Domingos Álvares: African healing, and the intellectual history of the Atlantic World – SWEET (VH)

SWEET, James H. Domingos Álvares. African healing, and the intellectual history of the Atlantic World. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2011, 300 p. MELLO E SOUZA, Marina de. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 48, Jul./ Dez. 2012.

A história de Domingos Álvares, possível de ser reconstituída por ter ele sido alvo de um processo inquisitorial e da pesquisa minuciosa de James Sweet, permite que sejam discutidos vários aspectos das sociedades formadas a partir das relações tecidas em torno do Atlântico no século XVIII. Como já havia feito em seu livro anterior, Recreating Africa, o autor tem como projeto de fundo inserir processos históricos e universos mentais africanos no conjunto de variáveis a serem consideradas nas análises de situações coloniais que envolveram o Brasil e Portugal,e de trajetórias de africanos inseridos à força, por meio da escravização e da introdução na sociedade escravista brasileira, em relações que abarcavam espaços de três continentes, conectados por interesses econômicos, políticos, e palco de intercâmbios culturais. Com uma escrita de alta qualidade e uma narrativa muito bem construída, conduz o leitor por uma sequência de fatos que o envolvem num crescendo no qual a força do texto não prescinde de uma pesquisa de grande fôlego. Cada elemento apresentado pela narrativa foi minuciosamente pesquisado em arquivos e discutido à luz de estudos anteriores, com os quais o autor mantém diálogos que permitem que reflexões já feitas sejam utilizadas de forma a tornar mais consistente sua própria análise.

O fio condutor da narrativa são os acontecimentos da vida de um curandeiro que é obrigado e se reinventar constantemente ao ser escravizado e transportado do Daomé para Pernambuco, dali para o Rio de Janeiro, onde compra sua liberdade e é preso como feiticeiro, sendo então levado para Lisboa, onde conhece os horrores dos porões inquisitoriais, antes de ser condenado ao exílio no extremo sudeste de Portugal, passando então a vagar em busca de uma sobrevivência cada vez mais árdua de ser obtida. Tendo saído adulto de um Daomé convulsionado pelas guerras de expansão do tempo de Agaja, que impunha sua autoridade sobre territórios vizinhos, submetendo os chefes tradicionais e tornando-se o principal fornecedor de escravos para o comércio atlântico a partir da segunda década dos setecentos, levou consigo o conhecimento especializado já adquirido, que o habilitava a recorrer aos voduns e antepassados para lidar com as adversidades do mundo visível, fossem elas pertinentes a questões físicas ou emocionais. Ligado a tradições perseguidas por Agaja que se via ameaçado pelas estruturas de poder a elas ligadas, nativo de uma região submetida ao expansionismo irradiado a partir de Abomé, foi um dos muitos escravizados naquele contexto de guerras regionais, entre os quais deviam se encontrar vários especialistas em práticas mágico-religiosas como ele. Mas de poucos deles foram registradas informações detalhadas. Para desgraça de Domingos Álvares e fortuna do pesquisador e de seus leitores, ele caiu nas garras da inquisição, talvez até por ter superestimado seus poderes e não ter sido suficientemente discreto e cuidadoso no exercício de suas atividades de adivinhação e cura.

As muitas lacunas da história de Domingos Álvares, extraída do processo inquisitorial aberto contra ele, são preenchidas com suposições fundamentadas em informações de ordem diversa, como a história do Daomé e as tensões entre Agaja e os sacerdotes de Sakpata, vodun responsável pela cura da varíola, e as obtidas no banco de dados sobre o tráfico atlântico de escravos, sob a coordenação de David Eltis, que indica a quantidade significativa de escravizados jejes desembarcados no Recife nas primeiras décadas do século XVIII. Para entender o percurso do escravizado Domingos Álvares, primeiro em um engenho nas cercanias de Recife e depois naquela cidade, o autor traça um quadro da economia da época, que passava por um período de crise com muitos engenhos parados, e das relações sociais escravistas que exigiam determinados comportamentos não só dos escravos mas também dos senhores, de forma a garantir a manutenção do sistema. A presença significativa de pessoas escravizadas oriundas da região do Daomé é rastreada não só pelos dados quantitativos produzidos pelo comércio de escravos, mas também pela centralidade do fon no dicionário da língua geral organizado por Antonio da Costa Peixoto, que entre outras coisas associou o vodunon com o padre católico. Em um ambiente de misturas antigas, entre índios, portugueses e africanos, entre os quais até então haviam predominado os bantos, nos anos seguintes a 1720 chegaram muitos jejes, adeptos dos voduns, em consonância com os processos de escravização em curso na costa ocidental da África.

