Esclavos e indígenas realistas en la Era de la Revolución. Reforma/ revolución y realismo en los Andes septentrionales/ 1780-1825 | Marcela Echeverri

Podría pensarse que ésta es una historia de la lealtad y que el libro relata la lucha que sostuvieron indios y esclavos por el rey, y no por la patria, en las revoluciones independentistas. En realidad, se trata de algo más complejo e interesante. El de Marcela Echeverri es un estudio de la acción política de comunidades de indígenas y de esclavizados y su participación concreta en los procesos de reforma, crisis y disolución de la monarquía española en América. Es el análisis del tránsito del orden virreinal de la Nueva Granada al estado nacional colombiano a partir de una muy particular provincia, Popayán; laboratorio idóneo para comprender y explicar la diversidad de experiencias que los conflictos y la guerra de ese tránsito acarrearon.

Nada en esa región peculiar del suroccidente neogranadino parece encajar con las narrativas nacionalistas tradicionales de las independencias: indios y negros dirigidos por indios y negros que persisten contra todo y contra todos, Bolívar incluido, en nombre del rey. Es el mundo al revés en el que los libertadores son conquistadores, la república es tiranía y la victoria se asume como derrota. Ahí las guerrillas son de realistas, son los patriotas quienes reintroducen tributos y exacciones y la independencia es tan indeseada como el rey parece ser anhelado. Leia Mais

As ações de liberdade no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro no período entre 1871 e 1888 | Carlos Henrique Antunes da Silva

Muito se discute atualmente sobre o papel do Poder Judiciário no Brasil. Em fins do século XIX, permearam as instâncias e as decisões judiciais ações cíveis cujo objeto era a liberdade de escravos. Sem os meios de comunicação de que hoje dispomos, ainda assim parte da sociedade estava atenta ao assunto. Para além da opinião pública e dos movimentos sociais de então, o trabalho que temos em mãos tem como ponto de partida um elemento bastante presente nas fontes utilizadas para o estudo da escravidão, mas nem sempre em evidência nas investigações relacionadas ao tema: o Estado. De que modo os agentes atuantes na estrutura judiciária do Império lidaram com os processos impetrados pela liberdade de homens e mulheres na condição de escravos? Que instrumental advogados e desembargadores operaram em suas argumentações e decisões?

O livro que nos coloca essas e outras questões é resultado de uma pesquisa de mestrado em História defendida na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) em 2015. Seu autor, Carlos Henrique Antunes da Silva, é formado em Direito, História e Filosofia, adentrando também a Sociologia do Direito neste estudo. O referencial teórico adotado por ele está na obra do sociólogo Pierre Bourdieu, em sua reflexão sobre as representações e relações simbólicas de poder. A noção “campo jurídico”, particularmente, busca dar a ver o movimento de definição do Poder Judiciário durante o Brasil Império, sem deixar de lado as especificidades da época, como a vigência da escravidão de africanos e descendentes. Leia Mais

Doenças e cativeiro: um estudo sobre mortalidade e sociabilidades escravas no Rio de Janeiro, 1809-1831 | Keith Valéria de Oliveira Barbosa

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Keith Barbosa | Foto: ufam.edu.br/notícias

BARBOSA K Doenca e catieiro mortalidadeO livro de Keith Valéria de Oliveira Barbosa, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Amazonas, é fruto de sua pesquisa desenvolvida no seu mestrado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

A obra é dividia em quatro capítulos, no primeiro, “Escravidão e doenças: historiografia, fontes e métodos”, a autora buscou analisar como a mortalidade escrava não estava ligada apenas ao contato entre pessoas de diferentes continentes e, portanto, que o tráfico atlântico em si não dá conta de explicar a mortalidade escrava. Em outras palavras, embora o contato entre indivíduos de espaços geográficos distantes inevitavelmente tenha colocado patógenos em condições de causar doenças que eram desconhecidas para os africanos, a questão não pode ser analisada apenas por esse prisma.

As condições de vida da população cativa propiciavam “ambientes” para que enfermidades matassem muito. A falta de alimentos, os maus tratos, a insalubridade do trabalho, as condições higiênicas inadequadas das senzalas, entre outros aspectos, faziam com que a vida de escravo fosse abreviada muitas vezes pela morte. Leia Mais

The Yellow Demon of Fever: Fighting Disease in the Nineteenth-Century Transatlantic Slave Trade | Manuel Barcia

Não é necessário ser especialista para saber que o tráfico de pessoas escravizadas entre o continente africano e as Américas, ao longo dos séculos, foi um mar de horrores em termos sanitários, dentro e fora das embarcações. Nem é coincidência que os navios que transportavam esses africanos e africanas para a venda na outra costa do Atlântico fossem chamados de tumbeiros. Mas, além da dor e da desumanização de suas vítimas, a viagem negreira foi também uma experiência sobre o conhecimento das doenças que se manifestavam durante a travessia. Foi também o terreno em que diferentes tratamentos daquelas enfermidades puderam se desenvolver para salvar vidas. Leia Mais

Escravos e libertos nas minas do Rio de Contas: Bahia/século XVIII | Kátia Lorena Novaes Almeida

Publicado em 2018, o mais recente livro da historiadora Kátia Lorena Novaes Almeida aborda a escravidão e a liberdade na região mineradora de Rio de Contas, na Chapada Diamantina da Bahia, sendo fruto de sua tese de doutoramento defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia. Autora de um estudo anterior, lançado em 2012, no qual buscou compreender trajetórias sociais de egressos do cativeiro na referida região (Alforrias em Rio de Contas: Bahia, século XIX), Kátia Almeida explorou, desta feita, as leituras que escravos, libertos, senhores e advogados fizeram da escravidão e da alforria no termo de Rio de Contas, no século XVIII. Leia Mais

Slave Traders by Invitation: West Africa’s Slave Coast in the Precolonial Era | Finn Fuglestad

“Traficantes de escravos por convite”: esse é o título do livro de Finn Fuglestad, professor da Universidade de Oslo. Antes desse trabalho, Fuglestad era mais conhecido por seu livro A History of Niger, publicado em 1983.1 Entre as duas obras, o autor publicou diversos capítulos de livros e textos de referência sobre história africana. Ou seja, estamos falando de alguém bastante experimentado nos meandros desse campo de estudos. Leia Mais

Escravos e Senhores na Terra do Cacau: alforrias, compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos, 1806-1888) – GONÇALVES (RTF)

GONÇALVES, Victor Santos. Escravos e Senhores na Terra do Cacau: alforrias, compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos, 1806-1888). Ibicaraí: Via Litterarum, 2017. Resenha de: SANTOS, Zidelmar Alves. Sobre escravos e senhores na terra do cacau (Ilhéus, sul da Bahia). Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 12, n. 1, jan.-jul., 2019.

A história do sul da Bahia está intrinsecamente ligada à saga do cacau. A literatura regional, principalmente as obras de Jorge Amado e Adonias Filho, contudo, contribuiu para a construção de uma memória que, se não apagou o passado colonial e escravocrata de Ilhéus e região, o omitiu, deixando-o no esquecimento.

Não podemos esquecer que o sul da Bahia estava inserido no contexto da escravidão, o que fortalece a ideia de que a riqueza advinda com os “frutos de ouro” foi construída ao custo muito sangue e suor não apenas de trabalhadores livres, mas também de escravos e negros libertos.

