Do Terror à Esperança: auge e declínio do neoliberalismo | Theotônio dos Santos

Se tivesse que recomendar a meus alunos de história três livros sobre globalização e neoliberalismo que eles devessem levar para uma ilha deserta, facilmente poderia incluir este último livro de Theotônio dos Santos, juntamente com Globalização em Questão, de Paul Hirst e Grahame Thompson (Ed. Vozes, 1998) e Globalization and its Descontents, de Joseph Stiglitz (W.W. Norton & Company, 2002). Hirst & Thompson desmistificam muitas das crenças infundadas sobre a globalização, provando que não é um fenômeno tão novo assim (os movimentos líquidos de capital em relação ao tamanho das economias eram maiores nas décadas do padrão-ouro, anteriores à Primeira Guerra Mundial, do que nas últimas décadas do século XX), nem tão “global” assim (a maioria das companhias ditas “transnacionais” tem claro centro decisório nacional; a maior parte de sua produção é realizada e vendida no país-matriz, o mercado de mão-de-obra absolutamente não é global, etc.).

Já a imperdível obra de Stiglitz me faz lembrar aqueles livros de ex-agentes da CIA que desnudam a Agência por dentro. Stiglitz, prêmio Nobel de economia em 2001, ex-Economista-Chefe do Banco Mundial, critica, com o conhecimento embasado de um insider, o funcionamento de organismos como o FMI, que, em seu afã “globalizante” de disseminar doutrinas de cunho neoliberal nos anos 1990, acabavam por condenar países em desenvolvimento a políticas recessivas. Quanto a este último livro, fica apenas o lamento de que, como as memórias de ex-agentes da CIA, as críticas geralmente vêm post factum, ou seja, após os atualmente criticados golpes de estado, promovidos pela CIA no Terceiro Mundo, ou políticas econômicas equivocadas para os países devedores terem sido implementadas…

O livro de Theotônio dos Santos analisa diferentes aspectos da globalização (tanto negativos quanto positivos) e, principalmente, traça um profundo diagnóstico das origens e do desenvolvimento do neoliberalismo no mundo. A vantagem, para o leitor brasileiro, é que há uma parte do livro dedicada exclusivamente à análise do que foi o Plano Real e um balanço do marcante governo FHC.

A obra será certamente polêmica. O autor não esconde que toma partido e este é “um livro de combate”. Entretanto, o caráter de “libelo” é fundamentado numa análise econômica, solidamente embasada, do fenômeno do neoliberalismo na economia. De certa maneira, é irônico ver como os dois maiores nomes da Teoria da Dependência, nos anos 1960, no Brasil (Fernando Henrique Cardoso e Theotônio dos Santos), se encontram atualmente em lados opostos da trincheira, com o último desenvolvendo um ataque teórico às práticas econômicas do primeiro.

Este livro de Theotônio se insere numa primeira leva de análises no início deste novo século, que já pode contar com um certo hindsight e distanciamento crítico em relação ao que aconteceu nos anos 1990. Com o desmoronamento do campo do socialismo real no Leste europeu no início da década, foram decretados, na mídia e na academia ocidental, não apenas o triunfo final do capitalismo sobre o socialismo, mas também o liberalismo como a única alternativa viável para a eficiência econômica e a democracia política no mundo de hoje, como soletrou com todas as letras Francis Fukuyama, em seu ensaio sobre O Fim da História. Governo após governo se entregava ao receituário ou ao discurso neoliberal. Sua hegemonia realmente parecia absoluta.

Entretanto, no início deste novo século, esta euforia neoliberal ocidental está recebendo choques. O terror de uma ala do fundamentalismo islâmico atingiu, de maneira e direção inesperadas, o cerne do capitalismo mundial. Além disto, os pífios resultados econômicos do neoliberalismo nos anos 1990 (em termos de problemas básicos do capitalismo, como emprego, nível salarial, etc.) começam a aglutinar os descontentes da globalização (Fórum Social Mundial, movimentos antiglobalistas, sindicatos, teóricos não-liberais), na busca de alternativas práticas e teóricas ao discurso dominante. É nesta direção que se insere o livro em resenha.

