Doenças, higiene e insalubridade urbana na América Latina (séculos XIX e XX) | Revista Brasileira de História & Ciências Sociais/2022

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Imagem: Lucas Braga Rilkert/Revista Brasileira de História & Ciências Sociais

O Dossiê intitulado “Doenças, higiene e insalubridade urbana na América Latina (séculos XIX e XX)” foi produzido no contexto da Pandemia de Covid-19 e carrega as marcas de uma experiência epidêmica que provocou mudanças no comportamento social.

Na etapa inicial da Pandemia – quando o esforço dos maiores centros de pesquisa do mundo estava voltado para a experimentação e na produção de vacinas, a Organização Mundial de Saúde (OMS) insistiu na importância de medidas sanitárias como o isolamento social e de higiene para conter a circulação do vírus. Simultaneamente, e com a mesma finalidade, autoridades sanitárias nacionais e/ou regionais recomendaram medidas profiláticas como a proibição do velório de vítimas da Covid-19, o fechamento de fronteiras, o isolamento de infectados e dos suspeitos de infecção, a proibição de aglomerações sociais e a higienização de ambientes e objetos supostamente contaminados, dentre outras.

As medidas profiláticas supramencionadas, apesar de não serem consensuais, contribuíram para a redução no número de doentes e mortos e fomentaram interessantes discussões sobre o impacto da higiene individual no coletivo social e sobre os limites da intervenção do saber médico na sociedade. Acreditamos que as discussões – e também os seus desdobramentos políticos – oferecem pistas para a interpretação histórica das epidemias que atingiram as sociedades latino-americanas no transcurso do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. E na intenção de explorar estas pistas, organizamos o presente Dossiê.

Quando apresentamos a proposta do Dossiê para a Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, estávamos cientes da existência de similaridades entre o impacto social da Pandemia de Covid-19 e o impacto social provocado pelas epidemias de Febre Amarela, Cólera e Febre Tifoide que atingiram a América Latina no século XIX e nos primeiros decênios do XX. Dentre as similaridades, destacamos (i) a crescente valorização da higiene; (ii) a identificação de locais potencialmente favoráveis para o contaminação; (iii) as restrições na circulação da população; (iv) a produção de estatísticas de óbito; (v) a sensação de vulnerabilidade diante da doença; e (vi) a discussão sobre eficiência [ou ineficiência] dos procedimentos terapêuticos adotados pelo saber médico. De forma direta ou indireta, os 12 textos reunidos no Dossiê contemplam estas similaridades, e, simultaneamente, registram experiências singulares [no tempo e no espaço] de percepção e enfrentamento de doenças epidêmicas e endêmicas.

O primeiro artigo, escrito por Rebeca López-Mora aborda a epidemia de tifo registrada em 1813, em Tlalnepantla. Situada na parte norte da cidade do México, esta localidade foi atingida pelos conflitos militares entre adeptos da independência e tropas leais à Espanha. Neste sentido, a autora enfatiza a relação entre o trânsito das tropas e a eclosão da epidemia. Os dados apurados por López-Mora indicam que a população indígena foi a mais atingida e que o maior número de óbitos ocorreu entre as crianças.

A relação entre o trânsito de soldados envolvidos nas Guerras de Independência e a transmissão de doenças também foi pesquisada por Julio Contreras-Utrera, autor de um artigo sobre a epidemia de tifo que atingiu a região de Córdoba-Orizaba, em 1813. Naquele contexto, a etiologia do tifo era desconhecida e os óbitos foram atribuídos às chamadas “febres pestilentas” ou às “febres malignas”. O desconhecimento da etiologia do tifo, a aglomeração de soldados em condições anti-higiênicas e a insuficiência dos recursos aplicados no tratamento dos enfermos contribuíram para o elevado número de óbitos, sobretudo entre os indígenas.

O terceiro artigo do Dossiê aborda a epidemia de febre amarela que ocorreu no Rio de Janeiro, no ano de 1850. Geison Siqueira, autor do texto, explorou a posição do jornal Correio Mercantil na produção e difusão de notícias sobre a doença e sobre o impacto que ela provocou na Corte. Dialogando com outros historiadores que pesquisaram a epidemia de febre amarela de 1850, Siqueira destaca a participação do Correio Mercantil nas discussões sobre formas de prevenção e tratamento da “amarela maldita”. O respectivo jornal também publicou textos criticando as ações promovidas pelo governo para conter a epidemia.