Nesse meio social que propiciava alguma identificação entre africanos vindos da mesma região e que passava por uma crise econômica, os conhecimentos curativos de Domingos Álvares foram agenciados pelo seu proprietário em Recife, para que atuasse não só junto aos escravos como também entre os brancos, pois até mesmo padres católicos integravam elementos de origem africana em suas práticas. Certamente homem de inteligência e sagacidade acima da média, Domingos logo incorporou conhecimentos curativos que circulavam em terras pernambucanas, como plantas adequadas para combater certas doenças e uma prática que adotará a partir de então que consistia em envolver a cabeça do paciente em uma toalha sobre a qual era lentamente derramava água.

Ao detectar a possibilidade de, por meio de suas atividades de cura e adivinhação, articular laços sociais entre seus semelhantes e reivindicar maior independência entrou em atrito com seu senhor que não abriu mão do controle que tinha sobre suas ações. No embate entre a busca de mais autonomia por parte de Domingos e o empenho do proprietário em mantê-lo sob controle conforme as regras da sociedade escravista, as relações entre ambos deterioraram,e seus poderes mágicos foram direcionados contra o senhor e sua família. Já no gozo da fama de curandeiro poderoso, foi acusado de tentar matá-los e encarcerado até que aparecesse um comprador, que o embarcou para o Rio de Janeiro, sendo assim afastada a ameaça que representava não só para aquela família como para a manutenção da ordem senhorial. A falta de vento durante a viagem foi atribuída a resultante de feitiço seu, o que lhe rendeu boas chibatadas e a confirmação de que se tratava de um elemento altamente perigoso, que manipulava forças mágicas.

A despeito dessa fama, ou devido a ela, foi comprado por uma pessoa cuja esposa sofria de uma doença crônica da qual ninguém dava jeito. Nessa nova casa também não foi possível a convivência entre os escravos e seus senhores, que o acusaram de agravar a doença da senhora e mesmo tentar matá-la. Por outro lado, a integração entre os negros do Rio de Janeiro foi rápida e logo Domingos estava novamente exercendo sua atividade de curandeiro. Quando sua permanência na casa do senhor se tornou insustentável devido ao grau a que haviam chegado os conflitos e a ameaça que ele passou a representar à vida da senhora, uma autoridade colonial foi chamada a intervir para solucionar o caso, sugerindo que fosse transferido para a casa de outro senhor, cujos escravos estavam adoecendo em quantidade acima do normal, podendo ser Domingos de utilidade em função dos seus talentos, cujos benefícios eram àquela altura amplamente reconhecidos apesar dos mesmos poderem também ser materializados em malefícios, como ocorreria na casa em que se encontrava.

O sucesso de suas adivinhações e desmanche dos feitiços que estavam provocando as doenças entre os escravos foi imediato e o novo senhor entrou em um acordo que foi favorável a ambos, dando-lhe a autonomia que buscava e liberdade para exercer sua profissão de curandeiro em troca de pagamento. As vantagens pecuniárias foram tão altas para os dois, que apesar do baixo índice de alforrias entre homens africanos, Domingos conseguiu comprar sua liberdade, depois de ter dado um bom lucro ao seu senhor. Sweet atribui os diferentes comportamentos de seus senhores no Recife e no Rio de Janeiro às diferenças entre a maneira de pensar e agir de um senhor de uma área rural conservadora, atrelado à sua lógica econômica, e a maneira de pensar e agir de um senhor inserido num mundo urbano pautado pelo empreendedorismo, para o qual o ganho obtido por meio do trabalho do escravo era mais importante do que a manutenção de uma dada estrutura social.