Do Terror à Esperança traça um histórico de como o neoliberalismo chegou ao seu ápice na década de 1990. O singular é que Theotônio dos Santos acopla esta análise a uma outra vertente da economia: a teoria das ondas longas, de Kondratiev. Este economista russo postulou, nos anos 1920, que, além dos ciclos econômicos (de cerca de 10 anos) já estudados por Marx, há também ciclos maiores, de cerca de 50 anos, cuja primeira metade (fase “A”) teria tendência basicamente de prosperidade e a segunda metade (fase “B”) constituiria uma fase de estagnação. Esta é uma teoria bastante controversa entre os economistas. Entretanto, fica difícil creditar a uma mera coincidência a seqüência de estagnação nas décadas entreguerras, seguida de prosperidade no pós-guerra e de estagnação dos anos 1970 e 1980 (seqüência esta prevista de modo temporalmente exato a partir da teoria de Kondratiev). Uma coisa talvez um pouco mais difícil de provar é o novo período de ascenso, que deveria vir a partir dos primeiros anos da década de 1990. Theotônio há anos sustenta que este é o caso. A admirável performance da locomotiva da economia mundial, os EUA, nos anos Clinton, parecia comprovar as previsões de Kondratiev aí também. Entretanto, a nível mundial, o quadro não é tão nítido assim. Se pegarmos o indicador econômico mais sumário (o Produto Interno Bruto), veremos que o PIB mundial, em médias anuais, cresceu 3,4% no período 1992-2001 contra 3,3% em 1982-91, ou seja, houve uma melhora, mas não tão impressionante assim. Entretanto, deve-se levar em conta que fatores políticos impediram um maior escoamento da prosperidade americana para outros países, em especial o fato de que o desmonte do sistema do socialismo real levou a que o PIB de vários daqueles países caísse, em poucos anos, mais do que o dos EUA durante a Grande Depressão pós-1929. Além disto, os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 levaram as bolsas de valores do mundo inteiro à queda e à instabilidade. Sem estes fatores extra-econômicos talvez a recuperação pós-1994 estivesse bem mais visível. Uma maneira de conjugar todos estes vetores poderia ser adotando a versão de Ernest Mandel para a teoria das ondas longas. O economista belga dizia que a fase “B” (de tendência de estagnação) estava inscrita dentro da própria lógica do capitalismo (através da famosa tendência da queda da taxa de lucro de Marx), enquanto a fase “A”, de prosperidade, não estava tão claramente inscrita dentro da lógica interna do sistema capitalista, dependendo de uma série de fatores exógenos (e, por isto, mais sensível a perturbações políticas como as descritas acima).

O autor da presente resenha sentiu “na pele” quão difícil é, por vezes, sustentar discussões econômicas com base na polêmica teoria de Kondratiev, pois analisou em sua obra, O Declínio da URSS: um estudo das causas (Ed. Record, 2000), a questão do declínio econômico da União Soviética à luz dos movimentos de passagem da economia mundial do fordismo para o pós-fordismo dentro do esquema das ondas longas de Kondratiev. Surpreendentemente, o fogo mais cerrado que sua tese recebeu não foi tanto pelo fato de ter analisado o sistema soviético como tendo uma ótica “fordista” de produção e sim por utilizar o quadro teórico kondratieviano para tentar situar a passagem do fordismo ao pós-fordismo no contexto mundial.

Theotônio traça, então, um amplo quadro, desde as raízes teóricas do neoliberalismo, com Mises e Hayek, ainda nos anos 1940. Entretanto, a conjuntura favorável do pós-guerra, com o longo período de prosperidade kondratieviana nas décadas de 1950 e 1960, fez de Hayek e Milton Friedman uma espécie de “pregadores no deserto”. Mas, com a vinda do período de estagnação kondratieviana, nos anos 1970 e 1980, e a aparente incapacidade do regime de acumulação fordista e do modo de regulação keynesiano de resolver os novos problemas da stagflação e de manutenção do welfare state em condições de crise, as doutrinas neoliberais começam a tomar impulso. Com a ascensão da dupla Reagan-Thatcher ao poder, o neoliberalismo conquista o cerne do capitalismo mundial nos anos 1980. A partir da desintegração da URSS, completa sua marcha triunfal pelo mundo todo, no decênio 1990.

Entretanto, Theotônio aponta que esta euforia neoliberal mundial escondia grandes contradições e um largo pé de barro. Afinal, como explicar que governos que pregam a desregulamentação econômica e o conservadorismo fiscal deixem seus países com maiores déficits orçamentários do que quando entraram? Reagan e FHC são exemplos paradigmáticos neste aspecto. Segundo as palavras do autor, as políticas neoliberais não seguem os próprios preceitos teóricos em que se baseiam e não visam realmente manter o caminho do mercado desregulado e da livre concorrência. Na verdade, são políticas que tendem a servir a grupos econômicos expressos dentro do capitalismo, especialmente o setor financeiro. Vejamos, por exemplo, as chamadas políticas de desregulamentação (como as que Reagan realizou com as companhias aéreas nos EUA, ou FHC fez na telefonia brasileira). Num primeiro momento, podem até aumentar a concorrência no setor, mas depois, com a competição levando à falência das pequenas companhias ou à sua aquisição pelas grandes (ou a mergers), acaba-se formando um novo núcleo oligopólico, que passa a dominar o setor, ou seja, substitui-se um monopólio por outro, sempre no sentido de diminuir a participação/regulação estatal e aumentar a influência do setor privado.