Em 1850, enquanto o Rio de Janeiro enfrentava a febre amarela, a cidade mexicana de Puebla estava empenhada na contenção de uma nova epidemia de Cólera – a primeira atingiu Puebla em 1833. Como demonstrou Sergio RosasSalas, [no quarto artigo do nosso Dossiê], diante da gravidade do quadro epidêmico configurado em 1849-1850, as autoridades civis e eclesiásticas de Puebla adotaram medidas sanitárias rigorosas e mobilizaram recursos humanos e financeiros para o tratamento dos enfermos. O poder civil – representado pela municipalidade e pelo governo provincial – exerceu um papel importante no enfrentamento da epidemia. No entanto, o trabalho dos clérigos católicos de Puebla parece ter sido mais expressivo. Por meio dos clérigos, a Igreja Católica arrecadou donativos usados no atendimento dos coléricos e reforçou o que o autor denominou de “respuesta devocional” à epidemia – uma resposta distinta da oferecida pela medicina.

Na sequência do Dossiê, Hugo Sánchez-García aborda as relações entre a higiene e o desenvolvimento urbano na cidade de Guadalajara, no período entre 1890-1912. Ao abordar os investimentos na infraestrutura sanitária Guadalajara, o autor constatou uma crescente preocupação com a qualidade e quantidade da água fornecida para a população. No período entre 1892 e 1902 a expansão na oferta de água foi promovida com recursos do Estado. A partir de 1902 a municipalidade de Guadalajara assumiu a gestão do serviço. Os dados extraídos das fontes documentais consultadas por Sanches-García evidenciam que a expansão na oferta do serviço, promovida pela municipalidade entre 1902 e 1910, foi acompanhada de um incremento na receita gerada pelo fornecimento de água. Eles também comprovam que o atendimento da crescente demanda por água potável demandou investimentos da municipalidade na captação em novos mananciais; na limpeza dos aquedutos; na instalação de hidrantes e na gradual expansão na rede hidráulica. Neste sentido, o autor afirma que os investimentos municipais no abastecimento de água visavam assegurar a salubridade urbana e, ao mesmo tempo, atendiam metas fiscais.

A situação sanitária na Cidade do México, no período entre 1912 e 1920, é o tema central do artigo de Morelos Torres-Aguilar. Pesquisando na imprensa e nos documentos da administração pública, o autor constatou a existência da preocupação das autoridades sanitárias com as precárias condições de higiene da população e com os elevados índices de mortalidade registrados na capital mexicana. No biênio 1914-1915, no auge da Revolução, a situação agravou-se: o conflito entre as tropas de Francisco Villa e Venustiano Carranza provocou a falta de alimentos, dificultou a prestação do atendimento médico e contribuiu para a multiplicação das doenças. Neste biênio, a população da capital enfrentou uma violenta epidemia de tifo e também perdeu vidas para o sarampo, a varíola e a gripe. A partir de 1916, com a contenção do tifo, o quadro sanitário da Cidade do México apresentou sinais de melhora. No entanto, com a chegada da Influenza, em 1918, a situação voltou a ser grave. Durante a epidemia de Influenza, a imprensa local publicou diversos textos criticando o trabalho das autoridades sanitárias, e, simultaneamente, noticiou o surgimento de diversos produtos terapêuticos que prometiam prevenir ou curar a doença.

O interesse da imprensa pelos problemas que afetavam a salubridade urbana e o envolvimento dos periódicos nas discussões sobre as medidas profiláticas e terapêuticas disponíveis na época são temas recorrentes nas pesquisas que configuram a chamada História das Doenças. Neste sentido, o artigo de Torres-Aguilar, assim como o artigo de Rosas-Salas, são dois exemplos de pesquisas que exploram a imprensa como fonte e como “agente” do processo histórico.

