do regime, mas também revelam a mídia em estreita colaboração com o regime na desqualificação de seus opositores. A televisão foi vista como veículo apropriado para atingir o ambiente psicossocial dos grandes centros urbanos, sua utilização foi priorizada por uma ótica de comunicação capaz de mobilizar e sensibilizar a opinião pública ao mesmo tempo em que ela própria, a TV, se valia do tema do “terrorismo arrependido” para e aumentar os índices de audiência.

Ao longo de seu trabalho Alessandra Gasparotto não somente localiza, data, organiza e expõe de forma consistente como foram explorados na época através da televisão e das páginas de jornal as retratações públicas dos ditos “arrependidos”. Na verdade, ela investiga, dá voz e valoriza a subjetividade dos envolvidos, interpreta resgatando memórias e construindo a história como deve ser; rica e plural. A construção do objeto de sua pesquisa é minuciosamente desenvolvida, sem que isso prejudique a narrativa e a compreensão do leitor, seu rigor não é rigidez, mas compromisso com os personagens, com o contexto, com a memória e com a história, buscado na fluidez de sua escrita e nos filtros de diferentes prismas e fontes. Livro essencial para quem estuda a história do período da ditadura Civil-militar, livro essencial para a memória do Brasil.

Nilo Andé Piana der Castro –  Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


GASPAROTTO, Alessandra. O terror renegado: a retratação pública de integrantes de organizações de resistência à ditadura Civil-militar no Brasil, 1970-1975. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012. Resenha de: CASTRO, Nilo Andé Piana der. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n.11, p. 138-140, dezembro, 2014. Acessar publicação original [DR]

 

A escrita da repressão e da subversão | Vivien Ishaq, Endrico P. Franco e Teresa E. Sousa

O livro “A escrita da repressão e da subversão” reúne uma coletânea das palavras e expressões, seus significados e sentidos, mais usadas durante a ditadura militar (1964-1985), tanto por agentes da repressão, quanto por militantes de esquerda considerados subversivos. Para a redação do glossário, foram usados como fontes diversos acervos e documentos do período do regime que estão sob custódia do Arquivo Nacional.

A historiadora Vivien Ishaq, juntamente com Pablo Endrigo Franco e Tereza Eleutério de Sousa, pesquisadores do Arquivo Nacional, se debruçaram especialmente sobre o acervo do Serviço Nacional de Informações (SNI). A escolha segue uma lógica importante. O órgão coordenava toda a atividade de informação e espionagem do regime e recebia compulsoriamente dados de órgãos municipais, estaduais e federais do Poder Executivo, tendo então uma abrangência nacional. Além do enorme volume de documentos reunidos. Além do SNI, também foram usados documentos do Conselho de Segurança Nacional (CSN); do Serviço Secreto da Aeronáutica (Cisa); da Divisão de Inteligência da Polícia Federal, entre outros. Todos esses acervos são compostos por diferentes documentos: fichas pessoais dos militantes da esquerda, análises da conjuntura nacional e internacional, relatórios secretos de informação e contrainformação, entre outros. Além dos documentos citados, os pesquisadores também buscaram fotografias para ilustrar os verbetes nos acervos do jornal Correio da Manhã e da Agência Nacional. Leia Mais

“Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas – SCHETTINI (REF)

SCHETTINI, Cristiana. “Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. Resenha de: GUIMARÃES, Janete Eloi. O enfrentamento pela via legal: a utilização do aparato jurídico por mulheres pobres nas primeiras décadas republicanas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 no.1 Jan./Apr. 2009.

Tradução literal da expressão latina habeas corpus, “Que tenhas teu corpo” é resultado da tese de doutoramento em história social de Cristiana Schettini, defendida na Unicamp em 2002. O sugestivo título faz alusão a um dos caminhos escolhidos pela autora em sua pesquisa, os meandros do espaço legal e a utilização de seus recursos por populares no Rio de Janeiro no período de estabelecimento do regime republicano no país. Tal recorte temporal já foi objeto de várias frentes de pesquisa, o que poderia sugerir um questionamento quanto à escolha da autora em revisitar aqueles conturbados anos de estruturação política e de reforma espacial pelos quais passava a Capital Federal.