O livro Escravos e senhores na terra do cacau: alforrias, compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos, 1806-1888), de autoria do historiador Victor Santos Gonçalves, lança nova luz às relações estabelecidas entre os senhores, donos de grandes, médias e pequenas propriedades rurais, e escravos, que buscavam, além da sobrevivência, conquistar a liberdade, ainda que precária.

O trabalho é fruto de dissertação de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da UFBA entre 2012 e 2014 e possui prefácio da historiadora Maria de Fátima Novaes Pires. A obra é dividida em três capítulos. Em um primeiro momento, analisa a formação do espaço socioeconômico da vila de Ilhéus, destacando-a, a partir do século XVIII, principalmente como uma vila produtora de mantimentos. Aponta que, ao longo da primeira metade do século XIX, experimentou um crescimento populacional de forma gradual, que continuou na segunda metade deste século, seguindo o rastro do desenvolvimento econômico que pode ser observado pelo aumento das exportações de cacau e pelo tráfico ilegal de escravos africanos.2 Esse crescimento populacional, contudo, vai ao encontro dos discursos de crise de mão de obra construídos pelo governo provincial, que passou a estimular a criação de colônias agrícolas no sul da Bahia a partir dos anos 1850. Henrique Lyra salienta que “a criação de núcleos coloniais agrícolas na região Sul da Província estava diretamente ligada a uma política governamental para, muito mais que proporcionar a fixação de colonos como proprietários de terras, direcionar para aquela região o excedente populacional existente na Província”.3 Isso gerou “um fluxo migratório do centro e do norte para o sul da Província”4 em um momento em que a população escrava diminuía por conta da proibição do tráfico negreiro.

A leitura da obra de Gonçalves, inclusive, faz a relação “exportação de cacau – trafico negreiro” saltar aos olhos do leitor, descartando a concepção de que a lavoura cacaueira na comarca de Ilhéus desenvolveu-se única e exclusivamente por meio do trabalhador livre. O historiador Carlos Roberto Arléo Barbosa, por exemplo, destaca o envolvimento de grandes fazendeiros de cacau com a escravidão. Observe: grandes fazendeiros, com auxílio de escravos, plantaram cacau em suas propriedades. Em Castelo Novo, Sá Homem Del Rei, com 52 escravos, transformou o engenho de açúcar em fazenda de cacau, com 50 mil pés. Fortunato Pereira Galo, com 23 escravos, plantou 200 mil pés. O Dr. Pedro Cerqueira Lima, de família de traficantes de escravos, de Salvador, comprou a Fazenda Almada com 35 escravos. Depois, o seu filho, Pedro Augusto Cerqueira Lima, em 1892, possuía 200 mil pés de cacau. Outras propriedades cacauicultoras surgiram nessa época, como as dos Lavigne e as de Pedro Weyill.5 O desenvolvimento da lavoura cacaueira no sul da Bahia se deu em um momento em que o número de engenhos no estado passava por grande crescimento ao longo do século XIX, principalmente no interior, conforme indica Katia Mattoso: No final do século XVIII, a Bahia tinha 260 engenhos; em 1818, Spix e Martius encontraram 511. Num famoso ensaio sobre a fabricação de açúcar, o futuro Marquês de Abrantes arrolou 603 em 1833. Mais tarde, em 1853, em relatório a Assembleia Provincial, o presidente da Província falou em 759 engenhos registrados. Finalmente, em 1875, Manuel Jesuíno Ferreira citou 839 engenhos, 282 dos quais equipados com máquinas a vapor.6 Isso ratifica a hipótese de que a mão de obra escrava utilizada nos engenhos de açúcar era aproveitada ao mesmo tempo no plantio, não apenas do cacau, bem como de outras monoculturas estabelecidas em outras áreas do estado baiano.

Em um segundo momento, Gonçalves traça um painel da escravidão em Ilhéus, concebendo ela nos quadros do Antigo Regime português, que legitimava as desigualdades sociais. Assim, investiga os processos de busca pela liberdade por meio de vias legais. Destaca-se o caso do escravo Vicente, por exemplo, que não conseguiu provar à justiça que seu pai havia desembarcado no Brasil após a promulgação da lei que proibia o tráfico em 1831.7 No entanto, a conquista da liberdade poderia acontecer pelo mecanismo da alforria, seja ela onerosa (condicional e incondicional) ou gratuita (condicional e incondicional). O fato é que, em Ilhéus, “até as últimas décadas da escravidão, os escravos lutaram e pagaram vários preços pela sua liberdade”8 visto que muitas alforrias eram concedidas de forma condicional, o que sugere que estas dependeram da habilidade de negociação dos escravos para com seus senhores9.

O trabalho de Elciene Azevedo10 sobre lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo, por exemplo, demonstra outras nuances na busca pela liberdade, como a atuação e influência do movimento abolicionista sobre os escravizados, onde destaca-se a figura do poeta e advogado abolicionista Luiz Gama. Robert Slanes, em Na senzala, uma flor11, por outro lado, já havia demonstrado a importância da construção de laços familiares entre escravizados, utilizando como recorte empírico a região de Campinas. Procede, dessa forma, uma forte crítica às visões clássicas do escravismo, que reduzia os negros a animalidade e desenfreada promiscuidade sexual, o que impedia a constituição da família escrava, família esta que, conforme aponta Gonçalves, impulsionou as manumissões em Ilhéus.

Gonçalves, por fim, analisa os significados das cartas de alforria para senhores e escravos: “os senhores viam nela um reforço de poder, prestígio e ampliação de subordinados, já os cativos percebiam-na como um passo para ascender socialmente à condição de libertos”.12 A família escrava e o compadrio fortaleceram as iniciativas por manumissões, ao passo que funcionavam como elementos de resistência às dificuldades impostas pelo regime escravista. Em 1840, o Tenente-Coronel Egídio Luiz de Sá, por exemplo, alforriou seu afilhado João, cinco anos de idade. Recebeu de seu pai, José Fillippe, a quantia de duzentos mil reis. Ainda que tenha sido cobrada uma quantia, “a família escrava e o compadrio impulsionaram a carta de liberdade de João”13 o que ratifica a tese de Gonçalves.

A obra de Victor Santos Gonçalves, Escravos e Senhores na Terra do Cacau, dessa forma, constitui-se enquanto uma importante contribuição para a historiografia da escravidão em Ilhéus, principalmente se considerarmos que os trabalhos sobre esse universo escravocrata ainda são escassos. As fontes primárias utilizadas pelo autor, a exemplos de processos-crime, cartas de alforria, registros notariais, registros de casamento e de batismo, dentre outras, coletadas principalmente no Arquivo Público do Estado da Bahia – APEB, no Centro de Documentação e Memória Regional – CEDOC da UESC, no Arquivo da Cúria Diocesana de Ilhéus e na Secretaria da Catedral de São Sebastião de Ilhéus, indicam vários caminhos para novos pesquisadores, pois demonstram diversas possibilidades de análise, o que ratifica a ideia de que há muito a ser feito. Considerando ser este o livro de estreia do pesquisador, pode-se dizer que trata-se de um trabalho de peso. Embora escravos e senhores tenham na terra do cacau seu campo de ação, os “frutos de ouro”, o latifúndio e os coronéis não são os protagonistas. Isso demonstra que o historiador lançou um olhar diferenciado para o universo escravocrata do sul da Bahia, privilegiando as relações sociais e estratégias de resistência de minorias que foram silenciadas pela historiografia e pela literatura regional.