O sétimo artigo do Dossiê trata das relações entre a localização dos cemitérios e a salubridade na cidade Vitória, capital do atual Estado do Espírito Santo (Brasil). Neste texto, Julia Freire Perini analisa o embate entre o pensamento médico e as tradições religiosas da população local. Para os médicos do Brasil Imperial, a presença de cemitérios no interior das cidades era um problema sanitário que demandava respostas políticas. No entanto, a posição dos médicos enfrentou a resistência das irmandades religiosas e de segmentos de uma população predominantemente católica. Durante mais de 30 anos (1880-1912), a polêmica em torno da criação de um cemitério nos extramuros de Vitória prolongou-se, produzindo registros documentais na imprensa e nos documentos da administração pública. Como demonstrou Perini, o prolongamento da polêmica envolveu, além da questão sanitária, os interesses econômicos de uma elite que priorizou investir na construção de portos e estradas.

No transcurso do século XVIII, e de forma mais consistente na segunda metade do século XIX, a localização dos cemitérios tornou-se uma questão relevante para a salubridade urbana. O medo da transmissão de doenças pela decomposição dos cadáveres motivou o crescente interesse dos médicos pelos cemitérios. E, para proteger a saúde dos vivos, o destino dos mortos foi submetido ao crivo do saber científico da Medicina.

A mesma Medicina que se ocupou da identificação dos espaços e das práticas sociais que comprometiam a salubridade urbana e que desenvolveu procedimentos para registrar os óbitos, também se ocupou do cuidado com a saúde dos vivos. No nosso entendimento, o cuidado com saúde apresenta três dimensões interligadas. São elas: (1) o monitoramento das condições sanitárias de uma determinada localidade; (2) as medidas profiláticas [que podem ser aplicadas no corpo do sujeito ou no ambiente onde ele habita]; e (3) os procedimentos terapêuticos. Estas três dimensões podem ser observadas no artigo de Evelyn Rodríguez-Alfaro e Rubén Esteban-Villegas que trata do atendimento oferecido para mulheres no Hospital Civil de Zacatecas. O foco da pesquisa da incide nos registros documentais de 730 mulheres atendidas na respectiva instituição, nos anos de 1891 e 1892. Com base nestes registros, a autora analisa aspectos como idade, condição civil (casadas, solteiras ou viúvas), o diagnóstico da doença e os tratamentos aplicados. Os autores identificaram um elevado número de mulheres jovens (com idade entre 16 e 25 anos) diagnosticadas com doenças venéreas e constataram que os tratamentos adotados mesclavam procedimentos antigos recursos terapêuticos inovadores.

No final do século XIX, o Hospital Civil de Zacatecas atendia homens e mulheres, e, consequentemente, seria incorreto pensar que a instituição promovia uma intervenção médica centrada exclusivamente no corpo da mulher. No entanto, também seria incorreto desconsiderar que a medicina produziu discursos e saberes que foram direcionados especificamente para o corpo feminino. Exemplos destes discursos e saberes são analisados no artigo de Roxana Rodríguez-Bravo que trata da preocupação dos médicos com a propagação de doenças venéreas e com a prostituição, no período entre 1862- 1940. Segundo a autora, desde o final do século XIX a prevenção e o tratamento de doenças venéreas – e particularmente, o tratamento da sífilis – recebeu especial atenção da corporação médica e das autoridades sanitárias mexicanas. Na intenção de controlar a sífilis, por sucessivas décadas, a medicina testou diferentes procedimentos terapêuticos. Na década de 1920, o governo mexicano promoveu ações mais incisivas. Na Cidade do México, a partir de 1925, o Departamento de Salubridade criou dispensários especializados no atendimento de mulheres infectadas. Posteriormente, em 1926, o governo aprovou o Regulamento para o exercício da prostituição – um procedimento que encontrava respaldo no pensamento médico da época. Os fatos narrados pela autora se inserem numa conjuntura internacional, dentro da qual o saber médico estabeleceu uma relação preconceituosa entre a sexualidade feminina, a prostituição e as doenças venéreas.