Tais receios se dissipam à medida que Schettini apresenta-nos seu argumento. Extremamente bem articulada, sua narrativa insere o objeto em uma perspectiva não explorada por seus antecessores. É sob um olhar arguto que a autora nos leva a caminhar novamente por ruas e becos, bares, botecos e hospedarias, frequentados pela população pobre, e perceber, nas mulheres que exerciam a prostituição e em seu inquebrantável esforço em resistir às constantes interferências sobre seus modos de vida, uma nova leitura do Rio de Janeiro de então.

Estruturado em três capítulos, a autora perpassa o período de vigência do Código Penal de 1890 e analisa três olhares distintos sobre a prostituição que se entrecruzam: o das mulheres que a viviam como uma possibilidade de renda ou forma de sobrevivência, ou ainda mulheres, trabalhadoras pobres, enquadradas como tal à sua revelia, e dos homens que se relacionavam com essas mulheres; a perspectiva das autoridades policiais e seus procedimentos de fiscalização e controle sui generis (ainda que frequentemente encontremos estes “homens da lei” inseridos no primeiro grupo); e, por fim, o aparato jurídico e seus embates para classificar, avaliar e penalizar, conforme valores legais em constante discussão, uma “profissão” não regulamentada, mas tolerada e, nesse sentido, aceita.

“Os descaminhos da localização”, primeiro capítulo, é construído a partir dos habeas corpus que começam a ser impetrados em favor de prostitutas que vinham sendo “convidadas”, com excesso de firmeza, a mudar seus endereços, em 1896. A autora observa perspicazmente de que maneira tal ação jurídica adquiriu conotações de situação limítrofe naquele momento. A localização a que caberia a prostituição na cidade estaria na ordem do dia por um longo período e seria uma questão enfrentada constantemente pelas autoridades policiais. A reforma espacial que sofreria a Capital nas primeiras décadas republicanas impunha a necessidade de se suprimirem possíveis empecilhos para a concretização dos projetos quistos para a cidade; a zona de prostituição, atividade tacitamente consentida, era um enclave a ser removido. É nesse sentido que tais habeas corpus irão fomentar um amplo debate, situando-se em meio ao enfrentamento de dois projetos da República para o país, que determinariam as bases sobre as quais o regime estabelecer-se-ia, em que um tomava por base a valoração do interesse coletivo em detrimento de outro, que visava proteger as prerrogativas individuais dos cidadãos.

Seguindo, a autora aborda diversos conflitos advindos das tentativas, nem sempre lícitas, de deslocar as prostitutas para regiões mais afastadas e identifica as formas elaboradas por essas mulheres para “sobreviver às picaretas”. Estabelece-se nesse capítulo o paralelo entre as ações policiais, com grande frequência discricionária, e as estratégias das mulheres, descortinando suas redes de solidariedade e auxílio mútuo, passando pelas fissuras no policiamento, entendendo aqui a suscetibilidade de seus componentes verem-se enredados pelo cotidiano daquelas mulheres, até o uso do recurso legal para sua defesa.

“Histórias do tráfico” irá perscrutar as narrativas sobre o tráfico de mulheres brancas aliciadas para a prostituição, sua construção e seus usos. Segundo a autora, tomando ares de verdade absoluta, tais histórias coordenaram debates no âmbito internacional e orientaram decisões jurídicas e procedimentos policiais no Brasil. Sob um caráter de “defesa de mulheres ludibriadas submetidas a uma situação de degradação alheia a sua vontade”, a veracidade com que foram recebidas tornou tais histórias legitimadoras a toda sorte de arbitrariedades de procedimentos policiais, desde atos diretos, como a expulsão sumária, até a manipulação de depoimentos no intuito de embasar processos de lenocínio.

A análise desmistifica tais histórias, apontando que, ao rejeitar uma aceitação de pronto, tem-se a desconstrução da imagem da prostituição como um mal originado no estrangeiro; em seguida, observa-se o uso do “tráfico” como fomentador de estereótipos, ao caracterizar a figura do cáften também como estrangeiro, principalmente de origem judaica. O foco na figura do estrangeiro é lido pela autora como uma permanência da estratégia florianista de estabelecer um inimigo comum para depositar as origens dos problemas nacionais. Nesse sentido, o judeu elege-se como principal alvo, em virtude da sua dissemelhança cultural e religiosa e, até mesmo por conta disso, do seu estabelecimento através de comunidades restritas orientadas por essas relações internas, que surgiam aos olhos alheios como uma rede fechada e inacessível, logo suspeita.