2 GONÇALVES, Victor Santos. Escravos e Senhores na Terra do Cacau: alforrias, compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos, 1806-1888). Ibicaraí: Via Litterarum, 2017, p. 66-71.

3 LYRA, Henrique Jorge Buckingham. A “crise” de mão-de-obra e a criação de colônias agrícolas na Bahia: 1850 – 1889. In: CARRARA, A. A.; DIAS, M. H. Um lugar na história: a capitania e comarca de Ilhéus antes do cacau. Ilhéus: Editus, 2007, p. 253.

4 Ibidem, p. 247.

5 BARBOSA, Carlos Roberto Arléo. São Jorge dos Ilhéus: um panorama histórico. In: PÓVOAS, Rui do Carmo. (Org.). Mejigã e o contexto da escravidão. Ilhéus: Editus, 2012, p. 432.  6 MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia, Século XIX: uma província no Império. 2. Ed. Tradução de Yedda de Macedo Soares. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 462.

7 GONÇALVES, op. cit., p. 135-139.

8 Ibidem, p. 205-206.

9 Entre 1806 e 1888 foram registradas 251 cartas de alforrias em inventários, testamentos e no Livro de Notas do Município de Ilhéus. Destas, 69,7% envolviam pagamento e/ou condição e apenas 25,5% eram totalmente gratuitas. Apenas uma carta (4,8%) não teve tipologia identificada por Gonçalves (2017, p. 233).

10 AZEVEDO, Elciene. O Direito dos Escravos: lutas jurídicas e abolicionistas na Província de São Paulo na segunda metade do século XIX. 2003. 232 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003.

11 SLANES, Robert. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2. Ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.

Zidelmar Alves Santos – Mestrando em Letras: Linguagens e Representações pela UESC, Ilhéus, Bahia. Graduado em História e Especialista em História do Brasil pela mesma instituição. Endereço profissional: Campus Soane Nazaré de Andrade, Rod. Jorge Amado, Km 16 – Salobrinho, Ilhéus – BA, 45662-900. E-mail: [email protected].

Escravos e senhores na terra do cacau: alforrias/compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos/1806-1888) | Victor Santos Gonçalves

Até pouco tempo atrás, escravos que trabalhavam fora das grandes lavouras de cana de açúcar e café, ou em regiões mineiras, mereciam pouca atenção dos historiadores. Ficou, então, possível negar a importância da mão de obra escrava em tais circunstâncias. Nos últimos vinte anos, a historiografia mudou e os pesquisadores começaram a prestar mais atenção às experiências dos cativos do que ao modo de produção e, com esta mudança, os escravizados em zonas de menor porte econômico, ou em lavouras menos conectadas à economia de exportação, começaram a atrair mais interesse. O livro aqui resenhado é uma das mais recentes e benvindas contribuições a esta nova historiografia. Leia Mais

Seeds of Empire: Cotton, Slavery, and the Transformation of the Texas Borderlands 1800-1850 | Andrew Torget

Three enslaved people – Richard, Tivi, and Marian – fled enslavement in Louisiana in 1819, seeking relief from the brutality of slavery in the United States in the northern borderlands of New Spain. At this time, the Mexican province of Tejas was home to a small population of ethnic Mexicans, known as Tejanos, along with a larger indigenous population, including the powerful Comanche. Less than thirty years later, this area would be the state of Texas within the United States and home to the fastest-growing enslaved population in the slaveholding republic. In his meticulously-researched book, Andrew Torget follows the emergence of an Anglo-Texan society, nation, and, eventually, state. The book takes a firmly political and economic approach to history, which makes for a propulsive and clear narrative, but Richard, Tivi, and Marian aside, keeps that narrative largely the preserve of economically and politically powerful individuals and groups – legislators, empresarios, generals, and merchants. Torget masterfully integrates an intricate explanation of the politics of New Spain and Mexico with a more familiar narrative of the expansion of the United States cotton frontier into Texas. The advancing cotton frontier, however, appears mostly in the form of increasing numbers of cotton bales leaving Texas and the growth of migration of enslavers to the region, bringing with them enslaved people. Seeds of Empire thus occupies an interesting place, both linked to recent scholarship on the connections between slavery and capitalism in the nineteenth-century United States and circum-Caribbean world, like Walter Johnson’s River of Dark Dreams, but also employing different methods and narrative strategies than much of that scholarship.

Seeds of Empire tells the history of the Texas borderlands in three sections, beginning with an introductory chapter on the region “on the eve of Mexican independence,” continuing to a second part on the tension between the extension of the United States’ cotton frontier into Mexico and increasing Mexican antipathy toward slavery in Mexico, and concluding with a section on independent Texas’ attempts to create a successful proslavery cotton republic. It is in discussing the debates surrounding slavery in northern Mexico that Seeds of Empire makes its greatest contribution. Torget lays out an important and, in the historiography of Texas, largely untold narrative of the debates between proslavery Americans and Tejanos and antislavery political forces in Mexico. This section of the book transports readers to debates in Saltillo and shows how important Mexican resistance to slavery would be for Anglo-Texans and enslaved people in Texas.

For Torget, there are three main factors that shape the period of the 1830s and 1840s when Texas seceded from Mexico and pushed to join the United States. He often glosses these three factors as “cotton, slavery and empire,” but his fuller description of each factor is more revealing of the approach of the study. (6) Cotton is really the “rise of the global cotton economy,” slavery is the “battles over slavery that followed,” and empire is “the struggles of competing governments to control the territory” of Texas. (5-6) The brief terms suggest a clear connection to ideas scholars have recently termed “The New History of Capitalism” and “The Second Slavery,” both of which emphasize economic shifts in plantation commodity production under slavery, an increasingly industrial approach to enslavement, and the expansion of plantation complexes to new territory. This scholarship, at its best, connects large shifts in economics, politics, and society to the lived experience of enslaved people. For example, in his River of Dark Dreams, Walter Johnson connects his discussion of the cotton economy to the daily lives of enslaved cotton pickers in Mississippi by tracing the journey of cotton from seed to boll to lint to bale on a Liverpool wharf. (Johnson, 246-279) While both Johnson and Torget use cotton as a way into the world of the Second Slavery, Torget chooses different individual human actors to focus on – largely politicians, empresarios, and powerful cotton planters. While this allows Seeds of Empire an admirably comprehensible and tight narrative of complex and oft-ignored political developments in northern Mexico and, later, Texas, it also means that enslaved people appear largely as subjects of debate, rather than agents of historical change. This is reflected in Torget’s insistence that the aspect of slavery most shaping Texas is national and international debates in Mexico, the United States, and Europe over the future of slavery. This is a result of the political approach the book takes to explaining this period of the history of Texas, but it is still a missed opportunity. Adam Rothman, in writing a history of the advancing cotton frontier that Torget foregrounds, writes a narrative with a central role for politics and warfare, but also foregrounds the active role enslaved people played in shaping the cotton frontier with, for example, the German Coast Uprising.