O décimo artigo do Dossiê aborda o problema do descarte das matérias fecais e das águas servidas na cidade de Pelotas, no sul do Brasil. Neste sítio urbano, o poder público buscou reduzir o risco de contaminação do ar, do solo e dos mananciais hídricos pelos dejetos fecais, implantando, em 1875, o Serviço de Asseio Público – também chamado na época de “serviço de remoção de matérias fecais.” Na ausência de uma rede coletora de esgoto, a finalidade do Asseio Público foi impedir o descarte das matérias fecais e águas servidas em locais inadequados, por meio da periódica remoção e higienização de cubos. Controlando os locais de descarte, a municipalidade pelotense esperava melhorar as condições de salubridade da sua população. A intenção era boa e encontrava respaldo no pensamento médico da época; mas, na prática, o Serviço de Asseio Público apresentava dificuldades operacionais e era considerado inadequado para uma cidade que aspirava ser exemplo de modernidade urbana. As dificuldades operacionais do Asseio Público em Pelotas, a sua importância sanitária e a gestão financeira do serviço, no período entre 1875 e 1925, foram analisadas por Fabiano Quadros Rückert e Jonathan Fachini da Silva, autores do artigo.

A história do Asseio Público em Pelotas é um interessante estudo sobre a influência do saber científico na organização dos serviços urbanos e na manutenção da higiene pública. Depois de ser por décadas recomendada pelos médicos como medida profilática necessária para áreas com alta densidade demográfica, no final do século XIX, a técnica da coleta das matérias fecais em cubos tornou-se obsoleta e socialmente indesejada. Entretanto, para cidades que não possuíam redes de esgoto [ou que possuíam redes limitadas ao perímetro central], ela era funcional e impactava de forma positiva na salubridade urbana.

Grosso modo, os países latino-americanos, na transição do século XIX para o XX, buscavam na Europa e nos Estados Unidos, modelos de soluções técnicas para melhorar as condições de salubridade urbana. A prática de “importação” de modelos encontrava adeptos tanto na Medicina, quanto na Engenharia. O artigo de Inês Andrade Éric Gallo apresenta um interessante exemplo de “importação” de uma solução técnica para a salubridade urbana. A autora aborda o contexto que culminou no projeto e construção do primeiro complexo de fornos de incineração de lixo urbano no Rio de Janeiro. A história narrada por Gallo ganhou forma inicial em 1887, quando o governo autorizou a construção dos modelos projetados pelos engenheiros Gierth e Lavagnino. Posteriormente, depois de revisar os projetos e de providenciar a desapropriação da antiga Fazenda Manguinhos, em 1895, a Intendência do Rio de Janeiro iniciou as obras. Projetado para incinerar 400 toneladas diárias de lixo, o Complexo de Fornos construído em Manguinhos foi desativado em 1922.

O artigo de Rildo Bento de Souza completa o conjunto de textos do Dossiê. O autor pesquisou o trabalho assistencial realizado pela Sociedade São Vicente de Paulo, no enfrentamento da epidemia de gripe espanhola, no biênio 1918-1919. A partir de um estudo com uma espacialidade específica [a cidade de Goiás, no interior do Brasil], Souza trata da participação das instituições caritativas no socorro aos enfermos. E, como ressaltou o autor, a prática da caridade – reforçada em situações de epidemia – excedia a materialidade dos donativos e envolvia aspectos morais e religiosos.

Na condição de organizadores do Dossiê, expressamos nossa satisfação pela diversidade de temas contemplados e pela qualidade dos artigos recebidos. Agradecemos aos autores que apostaram na proposta editorial e estendemos o agradecimento aos avaliadores que voluntariamente contribuíram para a qualificação dos textos. Enquanto historiadores, esperamos que o trabalho coletivo, investido neste Dossiê, fomente novas pesquisas e para ampliar o conhecimento histórico sobre relações entre doenças e insalubridade urbana.

Corumbá-Brasil/Xalapa-México, junho de 2022.


Organizadores

Júlio Contreras Utrera – Doctor en Historia Contemporánea por la Universidad del País Vasco, España. Es docenteinvestigador de la Universidad Veracruzana – México.

Fabiano Quadros Rückert – Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Brasil e Doutor em Patrimônio pela Universidad de Jaén – Espanha. Professor Adjunto da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e Pós-Doutorando em História na Universidade Federal do Rio Grande – Brasil.


Referências desta apresentação

UTRERA, Júlio Contreras; RÜCKERT Fabiano Quadros. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v. 14, n. 28, p.5-12, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]

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