Isentando a sociedade brasileira de promover ou gerar tal mal, e tendo encontrado a quem direcionar sua procedência, promovia-se um clima de suspeição generalizada direcionado a estrangeiros que estabeleciam relações nos ambientes onde a prostituição estava presente. O que nos mostra a autora é que a lógica policial se construía sobre um solo fértil em criminosos, pois os espaços da prostituição, além de concentrarem o que restava de moradia de preço acessível, eram também locais de lazer e relações entre a população pobre e trabalhadora do Rio de Janeiro. Suas vidas eram indissociáveis daqueles locais, logo, viam-se constantemente sujeitos a serem implicados em tal categoria de crime. Além disso, as redes de relações estruturadas sob a etnia, um dos mecanismos de proteção e apoio mútuo, eram lidas como a própria estrutura da súcia envolvida no tráfico. Os mecanismos de sobrevivência desses grupos revertiam-se em “agravante acusatório”.

Em “Usos do lenocínio”, último capítulo, a autora irá centrar sua análise no debate em âmbito judiciário e a sua dificuldade em uniformizar o entendimento, entre os juízes, dos significados da letra da lei, suscitando um debate que percorreria todo o período da vigência do Código Penal de 1890. A prostituição em si não caracterizava um crime, criminoso seria um terceiro que prestasse assistência e/ou fornecesse auxílio a uma prostituta visando lucrar com sua exploração. Durante certo tempo, a imputação do crime de lenocínio estaria subordinada a essa comprovação de que o acusado lucrava com a prostituição de outrem, o que dificultava, mas não impedia, a ação policial. Em 1915, a reformulação desse artigo dispensa a obrigatoriedade da relação de exploração com vistas a lucro, gerando uma indefinição e consequente ampliação do campo possível de aplicação da lei. Bastava agora caracterizar o auxílio ou a assistência para incorrer em delito. Na falta de uma qualificação categórica e sem um consenso por parte do Judiciário, tal reformulação encontra nas autoridades policiais os beneficiários de tal amplitude, na medida em que a gama de vinculáveis à prostituição abria-se enormemente. Nesse movimento, a autora encontra novamente as classes trabalhadoras, seus lazeres e divertimentos, passíveis de fiscalização e criminalização.

A autora articula esse último capítulo por meio de processos de lenocínio quase que exclusivamente, mas esses estão presentes nos capítulos anteriores, em diálogo constante com outras fontes, como a imprensa, a literatura jurídica, os romances, a documentação policial, entre outras. A análise empreendida é acompanhada, no decorrer do texto, com uma discussão aberta sobre a necessária postura criteriosa a que deve engajar-se o historiador ao entabular o tratamento com as fontes, principalmente das provenientes do aparato jurídico-policial. Sem eximir-se do debate sobre a “qualidade” de tal documentação, a autora, ao contrário, propõe-se a tê-la à frente de sua análise, empreendimento no qual obtém êxito.

Em um movimento cadenciado, acompanhamos essas mulheres lançando mão de toda sorte de estratégias para seguir suas vidas a despeito da intensa pressão policial. Vemos esses policiais, em contrapartida, articulando e refinando seus métodos e procedimentos, e nos imergimos no debate jurídico, que buscava estabelecer as significações possíveis para a lei, em uma pendular postura, ora se alinhando ao discurso policial, ora servindo de limite na atuação deste, como nos casos de habeas corpus concedidos.

O livro de Cristiana Schettini nos apresenta assim o vagaroso deslocamento das mulheres de janela, das ruas centrais que se desejava embelezar, para localidades mais distantes, como a região do Mangue, que ficou conhecida posteriormente como uma afamada “zona de meretrício”. Mais do que isso, mostra-nos que a conjugação de ingerência policial e exclusão social não acarreta necessariamente aceitação passiva, ao contrário, as formas de resistência podem ser articuladas dentro do próprio espaço legalizado, no qual todos, independente da condição social a que pertençam, possuiriam princípio de igualdade.

Janete Eloi Guimarães – Universidade Federal de Santa Catarina

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Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830) – FRAGOSO (VH)

FRAGOSO, Joao Luís Ribeiro. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. Resenha de: MENESES, José Newton Coelho. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.15, p. 193-198, mar., 1996.

Se tentássemos resumir em poucas palavras uma obra de tal porte, diríamos que ela se propõe a fazer uma investigação reflexiva sobre os mecanismos de reprodução da economia colonial, em torno da praga do Rio de Janeiro, na virada do século XVIII e primeiras décadas do século XIX, evidenciando que essa economia não se restringe as estruturas do escravismo e do mercado internacional. A esses elementos estruturais somam-se a existência de um mercado interno, a ocorrência de acumulações endógenas e a presença de um setor mercantil residente. A somatória de todos esses elementos, configuraria uma formação social que controlaria, em boa parte, seus pr6prios mecanismos de reprodução.