Torget’s key intervention – that the history of the Texas borderlands can only be understood in terms of the advancing United States cotton frontier – fits naturally into recent scholarship emphasizing capitalism and the Second Slavery, yet Seeds of Empire stands, in terms of its narrative approach, historical actors, and political and economic focus, in stark contrast to much of this work. Historians of the Second Slavery and the New History of Capitalism have largely sought to integrate the testimony of enslaved people, understand historical change as deeply influenced by the actions of enslaved people, and play down the influence of British abolitionism on the daily actions of enslavers in the United States. Torget convincingly argues that Mexican and British abolitionism was central to the history of the Texas borderlands, but is unable to reckon with the ways enslaved peoples actions shaped these borderlands. The book could have offered a fuller explanation of the failure of the Texan proslavery republic by integrating an approach similar to that of Stephanie McCurry’s Confederate Reckoning, which combined an analysis of high politics with an emphasis on political history operating at all levels – showing that, in her case, the Confederacy was crumbling from within outside of its diplomatic and military defeats.

Torget’s book presents an admirably clear and engaging narrative of the competing influences on the borderlands of northern Mexico and the southern United States. Seeds of Empire makes a significant contribution to existing scholarship on the southern United States and northern Mexico by showing how important the antislavery politics of New Spain and Mexico were to the expansion of cotton slavery in the Texan borderlands. While retaining the common emphasis on the importance of the United States cotton and slavery complex, empresarios, and the Comanche in shaping American immigration, the growth of slavery in the borderlands, and the eventual secession of Texas from Mexico, Torget forcefully demonstrates that it is nearly impossible to fully understand this process without a fuller understanding of the politics of Mexico that conditioned the actions of empresarios and free migrants from the United States. In many ways, the narrative shows that it was primarily determined Mexican resistance to slavery in the province of Tejas that prevented enslavers from the United States from migrating in large numbers before the secession of Texas, then the abolitionist politics of Great Britain and threat of Mexican military force that slowed this same migration before the United States annexed the Texan republic. Seeds of Empire is key reading for scholars interested in the history of Texas, the Second Slavery, and the history of the expansion of the United States. Historians of cotton slavery in the United States have recently emphasize the centrality of expansion into Texas to late-stage slavery in South and Torget provides an important step toward exploring and explaining that expansion.

Ian Beamish – Assistant Professor of History of 19th Century US and History of Slavery in the University of Louisiana. E-mail: [email protected]


TORGET, Andrew. Seeds of Empire: Cotton, Slavery, and the Transformation of the Texas Borderlands, 1800-1850. The University of North Carolina Press, 2015. Resenha de: BEAMISH, Ian. Capitalism and Second Slavery in Texas. Almanack, Guarulhos, n.17, p. 460-464, set./dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

Escravos e rebeldes nos tribunais do Império: uma história social da lei de 10 de junho de 1835 | Ricardo Pirola

Resenhista

Douglas Guimarães Leite – Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected] Leia Mais

Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) – SOUZA (Tempo)

SOUZA, Robério S.. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas: Unicamp, 2015. 270p. Coleção Várias Histórias, 42.Resenha de Mac CORD, Marcelo. Acionando a chave de desvio dos trilhos: repensando a história social do trabalho ferroviário no Brasil império. Tempo v.23 no.1 Niterói jan./abr. 2017.

Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) é a mais recente obra de Robério Souza. O livro desse talentoso pesquisador, que atualmente é professor do curso de história da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), oferece ao leitor uma série de análises das complexidades políticas, econômicas, culturais, sociais e étnicas que envolveram a construção da Bahia and San Francisco Railway. Publicado pela Editora da Unicamp em 2015, o livro, que faz parte da consolidada “Coleção Várias Histórias”, baseia-se na premiada tese de doutorado do autor, que, sob a orientação de Silvia Lara, foi defendida dois anos antes no Cecult-IFCH-Unicamp.

O livro Trabalhadores dos trilhos, com suas significativas inovações historiográficas, consolida a carreira de Robério Souza como um dos mais destacados especialistas sobre o mundo do trabalho brasileiro. E ratifica sua importância como historiador do mundo do trabalho ferroviário. Em 2011, pela EDUFBA, o pesquisador baiano publicou outro livro sobre a temática: Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892-1909). Nesse trabalho inovador, fruto de sua dissertação de mestrado, o autor analisa os conflitos de classe e de cor naquela mesma ferrovia, mas privilegiou uma temporalidade que nos permite conhecer as lutas dos trabalhadores negros contra formas de trabalho análogas aos tempos da escravidão (Souza, 2011).

Ambas as publicações fazem parte da mais refinada história social de matriz thompsoniana produzida em nosso país. Tal historiografia, absolutamente identificada com a Unicamp, reconhece a importância da agência dos subalternos na condução de suas próprias vidas e de seu protagonismo na luta de classes – com desdobramento nas mais variadas lutas dos “de baixo” por direitos jurídicos, sociais, culturais, econômicos e políticos. De forma muito especial, o livro Trabalhadores dos trilhos ainda aponta para a possibilidade de convergências entre a história social da escravidão e a história social do trabalho stricto sensu, dissolvendo, assim, as fronteiras analíticas e temáticas que ainda existem entre elas.2

Em sua sólida trajetória acadêmica, Robério Souza não escolheu seus objetos de estudo aleatoriamente ou de forma diletante. Nascido em Alagoinhas, cidade cortada pela antiga Bahia and San Francisco Railway, a vida do autor, oriundo da classe trabalhadora, esteve ligada direta e indiretamente aos trilhos de ferro. Tal peculiaridade ganha ainda mais significado quando sabemos de sua cor preta. A experiência étnica e de classe do pesquisador foram fundamentais em suas investigações, permitindo que seu esforço científico desconstruísse uma historiografia que invisibilizava os negros como protagonistas tanto na construção da primeira estrada de ferro baiana quanto na organização das históricas lutas dos “de baixo” por direitos trabalhistas e sociais.

Do ponto de vista formal, Trabalhadores dos trilhos é um livro muito bem enredado. São cinco capítulos que dialogam entre si, abordando os seguintes temas: implicações político-econômicas da construção da Bahia and San Francisco Railway, engajamento da mão de obra nacional e estrangeira, acordos sobre contratos e arranjos de trabalho, surgimento de alguma consciência de classe nos canteiros de obras da ferrovia e conflitos entre empregados, patrões, encarregados e autoridades públicas. A documentação utilizada é vasta e densa: correspondências governamentais, registros policiais, processos criminais, periódicos, leis, relatórios oficiais, fotografias etc. Todo o material compulsado foi encontrado em arquivos baianos e ingleses.

Logo nas primeiras páginas, Robério Souza demonstra como muitos historiadores e cientistas sociais do século passado, pouco afeitos ao trabalho empírico, se apoiaram acriticamente na legislação imperial que proibia o uso de mão de obra escrava na construção de ferrovias. Aprovada em 1852, a norma acabou induzindo leituras sociologizantes sobre a temática, o que reforçou a explicação de que existiu uma transição teleológica do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil oitocentista. E, nessas sentenças, a ferrovia surgiu como símbolo de “modernização”, ou, em outras palavras, como um empreendimento que viabilizou o amadurecimento das relações capitalistas e do mercado de trabalho em nosso país.

No livro, o tradicional consórcio entre “modernização” do mundo do trabalho e construção das ferrovias brasileiras começa a ser desconstruído assim que o autor demonstra a relação umbilical dos ingleses da Bahia and San Francisco Railway e das autoridades locais com o escravismo. Segundo Robério Souza, por exemplo, muitos empreiteiros e técnicos britânicos compraram e mantiveram cativos em suas próprias casas. Portanto, no cotidiano baiano, era impossível dissociá-los. Para justificar e compreender essa prática, o pesquisador nos remete ao fato de que capitais e homens de negócios ingleses estiveram intimamente envolvidos com o tráfico atlântico ilegal até 1850 – pouco antes da abertura dos canteiros de obras da ferrovia.