De especial interesse é o exame que Theotônio dos Santos faz do Plano Real em seu aniversário de 10 anos. Ele utiliza este plano como um estudo de caso de sua tese de que as políticas neoliberais não são coerentes com sua própria teoria. O (neo)liberalismo prega a austeridade fiscal e o mercado concorrencial como o alocador ótimo de recursos (quanto menos for perturbado pelo Estado ou por monopólios, melhor). Entretanto, Theotônio chama a atenção para que, ao primeiro sinal de dificuldades, os políticos desta corrente econômica apelam exatamente para pressionar (“distorcer”) o mercado em direções muito específicas (geralmente favoráveis ao setor financeiro, mesmo quando isto se dá em detrimento da área produtiva), além de abandonar descaradamente a austeridade fiscal. O caso Reagan, na década de 1980, foi paradigmático: ao sair do cargo de presidente, ao invés de austeridade fiscal (inclusive por ter cortado gastos sociais do governo), deixou os EUA com o maior déficit de sua história (em grande parte devido a despesas militares). No caso brasileiro, o Plano Real era baseado em três “âncoras”: a cambial (real estável frente ao dólar), a monetária (contenção da emissão e do crédito) e a fiscal (equilíbrio orçamentário). Entretanto, ao enfrentar dificuldades provindas das crises do México, do sudeste asiático, etc., o governo FHC passa a se escorar principalmente na âncora cambial e mantém o real sobrevalorizado. Para isto, precisa aumentar a entrada de dólares no país. Com este intuito, eleva a taxa de juros para que os capitais estrangeiros, atraídos pelos altos juros dos títulos do governo brasileiro, migrem para o Brasil. Mas esta alta taxa de juros é ruim para o setor produtivo nacional, o que cria um círculo vicioso: produzindo “menos”, obtêm-se “menos” dólares através de exportações, o que nos torna cada vez mais dependentes de elevar ainda mais a taxa de juros interna para atrair o capital estrangeiro. O pior é que grande parte destes dólares estrangeiros são capitais especulativos de curto prazo, que não cumprem papel consistentemente produtivo, reforçando o círculo vicioso. Com produção estagnada (e, conseqüentemente, menos impostos coletados), o governo FHC partiu para outras “torneirinhas” fáceis de dinheiro: elevou a carga fiscal na relação impostos/PIB e passou a se financiar através das privatizações de empresas estatais (mesmo as que davam lucro, como a Vale do Rio Doce!); ou seja, o governo simplesmente agiu como aquela pessoa endividada que, ao invés de tentar reforçar suas atividades produtivas e rendosas, simplesmente sobrevive tomando novos empréstimos (a juros cada vez mais altos) e vendendo suas posses para se manter. Não é preciso muito raciocínio para ver que este é um caminho autodestrutivo. O livro destrincha as sutilezas técnicas do Plano Real para demonstrar suas inconsistências e faz uma advertência ao governo Lula: mesmo que gradualmente, é preciso romper com a lógica anterior e instaurar um pensamento político-estratégico a longo prazo para o Brasil.

Para analisar todo o longo período neoliberal das últimas décadas, a obra também excursiona pelo campo das relações internacionais. Algumas de suas teses certamente provocarão polêmica. Por exemplo, Theotônio não considerava a configuração mundial pós-1945 bipolar e sim unipolar, pois a superioridade dos EUA sobre a URSS sempre foi grande e nítida. Chama a atual hegemonia norte-americana de “hegemonia compartilhada” e prevê o dólar perdendo seu poder hegemônico na economia mundial em um prazo médio de 15 ou 20 anos. Contra os teóricos mais entusiasmados da globalização, prevê que o Estado nacional continuará a ter um papel preponderante por um bom tempo ainda (como, aliás, nunca deixou de ter, segundo ele). Entretanto, prega uma integração mais justa entre os diversos estados nacionais dentro da visão de uma civilização planetária plural, multicultural e multifacetada. Como conciliar as proposições destas duas últimas frases é uma das tarefas mais árduas dos políticos atuais. O livro faz um diagnóstico dos problemas das últimas décadas e prescreve alguns possíveis caminhos alternativos. Tanto quem concorda como quem não concorda com suas teses encontrarão na obra grandes subsídios para um entendimento mais aprofundado do fenômeno do neoliberalismo e de suas conseqüências econômicas e políticas.


Resenhista

Angelo Segrillo – Professor do Departamento de História da UFF. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SANTOS, Theotônio dos. Do Terror à Esperança: auge e declínio do neoliberalismo. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004. Resenha de: SEGRILLO, Angelo. Do Neoliberalismo ao… Tempo. Niterói, v.9, n.18, 2005. Acessar publicação original [DR]

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