A etapa final da trajetória de Domingos Álvares no Brasil transcorreu entre a população livre do Rio de Janeiro, africana, afrodescendente, mestiça e mesmo branca, com ele atuando sempre nas fímbrias, seja do centro urbano, seja entre aqueles inseridos nos lugares menos privilegiados da organização social. Depois de ter seus talentos monopolizados pelo senhor em Recife, contra o qual se insurgiu, ter conquistado autonomia e propiciado altos ganhos para si e seu segundo senhor no Rio de Janeiro, o que lhe permitiu comprar sua liberdade, entrou numa terceira etapa de sua adaptação à vida na sociedade escravista brasileira, ao construir em torno de si uma comunidade de adeptos, estabelecida num centro de culto que atraía pessoas em busca de cura para seus males. Tal sucesso deve ter lhe subido à cabeça e dado uma autoconfiança que fez com que não percebesse o perigo que corria com o exercício público e aberto de suas curas e adivinhações. As denúncias aos representantes da inquisição se multiplicaram (e serviram de base para a reconstituição de sua atuação como adivinho e curandeiro) e em 1742 Domingos acabou enviado para Lisboa para ser julgado pelo Santo Tribunal. Junto com ele desembarcaram em Lisboa outras duas acusadas de feitiçaria: uma crioula chamada Luzia da Silva Soares e Luzia Pinta, nascida em Luanda e objeto de alguns estudos que buscam entender as misturas presentes em suas práticas e os processos culturais que levaram à formação delas.

Depois dos interrogatórios, mais de dezoito meses na prisão e uma sessão de tortura rápida e eficiente, Domingos abjurou de suas culpas, saiu em auto da fé e rumou para Castro Marim, na divisa com a Espanha, onde deveria cumprir a pena de quatro anos de exílio. Premido pela necessidade de sobrevivência ignorou a pena imposta e perambulou pela região fazendo curas em troca de comida e abrigo, e adaptando-se às necessidades locais ao incorporar novos conhecimentos. Tratou doenças com ervas e disse ser capaz de encontrar tesouros enterrados uma vez que esta era uma forte demanda local para os portadores de poderes de adivinhação. Conseguiu construir vínculos com uma ou duas pessoas que o ampararam em momentos de maior necessidade mas nunca foi tão marginal, com as marcas da alteridade inscritas na cor de sua pele, nos orifícios nas orelhas e nariz, nas incrustações nos dentes, todos indícios de sua condição de africano e ex-escravo, ainda por cima condenado ao exílio pela inquisição. Mesmo assim não abriu completamente mão de sua ousadia e descumpriu a ordem de permanecer em Castro Marim, e voltou a exercer sua profissão de curandeiro e adivinho, para o que chegou a forjar situações que simularam a interferência de forças do além para impressionar seus clientes.

Mais uma vez denunciado, voltou a argumentar diante do tribunal a partir da lógica da racionalidade ocidental e do catolicismo, dizendo que apenas usou ervas para curar e que os incidentes sobrenaturais não passaram de engodo estimulado pela extrema necessidade em que se encontrava. Seu estado deplorável talvez tenha comovido o juiz, que o libertou depois de alguns meses de cárcere, condenando-o ao exílio em Bragança onde parece nunca ter chegado pois findam em Évora, onde foi julgado pela segunda vez, os registros acerca de sua existência.

A história de Domingos Álvares, é narrada com extrema competência tanto no que diz respeito à minuciosa pesquisa que busca completar as informações do processo inquisitorial e dar subsídios para uma análise que transcenda a esfera individual e proponha uma compreensão de contextos pelos quais o indivíduo transitou, quanto no que se refere ao texto propriamente dito, que transporta o leitor para o seio dos acontecimentos e prende sua atenção num crescendo que faz com que se emocione com o destino do personagem. Mesmo sendo um livro essencialmente descritivo, com potencial para interessar um público mais amplo do que o de um grupo de historiadores, contém uma boa análise sobre a realidade apresentada, sempre conectando a história do Daomé com os processos em curso ao redor do Atlântico, e a organização social dos grupos daquela região da África com as experiências vividas por Domingos Álvares. Nesse sentido, argumenta que as estruturas básicas que ligam o homem à sua ancestralidade e ao grupo social do qual é parte indissociável estariam sempre orientando as suas ações, ao mesmo tempo que ele buscaria se adequar aos contextos nos quais se encontrava, para o que geralmente, mas não sempre, demonstrava especial sensibilidade, ao perceber quais comportamentos seriam mais proveitosos. Pois se não escondeu suas atividades de adivinho e curandeiro, talvez sentindo-se fortalecido pela comunidade que criou ao redor da sua casa de culto no Rio de Janeiro, ao ser inquirido pelos juízes do tribunal da inquisição entendeu ser mais proveitoso se apresentar como escravo, mesmo já tendo comprado sua liberdade, pois dessa forma evocava um vínculo com alguém que poderia protegê-lo no contexto da sociedade escravista e buscava evitar o pior, que seria a existência totalmente isolada, afastada fosse dos ancestrais, fosse dos senhores.