As fontes compulsadas por Robério Souza ainda revelam que os profissionais britânicos responsáveis pela construção da Bahia and San Francisco Railway contratavam escravos para os canteiros de obras da ferrovia. Eles alegavam ser impossível identificar a real condição jurídica dos negros que buscavam serviço. De certa forma, em alguns momentos, como salienta o pesquisador, os contratadores poderiam dizer a verdade. Contudo, acostumados com o escravismo e preocupados em viabilizar as empreitadas, pouco se esforçavam para verificar a situação legal das pessoas escravizadas que se passavam por livres. E, aproveitando-se dessa situação, precarizavam ao máximo a força de trabalho dos africanos e de seus descendentes.

Os escravos que se passavam por homens livres, por sua vez, encaravam os serviços oferecidos pela primeira ferrovia baiana como uma possibilidade de se “esconderem” de seus senhores, como propõe Robério Souza. Conseguir um emprego nos trilhos de ferro também era uma forma de os cativos se passarem por homens livres, tendo em vista as determinações impostas pela lei imperial de 1852. Ainda sobre as estratégicas apropriações feitas pelos “de baixo”, o autor afirma que a construção da Bahia and San Francisco Railway serviu como forma de esconderijo para outros sujeitos, como criminosos e desertores. Tais indivíduos queriam ficar invisíveis aos agentes da polícia, da justiça, das milícias e das forças militares.

Entre os trabalhadores que estiveram vinculados às rotinas dos canteiros de obras da Bahia and San Francisco Railway, Robério Souza afirma que poucos eram africanos livres (gente ilegalmente traficada da África para o Brasil entre os anos 1831 e 1850) ou “índios”. Nas páginas de Trabalhadores dos trilhos, sobre o primeiro grupo, observamos que alguns grandes proprietários baianos desviavam os “escravos da nação” mais jovens, saudáveis e fortes para suas terras, impedindo que o governo utilizasse essa mão de obra nos canteiros de obras da ferrovia. Para substituí-los, os senhores de terra e de gente mandavam para as empreitadas os cativos mais velhos e alquebrados de sua propriedade.

Além de escravos que se passavam por livres, africanos livres, “índios”, criminosos e desertores, a Bahia and San Francisco Railway também contou com a mão de obra do nacional livre. Estes últimos eram referidos pelos contratantes e pelos administradores do empreendimento como “preguiçosos” e “inconstantes”. Robério Souza deixa claro que tais julgamentos eram preconceitos étnicos e classistas. Os nacionais livres não aceitavam certas condições de trabalho, rebelavam-se quando injustiçados e tinham na roça seu principal meio de sustento. De acordo com a sazonalidade de seus cultivos e das vantagens financeiras que poderiam auferir, eles conjugavam ou não o plantio de subsistência com os canteiros de obras ferroviários.

Em meio a tanta gente de pele escura (livre, liberta e escrava) em um empreendimento “moderno” e “modernizador”, o operário estrangeiro também se fez presente. Os italianos chegaram à Bahia com a promessa de “moralizar” e “morigerar” os canteiros de obras da Bahia and San Francisco Railway. Apesar de serem os únicos a terem contratos formais de trabalho, também foram explorados pelos contratantes, tendo seus acordos constantemente desrespeitados. Robério Souza, por meio de farta análise documental, demonstra que isso gerou fortes tensões. Uma greve foi deflagrada por causa da insatisfação dos italianos, o que gerou forte repressão e posterior controle policial, com toques de recolher e cerceamento da livre circulação.

Historiador social arguto e sensível, Robério Souza entende a repressão sofrida pelos italianos como mais uma forma de constatarmos os tênues limites entre trabalho escravo e trabalho livre no Brasil império. Sobretudo após a deflagração da greve, os operários europeus da Bahia and San Francisco Railway foram vigiados mais de perto pelas autoridades policiais baianas e por seus patrões. Sob forte ameaça, tinham de seguir rapidamente dos canteiros de obras para seus alojamentos e ficaram com mobilidade limitada em seus momentos de lazer e de descanso. Ao exigirem o devido respeito aos contratos, os italianos experimentaram contratempos muito semelhantes àqueles que foram impostos aos africanos e seus descendentes escravizados.

Como podemos perceber, entre os anos 1858 e 1863, os canteiros de obras da Bahia and San Francisco Railway reuniram os mais variados tipos que viviam do suor do próprio rosto. O livro Trabalhadores dos trilhos chama nossa atenção para essa diversidade social e demográfica. E, mais do que isso, permite que conheçamos as alianças e os conflitos vivenciados pela multidão que construiu a primeira estrada de ferro baiana. Por um lado, como afirma Robério Souza, a precariedade possibilitou alguma consciência de classe: italianos e escravos criaram planos conjuntos de sublevação; as festas e as relações de vizinhança uniam pessoas. Por outro lado, ainda segundo o autor, refluxos ocorreram pelas diferenças de cor, nacionalidade e cultura.

Na construção da Bahia and San Francisco Railway, os fluxos e os refluxos da formação de alguma consciência de classe, processo muito bem analisado por Robério Souza, é um dos pontos altos do livro Trabalhadores dos trilhos. Inspirado por E. P. Thompson, o autor endossa a crítica de que a classe operária é uma construção histórica motivada por certas condições sociais. Portanto, como algo que é forjado na luta, a classe operária não surge pronta e acabada em determinado espaço-tempo, como algo exigido pela necessidade histórica – fruto do devir. O marxista inglês nos ensina que sua construção precisa dialogar com o processo histórico, algo que exige dos analistas especial atenção aos sujeitos, à crítica aos modelos engessados e à empiria.3

Por tudo isso, um dos maiores méritos de Trabalhadores dos trilhos é pensar a história social do trabalho sem engessamentos ou isolamentos teóricos. Robério Souza se apropria de instrumentos analíticos e categorias como etnia, classe, nacionalidade, trabalho escravo, trabalho livre e “modernização” sem perder de vista o processo histórico, a ação política dos sujeitos e a relação dos conceitos com sua pesquisa empírica. Ele ainda conseguiu tecer uma potente análise baseada na história social sem descuidar de elementos das histórias política, cultural e econômica. Utilizando a imagem da própria ferrovia, o livro é um entroncamento que nos permite visitar muitas estações da experiência humana.

Referências

CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando T da. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, Campinas, v. 14, p. 11-50, 2009. [ Links ]

SOUZA, Robério S . Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892-1909). Salvador: EDUFBA; São Paulo: Fapesp, 2011. [ Links ]

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THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981 [ Links ]

2Sobre as fronteiras entre história social da escravidão e história social do trabalho stricto sensu, consultar Chalhoub e Silva (2009, p. 11-50).

3Para saber mais, consultar Thompson (19971981).

Marcelo Mac Cord – Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói(RJ) – Brasil. E-mail: [email protected].

Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) – SOUZA (RBH)

SOUZA, Robério S. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas: Ed. Unicamp, 2016. 272p. Resenha de: VITO, Christian G. de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.74, jan./abr. 2017.  