O presente livro e composto pelos quatro primeiros capítulos da tese de doutoramento do autor1 que, ao que parece, foram pouco alterados para essa publicação, uma vez que se apresenta sob forma rigorosamente acadêmica, o que, infelizmente, pode limitar sua leitura a grupos de interessados. Esses leitores, no entanto, certamente não se arrependerão de poder refletir, sob uma orientação clara e lúcida, acerca da estrutura econômica do sudeste colonial, no período proposto. O caráter acadêmico está caracterizado na obra, sobretudo quando se mantêm a descrição dos métodos e técnicas de pesquisa utilizados, onde o autor explicita as Pontes de diversas naturezas trabalhadas (fiscais e cartoriais), bem como o tratamento dado a elas e os cruzamentos dos seus dados. Além disso, o número excessivo de Tabelas e Curvas (são 79, no total) e a descrição dos dados de cada uma delas, não nos deixa dúvidas acerca do rigorismo citado, e evidenciam a necessidade de uma edição futura, cuidadosamente preparada para uma major parcela de leitores.

Logo de início, Joao Luís Fragoso nos apresenta seu objeto e hipóteses de trabalho, contrapostos a uma análise dos debates que buscaram criar os modelos explicativos clássicos da economia colonial. E discute tais modelos de forma crítica, mas evidenciando a necessidade de conhece-los e de apreender alguns de seus conceitos. 1  Não esquece de mencionar as diversas pesquisas de base que, nas décadas de 70 e 80, buscam as evidencias de um mercado interno colonial e as atividades que giram em torno dele, e define, por fim, a necessidade de se testar novos moldes explicativos, que é o que ele se propõe a fazer. A busca desses novos modelos se enraízam em bases que o autor já pesquisara em trabalho anterior e que lhe apresentaram a formação de uma economia agro-exportadora cafeeira no Vale do Paraíba fluminense, em meio a uma conjuntura econômica internacional desfavorável (depressão europeia de 1815-1850), o que vai de encontro as análises clássicas da economia colonial. Estas veem para o período, uma impossibilidade de acumulação end6gena e, para o autor, somente uma ampla acumulação previamente existente, explicaria aquela nova formação agro-exportadora em período recessivo internacional e da economia escravista açucareira e do algodão. Da mesma forma, ao contrário do que pensava Celso Furtado, a economia cafeeira do Vale do Paraíba não contaria com abundante escravaria vinda de Minas Gerais (em economia decadente), pois Minas, nessa época era a principal compradora de escravos que desembarcavam no Porto do Rio de Janeiro, bem como apresentava um crescimento demográfico significativo. Aos negociantes da praga do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, caberiam uma acumulação, que teria começado nas Últimas décadas do século XVIII, não s6 ligada à exportação, mas também ao abastecimento interno. A elasticidade dessa economia, ultrapassaria as vicissitudes da agro-exportação e, assim, surge, para o autor, a necessidade de se cunhar um novo pressuposto que considere a economia colonial como uma formação econômico-social.

O autor busca “apreender as formas de acumulação presentes na economia colonial do Sudeste, no século XIX”, 2 através das seguintes hipóteses: (1) o escravismo colonial (da plantation), em sua reprodução, gera formas de produção não-capitalistas, ligadas a seu abastecimento, entre as quais, a produção camponesa, o trabalho livre não-assalariado e a produção escravista de alimentos; (2) nessa formação econômico-social do sudeste colonial, o escravismo tem papel hegem6nico; (3) o processo de produção escravista do Sudeste introduz ou redimensiona três categorias na economia colonial que são, a acumulação endógena, o mercado interno onde ela se realiza e o capital mercantil residente que e um elemento gestado e, ao mesmo tempo mediador do processo de reprodução dessa economia. Este mercado interno tem natureza não-capitalista e, parte do trabalho não remunerado colonial assumiria forma de acumulação mercantil, originando uma distinção na hierarquia social sob a forma de dois grupos: uma aristocracia escravista territorial, hegemônica, e comerciantes de grosso trato que seriam os negociantes envolvidos, simultaneamente, no tráfico internacional de escravos, no abastecimento interno e nas finanças coloniais. Apesar do titulo do livro, e mais do que sobre esses homens que o autor vai falar. Ele não descuida de tratar do risco para esse sistema que seriam esses homens de grosso trato, mas, por outro lado, como eles tratam de reproduzi-lo com base na busca do poder hierárquico e na recorrência ao investimento em terras e escravos. Este, talvez seja um dos pontos nevrálgicos de que trata o autor: a recriação de sistemas agrários escravistas em áreas de fronteira que vão manter a sociedade colonial.