Com uma interpretação bem mais consistente do que a presente em seu livro anterior, Recreating Africa, James Sweet continua, entretanto, a tratar a cultura como um conjunto de traços o que faz com que busque paralelismos entre práticas daomeanas e brasileiras, como por exemplo quando equipara os processos de iniciação no culto de Sakpata e o batismo católico. Mais interessado em detectar equivalências que expliquem as novas práticas, do que em desvendar processos de interpretação e de tradução simbólica, sua análise perde fôlego no que se refere à esfera da cultura, e o fascinante quadro de trocas simbólicas que seu texto desvenda não chega a ser explorado além da descrição de práticas e da indicação de paralelismos. Nesse sentido, não entra no conjunto de preocupações do autor a busca por compreender os mecanismos por meio dos quais Domingos Álvares adotou tradições em vigor em Pernambuco, no Algarve, e mesmo incorporou explicações típicas do discurso inquisitorial, como quando acusou uma mulher de feiticeira, pois anos antes ela teria dormido com o Demônio. Essa ausência só é notada porque os contatos culturais estão constantemente presentes no texto e não chegam a ser explorados com mais vagar, como acontece com vários outros assuntos introduzidos pela documentação. Domingos é apresentado como se reinventando constantemente, como um híbrido cultural, como tendo uma extraordinária capacidade de adaptação, mas não é proposta uma análise dos processos pelos quais essas transformações ocorreram. A constatação, presente em vários momentos do livro, de que a partir do exílio era necessário construir novas comunidades, orienta a análise para a esfera das relações sociais e talvez seja essa a razão da interpretação final carecer de densidade, pois propõe uma análise do universo intelectual existente no quadro de circulações atlânticas sem ter se detido com mais vagar sobre as questões culturais, pertinentes, me parece, ao que chama de intelectual.

Ao comparar os destinos de Domingos Álvares e de uma menina que Tegbesu mandou de presente ao rei de Portugal (por meio de um embaixador que enviou a Salvador em 1750), mas que por ter ficado cega não seguiu para Lisboa, James Sweet conclui seu livro ressaltando casos nos quais a invisibilidade social e a solidão prevaleceram, atribuindo essa derrota às instituições imperiais que levaram à individualização, por oposição às tradições africanas nas quais os laços de parentesco, seja com os vivos, seja com os mortos, eram constitutivos básicos do ser.Segundo essa perspectiva, que não toca na questão das relações de poder em jogo, podemos pensar que de nada teria valido a capacidade de adaptação de Domingos Álvares diante das determinações do mundo capitalista em construção. Segundo Sweet, suas práticas de cura, que não diziam respeito apenas às pessoas mas também à sociedade, pois desvendavam conflitos e tensões, representariam uma alternativa para neutralizar o infortúnio por meio da ênfase no bem estar comum. Mas no embate entre diferentes lógicas, de um lado a das tradições africanas, e de outro a da Coroa portuguesa, da Igreja católica, e dos senhores coloniais, restou para Domingos Álvares o isolamento social e a penúria. E para isso os interesses imperiais do Daomé trabalharam junto com os de Portugal, pois também para Agaja e Tegbesu o poder dos ancestrais e dos voduns deveria ser neutralizado para não constituírem uma ameaça a eles. Esse, aliás, é um dos pontos fortes e originais da análise de Sweet, que argumenta que havia uma interconexão entre os processos imperiais em curso em Portugal e no Daomé, que se encontraram no mundo Atlântico do século XVIII.