Há muito tempo a história do trabalho é escrita exclusivamente sob as perspectivas do trabalho assalariado, da “proletarização” (ou mudança para o trabalho assalariado) e das organizações de trabalhadores assalariados. Enquanto esses aspectos têm sido confundidos com “modernidade” e com o surgimento e expansão do capitalismo, a escravidão e outras relações de trabalho forçado têm sido marginalizadas como “atrasadas” e não-capitalistas. Neste livro convincente e bem escrito, Robério S. Souza subverte essas abordagens tradicionais e mostra uma história do trabalho mais inclusiva, baseada em novas conceituações. O autor aborda a construção da ferrovia Bahia and San Francisco Railway no período de 1858 a 1863, mas em vez de vê-la como um símbolo da modernidade tecnológica, de investimentos estrangeiros “progressistas” e do trabalho livre, ele aponta para a compatibilidade do capitalismo com o trabalho forçado, indica múltiplas imbricações entre o capital britânico e os universos da escravidão, e destaca a presença de escravos na força de trabalho, contrariando os regulamentos da legislação imperial de 1852. Da mesma forma, o autor aborda os trabalhadores migrantes europeus – especialmente os “italianos” -, mas, em vez de corroborar a narrativa padrão de que eles seriam vetores de mão de obra livre qualificada, traz à baila a precariedade de sua liberdade e a compara com a dos “nacionais livres” e com as condições dos escravizados. Em termos mais gerais, Souza insiste na complexidade da composição da força de trabalho, em vez de buscar os trabalhadores assalaria­dos ideais típicos dentro dela: dessa perspectiva, ele consegue abordar as rela­ções concretas entre os trabalhadores permeando as condições legais e as relações de trabalho e apontando para as suas experiências e momentos de solidariedade compartilhados, bem como os conflitos que surgiram entre eles.

Esses argumentos fundamentais são brilhantemente apresentados na introdução, a estrutura do livro é bem projetada e o estilo mescla bem panoramas quantitativos precisos, momentos de reflexão e descrições detalhadas de eventos e biografias individuais. Os três primeiros capítulos informam o leitor sobre o mundo dos “senhores dos trilhos” e sua conexão com a economia escravista da província da Bahia (cap. 1), esboçam a “demografia social” da força de trabalho da ferrovia (cap. 2) e, em seguida, abordam a reconstrução da materialidade das tarefas, incluindo detalhes das obras em cada uma das cinco seções diferentes em que o canteiro de obras foi dividido (cap. 3). Os dois últimos capítulos focalizam, em detalhe, a agência e as experiências dos trabalhadores. O Capítulo 4 centra-se naqueles que migraram para o Brasil provenientes do Reino da Sardenha, descreve a greve que organizaram em 1859 e discute suas conexões mais amplas com as mobilizações de outros trabalhadores (incluindo os escravos) e as práticas de repressão e controle social implementadas pelas autoridades. O capítulo 5 examina de perto a multidão aparentemente desconexa e desordenada que compunha a força de trabalho e aborda as “lógicas internas que forjaram ou dificultaram a experiência e o processo de conformação de identidades” (p.34-35). Acompanhando o texto, um mapa histórico permite visualizar os territórios atravessados pela ferrovia (p.116), e 19 belas fotografias históricas – a maioria delas da Coleção Vignoles do Instituto de Engenheiros Civis de Londres – fazem que os trabalhadores, as localidades e as obras adquiram concretude para os leitores. De fato, em vez de serem apenas um suporte visual passivo, especialmente no capítulo 3, as fotografias são diretamente integradas e discutidas no texto. A maior parte das fontes primárias é extraída de várias seções do Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb) e inclui a correspondência entre várias autoridades, listas de passageiros que entraram no porto da Bahia e documentos produzidos pela polícia e pelas autoridades portuárias que se revelaram fundamentais para a compreensão tanto da dinâmica do controle social quanto da vida dos trabalhadores como indivíduos.

Como seu livro anterior sobre os emaranhados das relações de trabalho na Bahia no período imediatamente seguinte à abolição da escravidão, este trabalho mais recente de Souza está profundamente inserido na nova e revolucionária historiografia brasileira sobre o trabalho.1 O autor reconhece especialmente a sua dívida intelectual às obras de Sidney Chalhoub e Henrique Espada Lima (p.30). Ainda assim, precisamente por causa da qualidade deste livro, poder-se-ia esperar também um diálogo mais amplo do autor com as obras internacionais que abordam contextos comparáveis e questões relacionadas. Esse diálogo poderia ter fortalecido a sua interpretação em vários pontos e, simultaneamente, realçado o impacto deste volume para uma comunidade acadêmica maior. Por exemplo, os estudos sobre a força de trabalho igualmente complexa, mas montada de forma diferente, empregada na construção das ferrovias cubanas antes da abolição da escravidão na ilha caribenha (1880) poderiam ter fornecido referências comparativas úteis sobre a questão-chave da conexão entre liberdade e não-liberdade.2 Ao mesmo tempo, o livro de Souza é um complemento significativo às investigações recentes na História do Trabalho nos transportes, com as quais ele compartilha a crítica aos “binários padronizados entre coerção e liberdade” e para as quais contribui indiretamente expandindo o foco do “trabalho no transporte” para o trabalho que construiu as infraestruturas do transporte.3 A obra é também uma contribuição preciosa para a renovação da história da migração italiana do século XIX e início do século XX, para além das limitações dos estudos tradicionais que tendem a ver os trabalhadores italianos isolados do resto da força de trabalho e, particularmente, fora do trabalho forçado. Por sua vez, a nova abordagem acadêmica sobre a diáspora italiana, com a consciência da importância das conexões translocais e da pesquisa arquivística em múltiplos locais, poderia ter respaldado a sugestão de Souza sobre a relação entre as demandas dos trabalhadores sardos no Brasil e a turbulência política na Itália às vésperas da unificação nacional (p.188-190).4

Em um nível diferente, o argumento central do autor sobre a compatibilidade entre o capitalismo e o trabalho não-livre ecoa, entre outras, as descobertas do estudo pioneiro de Alex Lichtenstein sobre a economia política do trabalho de prisioneiros no período pós-emancipação do Sul dos Estados Unidos e as de um recente volume sobre trabalho forçado após a escravidão, organizado por Marcel van der Linden e Magaly Rodríguez García.5 De maneira mais geral, o argumento de Souza sobre as fronteiras fluidas entre liberdade e não-liberdade coincide com a questão-chave do longo debate sobre o trabalho livre e não-livre e também está alinhado com a reconceituação da classe operária proposta pelos estudiosos da História Global do trabalho, apontando para a necessidade de ir além do foco padrão sobre o trabalho assalariado, passando a estudar todos os tipos de relações trabalhistas que foram imbricadas no processo de mercantilização do trabalho.6 Finalmente, e de forma semelhante a outras obras brasileiras sobre a história do trabalho, os capítulos 4 e 5, em especial, mostram a importância do estudo simultâneo das relações de trabalho e da agência e organização dos trabalhadores – uma combinação que tem sido particularmente rara na História Global do trabalho até agora. De fato, a adoção do conceito de “experiência” – explicitamente tomado de empréstimo a E. P. Thompson – fornece a Souza uma ferramenta para adentrar a questão da formação contraditória da identidade de classe entre os trabalhadores que estavam “juntos, mas não misturados” (p.237) e, assim, frequentemente presos entre a unidade e a divisão em fronteiras nacionais, étnicas e legais.

Essas imbricações entre o trabalho de Souza e a historiografia do trabalho mais ampla ressaltam seu potencial para intervir em debates ainda maiores, beneficiando-se dela, ao mesmo tempo, em alguns pontos interpretativos. De modo algum essas observações críticas ofuscam os méritos deste livro. Na realidade, este volume é um daqueles preciosos estudos empíricos que podem inspirar e moldar pesquisas em outros locais e épocas, para além do seu tópico específico e do seu escopo cronológico. Por essa razão, traduções múltiplas deste livro são altamente desejáveis.