As proposições do autor, na medida em que vão de encontro as análises dos modelos explicativos clássicos que tentam demonstrar a incapacidade estrutural da Colônia em gerar acumulação interna, poderiam levar a uma crença na invalidade dos mesmos. Não e o que acontece, uma vez que o próprio autor resgata e apreende o que há de proximidades entre eles e passa a refletir sobre as bases daquelas argumentações. Através dessa raiz, propõe uma nova abordagem acerca do comercio metrópole-colônia: mercado de concorrência e não de monopólios, 1 ou mesmo, quando elege o Rio de Janeiro como o locus privilegiado para a verificação dos mesmos. A busca de respostas a uma pergunta, no entanto, aponta os limites dos modelos explicativos: como se abastecia a plantation ?

A partir da evid6ncia dos limites dos modelos explicativos clássicos da economia escravista colonial, Fragoso, seguindo o pressuposto de caracterizar a economia colonial como uma formação econômico-social, exemplifica, com as áreas do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, o “mosaico de formas nao-capitalistas de produção”, de uma economia colonial “para além da plantation escravista-exportadora”, mostrando formas diferenciadas de organização do trabalho escravo, formas especificas de trabalho livre (camponesa e peonagem) e, sobretudo, uma escravidão alocada em outros setores econômicos.

Em relação ao que descreve sobre Minas Gerais e o comercio de abastecimento desenvolvido na Capitania e, mais tarde, Província, o autor afirma que teria havido uma mudança de direção desse comercio, da mineração para a agro-exportação para território fluminense. Nesse ponto, me parece, o autor negligencia o crescimento demográfico da região mineira, crescimento, aliás, que ele evidencia em vários momentos. A meu ver, mais que uma mudança de direção, ocorre uma ampliação desse mercado, já que este crescimento proporcionaria um aumento da demanda estável de alimentos em território mineiro. Este fator e pouco tratado na obra. No entanto, outras observações são instigantes coma a comparação dos dados de crescimento demográfico, porcentagem de população escrava e participação da pecuária na economia mineira. A partir dessa analise conclui, por exemplo, que a agricultura mineira era tão mercantilizada que permitia adquirir cativos; que a pecuária não era somente produto do trabalho escravo e que o acesso à terra, em Minas, era estável, o que permitia um trabalho camponês/familiar com o auxílio do braço escravo.

Ao tratar, especificamente, do mercado colonial e das acumulações endógenas, Fragoso volta a apontar limites nos modelos explicativos clássicos por apresentarem uma situação paradoxal: a economia colonial, mesmo sendo um modo de produção, não possuiria suas próprias flutuações. Reitera algumas concordâncias com os citados modelos mas propõe novos pressupostos que mudam o angulo de visão do problema. São eles: (1) existência de uma formação econômica e social no espago colonial (escravismo associado a outras formas de produção não-escravistas); (2) ação de uma elite mercantil, originaria de acumulações endógenas e responsável pela reprodução da agro-exportação; (3) o fato de que a economia colonial, mais do que a plantation escravista, é a base de uma sociedade que se pretende reproduzir e, portanto, a inversão do sobretrabalho não mais depende apenas de injunções externas, mas das necessidades de reprodução dessa estrutura social, ditadas, principalmente, pelo mercado interno e pelas acumulações dele originadas. Mais uma vez, o exemplo e Minas Gerais que, sendo a principal região importadora de escravos, tem sua economia baseada na produção para o mercado interno e não para o internacional, o que prova a existência de acumulação endógena. Da mesma forma, o próprio tráfico internacional de cativos era controlado, desde o século XVIII, por comerciantes residentes no Brasil. Esse fato e os dados do tráfico interno “(…)colocam de cabeça para baixo os modelos clássicos da economia colonial’1 e demonstram que “(..) o custeio da empresa agroexportadora era feito, em grande medida, por uma elite mercantil colonial autônoma.” 1

Fragoso caracteriza bem: a plantation não tinha caráter autárquico e, mais que isso, gerava um mercado interno que, por sua vez redefine a natureza da economia e da sociedade coloniais e possibilita, juntamente com outras formas de produção, a ocorrência de acumulação endógena. 0 crescimento demográfico, por outro lado, provoca uma demanda (inelástica) de alimentos produzidos para três segmentos: plantation, setores urbanos e segmentos mercantis voltados para o mercado interno.