Considerando Domingos um intelectual africano, o que me parece um uso inadequado do conceito, com a ressalva de que não tenho familiaridade com os estudos dos quais extrai essa ideia, Sweet entende que pessoas como ele, mesmo quando neutralizadas pelo poder institucional português, produziram um profundo impacto no discurso intelectual do mundo atlântico ao oferecer uma linguagem alternativa de cura que desafiava o nascente imperialismo sócio econômico. Mesmo sendo parte derrotada nesse embate as ideias africanas fariam parte das construções atlânticas, ao lado da herança intelectual europeia. Apesar de concordar com sua afirmação, discordo da maneira como a fundamenta, pois, no meu entender, se a contribuição africana está presente na construção do que Sweet chama de mundo intelectual atlântico não é por ter proposto uma lógica alternativa, que confrontou a dominante, e sim porque muitas pessoas foram bem sucedidas ao participar de processos de construção de comunidades que, apesar de dominadas, fizeram parte da formação desse novo mundo atlântico e da interpretação de sistemas simbólicos que resultaram em concepções e práticas que mesmo não hegemônicas integram-no.

Na ânsia de chamar atenção para o lugar da contribuição africana na construção do mundo atlântico, inclusive considerando os processos políticos internos ao Daomé, Sweet propõe uma interpretação que não me parece ser sustentada pela sua pesquisa e pelo seu admirável texto, que conta a história de uma pessoa que, depois de um sucesso temporário, fracassou em sua tentativa de recriar laços sociais a partir de práticas de cura africanas, mergulhando na obscuridade da solidão e do isolamento, enquanto tantas outras foram bem sucedidas e, elas sim, participaram da construção de um mundo atlântico, no qual o lugar da contribuição africana está sendo cada vez mais demonstrado. Como já transparecia em seu livro anterior, Sweet prefere abordar os diferentes sistemas culturais em contato, africanos e europeus, como estruturas que entram em choque e não como sistemas que criam áreas de comunicação, que resultam em produtos culturais novos. No que entende ser um embate entre um estilo europeu individualista e iluminista (e não nos é dito como este se coadunaria com o tribunal da inquisição), e sistemas de pensamento africanos que enfatizariam o bem estar comum, percebe a derrota deste, no seu entender temporária, com a saída de cena de Domingos Álvares. A sua resistência em voltar a atenção para os processos de diálogo cultural não permite que invista na análise do que a história que nos conta aponta com mais força, ou seja, a maleabilidade do comportamento de Domingos Álvares e a sua capacidade de perceber rapidamente o mundo que o cerca, adaptar-se a ele e buscar formas de integração que comportam práticas e comportamentos de sua sociedade de origem.

Ao ignorar o caminho que considera o compartilhamento de códigos culturais na formação de um mundo atlântico e enveredar pelo que ressalta o confronto entre eles, força uma análise segundo a qual a contribuição africana, fundada no enfrentamento das vicissitudes pela perspectiva da cura, teria antecipado a contestação à escravidão e ao imperialismo que surgiria mais tarde, resultante do humanitarismo e das ideias relativas às liberdades individuais. Por esse caminho reivindica um lugar para a contribuição africana no desenvolvimento de posturas humanistas, para as quais seriam sempre apontadas apenas as contribuições europeias e americanas, e entende Domingos Álvares como um típico exemplar da modernidade, ao mesmo tempo que feroz oponente do mundo capitalista, em formação à época em que viveu. Ao deixar de explorar os processos pelos quais as contribuições africanas formaram o mundo atlântico na medida em que participaram de um diálogo, mesmo ocupando o lugar de dominados, busca identificar essa contribuição na linguagem gestada a partir do pensamento ocidental, identificando nas tradições africanas elementos de modernidade antes que esta se constituísse enquanto tal. Proposta certamente ousada e não destituída de interesse, não chega a ser plenamente convincente ao tomar como base para sua defesa a vida de Domingos Álvares, pela qual somos magistralmente conduzidos pela sua perícia de narrador e pesquisador.

Marina de Mello e Souza – Departamento de História da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP, São Paulo – SP, marinamellos@uol.com.br.

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