Referências

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Notas

1 SOUZA, 2011. Ver esp.: CHALHOUB, 1990LIMA, 2005CHALHOUB, 2012FORTES et al., 2013.

2Por exemplo: OOSTINDIE, 1984FADRAGAS, 1998.

3 BELLUCCI et al., 2014. Citação da Introdução dos editores, p.5.

4 GABACCIA; OTTANELLI, 2001.

5 LICHTENSTEIN, 1996LINDEN; RODRÍGUEZ GARCÍA, 2016.

6 BRASS; LINDEN, 1997LINDEN, 2010.

Christian G. de. Vito – Research Associate, University of Leicester; Lecturer, Utrecht University. Utrecht University, Department of History and Art History. Utrecht, The Netherlands. E-mail: [email protected].

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O solo da liberdade: as trajetórias da preta Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos do processo abolicionista uruguaio (1842-1862) – CARATI (HU)

CARATTI, J.M.. O solo da liberdade: as trajetórias da preta Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos do processo abolicionista uruguaio (1842-1862). São Leopoldo: Oikos/Editora Unisinos, 2013. 454 p. Resenha de: VOGT, Debora Regina. Os limites da fronteira na posse dos cativos após o fim da escravidão no Uruguai. História Unisinos n.20 n.3 – setembro/dezembro de 2016.

A história do cotidiano, das disputas internas que muitas vezes não estão claras nos documentos, durante muito tempo passou alheia à historiografia. Interessava-nos a história global, das estruturas do sistema e do movimento maior que a tudo envolvia. O fenômeno da micro-história demonstra a mudança de visão sobre o passado. Nesse sentido, não é mais somente a grande estrutura que nos interessa, mas os indivíduos que fazem parte do jogo e que sentido eles deram para os contextos em que viveram. O Menocchio2, de Carlos Ginzburg, tornou-se inspiração para muitos personagens que desvendam uma faceta historiográfica que há algum tempo era desconhecida.

No entanto, é preciso salientar que o acesso a esses “homens e mulheres comuns” em geral não ocorre por suas falas autorais. Nós os encontramos nos documentos da justiça, no julgamento da Inquisição – caso de Menocchio – ou em outras fontes em que suas falas aparecem como testemunhos. Isso não invalida essa narrativa, mas demonstra a busca por esses sujeitos, que, por não representarem a elite letrada, muitas vezes estiveram distantes da historiografia.

Essas histórias são excepcionais ao mesmo tempo em que são normais, ou seja, ao mesmo tempo em que têm seus dramas particulares, também são coletivas, já que compartilham experiências com inúmeros indivíduos contemporâneos. No caso da pesquisa em questão, os indivíduos compartilharam a vida fronteiriça, sofrendo os impactos das relações do império com o Prata, especialmente o Uruguai.

Tais fenômenos estiveram presentes também na historiografia sobre a escravidão, e o livro de Jônatas Caratti se insere nessa linha. Assim, autores como Azevedo (2006), Grinberg (2006) e Pena (2006) são exemplos na visão do escravo como personagem, que tem desejos, voz e luta também por sua liberdade. Esses trabalhos analisam, por exemplo, a atuação de advogados abolicionistas nos pleitos através das ações de liberdade, de manutenção da liberdade e da reescravização.

Nesse contexto, são analisadas as disputas, acomodações e transformações da vida escrava e suas diversas formas de luta pela liberdade. Da mesma forma como Menocchio, os personagens em geral nos falam indiretamente através das fontes – a fala dos escravos é terceirizada –, mas nem por isso são perdidas, já que são capazes de demonstrar as lutas cotidianas e as possibilidades de liberdade no mundo atlântico.

Além dos mencionados, Paulo Moreira (2003, 2007), João José Reis (Reis e Silva, 1989), Márcio Soares (2009) e Hebe Matos (1995) são outros historiadores que problematizam o papel do escravo, as disputas envolvidas nas leis abolicionistas e as noções de propriedade e direito.

Entre a visão de concessão e conquista escrava é de se destacar o papel da alforria como veículo de disputas entre os senhores “homens de bem” e os escravos. Essa luta pela liberdade, representada pela busca da alforria, é a inspiração do livro e resume o objetivo do livro, sendo o país fronteiriço “o solo da liberdade”. Os dois personagens do livro escrito por Jônatas Caratti, embora crianças ainda são representativos dessa conjuntura que, dentro do sistema preestabelecido, busca os espaços possíveis de negociação, conciliação e até luta jurídica.

Desta forma, Jônatas Marques Caratti, em sua dissertação de mestrado, transformada em livro – O solo da liberdade – percorre o caminho da micro-história, procurando apresentar as relações, disputas e esperanças de liberdade na sociedade escravista brasileira. Seu ponto de partida são as leis abolicionistas uruguaias e seu impacto na região de fronteira no Rio Grande do Sul. No território de fronteira, senhores e escravos negociam e tomam parte do jogo de relações e acordos em busca de seus objetivos.

O historiador elege dois personagens, representativos em suas fontes, e, através deles, procura mostrar o contexto social e a luta pela liberdade dos negros escravizados. Faustina e Anacleto são duas crianças que desde cedo conhecem a escravidão e, embora talvez não soubessem, são também reflexos dessa sociedade que, escravocrata, convive de forma muito próxima com o vizinho Uruguai, que havia colocado fim à escravidão, transformando a região pós-fronteira no “solo da liberdade”. É importante destacar que as trajetórias tornaram-se excepcionais pela quantidade de fontes documentais encontradas, o que permitiu que se produzisse uma narrativa verossímil e plausível para os sujeitos; já quanto a outros, não revelados pela documentação, jamais teremos conhecimento de sua existência. De acordo com Jônatas, os dois processos lhe chamaram inicialmente atenção pela quantidade de anexos e por tratarem de questões mais amplas que somente o tráfico de escravos na fronteira, demonstrando a vida social que se estabelecia dentro dessa dinâmica.

É importante destacar que a reflexão sobre crianças escravas é, de certo modo, ainda recente na historiografia. A própria ausência de fontes e o descaso com que eram tratadas, muitas vezes, fazem com que a pesquisa e análise de suas condições sejam ainda incipientes. Além disso, a mortalidade infantil era alta, fazendo com que muitos não chegassem à vida adulta3. Desta forma, a própria possibilidade de refletir sobre a situação de duas crianças escravas torna o trabalho instigante e aberto a novas reflexões.

O livro une pesquisa séria de um historiador que escreve com rigor e ética com a vida pessoal de alguém que também vive na fronteira, já que, hoje, Jônatas é professor na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA).

No final do livro há um diário de bordo, escrito de forma pessoal, com o relato de suas caminhadas pela região sul do estado e os encontros com sua pesquisa, as esperanças e os desafios de um historiador. Por meio de uma narrativa cativante, Jônatas permite ao leitor caminhar com ele, perceber suas escolhas, as limitações apresentadas pelas próprias fontes e as descobertas no caminho rico e intrigante que é a pesquisa histórica.

Os personagens escolhidos pelo pesquisador são exemplos de situações que ocorriam de forma expressiva no período analisado. A escravização de sujeitos que podiam ser considerados livres foi comum nesse período. Sendo assim, a importância de Anacleto e Faustina não se restringe à situação em que viveram, mas mostra o contexto social da época e propicia perceber as lutas pela liberdade e as formas como os acordos e arranjos ocorriam.