A caracterização deste mercado colonial é o objeto sobre o qual o autor vai se dedicar a reflexão, com dados numerosos e suficientes para permitir a conclusão de que ele é um mercado de fortes variações conjunturais que “reforçam o caráter especulativo de seu empresario”2  permitindo acumulações endógenas e uma hierarquia econômica altamente diferenciada, com graus de concentração de riquezas diferentes, de sua base ao seu topo, proporcionando a formação de uma elite mercantil hegemônica, com práticas especulativas que, no entanto, não a impediria de ter uma considerável estabilidade e, mesmo, de exercer práticas monopolistas. Estas seriam as características de um pequeno grupo de abastados empresários da praga mercantil do Rio de Janeiro que, no fundo, demonstrariam o caráter desigual da hierarquia econômico-social dessa praga e a natureza não capitalista do mercado colonial. A direção desse comercio praticado pelos “coloniais” se diversifica geograficamente e especificamente (do tráfico de escravos ao abastecimento de alimentos), mas com sua base no abastecimento interno. A ausência de fortes instituições financeiras, apesar da criação do Banco do Brasil, em 1808, tornaria o ápice desta pirâmide comercial dependente de um capital usurário fornecedor de empréstimos ao mercado e exercido pelos grandes negociantes de cada setor que se tornavam, também, grandes financistas de um mercado cativo.

Este capital mercantil seria o “elemento unificador” do mosaico de formas econômicas da Colônia, papel este que caberia “ao capital mercantil da praga do Rio de Janeiro, personificado em sua comunidade de comerciantes de grosso trato.”3  Praga essa marcada por uma hierarquia econômica que pouco se distingue da presente em sociedades pré-industriais da Europa dos séculos XV e XVI.4  Essa elite comercial carioca, de caráter múltiplo em sua atuação (abastecimento de alimentos, exportação, importação e tráfico de escravos), teria a possibilidade de substituir a aristocracia fundiária no topo da pirâmide econômica, pelas facilidades de apropriar-se do excedente do escravismo exportador e do de outras formas de produção, presentes na formação econômica e social da Colônia.

Como vimos, todas as análises de Fragoso acerca da economia colonial, a consideram como dependente não somente de fatores externos, mas, também de flutuações e especulações internas exercidas por uma pirâmide empresarial de base pequeno proprietária e topo financista usuraria, bem como de um mercado interno diversificado e dinâmico. 0 pressuposto que permite ao autor fazê-las é o de que o ritmo do mercado colonial só pode ser entendido, se considerarmos a Colônia como uma sociedade com suas pr6prias estruturas econômicas e sociais. E mais que isso, uma sociedade com necessidades e mecanismos de reprodução próprios.

A obra de Joao Luís Ribeiro Fragoso, tem vários méritos como a riqueza de dados e a limpidez das análises. No entanto o que mais se destaca é a sua lucida capacidade de justificar as proposições e pressupostos que dão base a sua reflexão.

Notas

1 Comerciantes, Fazendeiros e Formas de Acumulação em uma Economia Escravista-Colonial: Rio de Janeiro, 1799-1888, apresentada a Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, em dezembro de 1990. 0 presente trabalho recebeu o Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa, de 1991.

2 Trata-se aqui dos modelos explicativos de Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Fernando A. Novais, Ciro F. Cardoso, Jacob Gorender, António Barros de Castro, Joao Manuel Cardoso de Mello e Jose Jobson Arruda, dentre outros.

2 FRAGOSO, J. L. R., Homens de Grossa Aventura: acumulação a hierarquia na praga mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830), Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 1992. p. 27

1 Usando, aqui, conceito de Jose Raimundo Correia de Almeida. Op. cit., pp. 70-72.

1 Op. cit., p. 147.

1 Op. cit., p. 133.

2 Op. cit., p. 153.

3 Op. cit., p. 212.

4 0 autor a compara a Florença de 1427 e a Lyon de 1543. Op. cit. pp. 257-258.

José Newton Coelho Meneses – Mestrando em História – FAFICH/UFMG.

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