Esse horizonte, de certa forma ainda novo na historiografia, dá vida e complexidade a sujeitos que em nossos documentos se restringiam a números de escravizados. No texto de Jônatas, eles estabelecem relações, sonham com a liberdade, juntam dinheiro para consegui-la, fazem acordos, são complexos e demonstram as formas como os indivíduos reagiram a situações em que eram colocados.

Uns dos principais documentos analisados por Jônatas, assim como outros historiadores, são os judiciais, são eles que mais fornecem informações ao pesquisador. Ali é possível perceber a visão não só dos personagens principais, mas quem presenciou o ocorrido e também os réus, que apresentavam sua própria defesa. Ou seja, demonstram a complexidade das relações dentro da sociedade escravista e quais os caminhos encontrados pelos que faziam parte desse contexto. Cada argumento é analisado pelo pesquisador, demonstrando a riqueza de detalhes da narrativa e aproximando-nos da visão desses sujeitos do passado. Documentos como esses, por sua vez, abundam nos arquivos, como afirma Paulo Roberto Moreira – orientador e autor da apresentação do livro – faltava, contudo, alguém que com atenção de debruçasse sobre essa documentação com questionamentos plausíveis e tecesse a narrativa historiográfica.

O livro, por sua temática e também pela metodologia do pesquisador, caminha em várias frentes, que vão do micro ao macro, abrindo várias formas de reflexão e interpretação. No texto, transparece tanto o contexto nacional como a realidade regional, com suas particularidades, transpassada pela fronteira. Além disso, aspectos políticos, econômicos e sociais são explorados, demonstrando a dinâmica das relações, no aspecto particular e global. Seus personagens foram escolhidos entre dezenas de outros, e, por meio deles, observamos a sociedade do oitocentos: foram eles as lentes escolhidas pelo autor em sua narrativa.

Faustina nasceu livre em Cerro Largo, no ano de 1843, filha da preta, descrita como “gorda e velha” da Costa da África, Joaquina Maria, que era de Jaguarão. Sua mãe havia fugido através da fronteira para o Uruguai e lá viveu como livre até o encontro com os que raptaram sua filha. No outro país, Joaquina Maria encontrou um companheiro, Joaquim Antônio, sendo Faustina fruto dessa união. A menina foi arrancada de seus pais em uma noite de 1852 por um homem chamado Manoel Noronha, que se descreveu nos depoimentos como “capitão do mato”, lavrador, Capitão da Guarda Nacional e agarrador de negros fugidos. Quando preso, ele apresentou ao júri uma lista com 266 cativos fugitivos que pretendia perseguir e devolver aos respectivos senhores, em troca de recompensa.

Anacleto, por sua vez, nasceu em Encruzilhada do Sul como propriedade de Antônio de Souza Escouto, até que este o enviou para trabalhar em sua fazenda em Tupambahé, Uruguai, por volta de 1858. É importante lembrar, no entanto, que por lá a abolição já havia ocorrido, ou seja, do outro lado Anacleto era um homem livre. O menino teria ido ao Uruguai com 7 anos, idade considerada como fim da infância e início da vida de trabalho, já que se vivessem até essa idade, as crianças escravas demonstravam sobreviver ao elevado índice de mortalidade infantil. No Uruguai, Anacleto foi carregado por dois homens e trazido de volta ao Brasil; em 1860, foi vendido como escravo.

A história de Jônatas tem enredo, personagens e acontecimentos. Seu relato nos envolve e nos aproxima dos personagens, fazendo-nos torcer pelo sucesso de suas empreitadas e a conquista da liberdade. Isso não significa que a narrativa seja simplificadora; pelo contrário, ela é complexa e demonstra o rigor da pesquisa com documentação produzida pelo autor.

Faustina e Anacleto foram levados como cativos a Jaguarão, local estratégico na fronteira do Império e ali foram vendidos como escravos. O capitão do mato Noronha legalizou a posse de Faustina, comprando-a da senhora de sua mãe. Noronha revendeu-a em Pelotas com lucro considerável, o qual posteriormente a vendeu ao Capitão José da Silva Pinheiro. O historiador demonstra, por meio de suas fontes, que a crença de que a sociedade era composta por grandes senhores de escravos em muitos casos não se sustenta. Assim, boa parte dos compradores tinham poucos escravos que eram, por vezes, dados como heranças a herdeiros, fazendo parte do patrimônio da família. No entanto, mesmo numa sociedade tão desigual para esses sujeitos, conseguimos perceber as possibilidades de ação e a luta constante pelo sonho da liberdade.

Anacleto transformou-se em Gregório e foi vendido a Francisca Gomes Porciúncula, que o adquiriu na ausência do marido, o português Manoel da Costa. “Dona Chiquinha” e “seu Maneca” foram cúmplices desse sequestro, comprando Anacleto mesmo sabendo que ele era roubado. “Seu Maneca” era funileiro e viajava pelos centros urbanos provinciais alugando seus serviços; assim, quando foi a Rio Grande, repassou Gregório ao negociante de escravos José Maria Maciel, que o vendeu para o charqueador Miguel Mathias Velho. Uma mistura de sorte com coincidência fez Anacleto visto por um tropeiro o reconheceu como filho de Marcela e escravo furtado de Escouto.

Após essas desventuras encontramos as autoridades públicas, o uso da lei, a procura pelos criminosos, suas justificativas e a forma como a sociedade escravocrata se organizava. Os que são chamados a depor apresentam suas escrituras de compra e venda e, na ausência delas, passa-se a suspeitar de crime de compra ou venda ilegal de cativos. Através do método comparativo usado por Jônatas, percebemos e reconhecemos as proximidades e diferenças entre os personagens escolhidos pelo pesquisador.

A trajetória de Faustina ocorreu no contexto do Tratado de Extradição de Criminosos e Devolução de Escravos, assinado em 1851 entre o Império Brasileiro e a República Oriental; por isso, contou com o apoio dos chefes políticos e de autoridades uruguaias. Como ela nasceu em Cerro Largo, o Estado a defendeu como um caso de soberania e resistência ao imperialismo brasileiro.

Seus sequestradores, no entanto, foram absolvidos, marca de uma sociedade que ainda não questionava a escravidão. Contudo, ela voltou para seus pais, diferentemente do que ocorreu com Anacleto. Os dois processos são semelhantes e demonstravam, segundo o professor, a possibilidade de uma análise de comparação. A própria sentença que os réus receberam era a mesma, baseada no art. 179 do Código Criminal de 1830: “reduzir pessoa livre à escravidão”. Os réus responderam pelo mesmo crime e as vítimas eram crianças entre 10 e 12 anos. Esses são dois movimentos que aproximam o leitor da sociedade escravocrata sul rio-grandense em suas relações com o Uruguai. No entanto, há diferenças entre os dois casos, e isso, de acordo com Jônatas (Caratti, 2013, p. 57), o instigou a estabelecer a narrativa de forma comparada. Relacionar as experiências foi um caminho frutífero e promissor para a história social não só para a região da fronteira, mas também para a compreensão do Brasil nesse momento.

Anacleto nasceu no Brasil, de ventre escravo, e trabalhou no Uruguai como cativo, mesmo após a abolição da escravidão nesse país. Nesse caso, o promotor do caso, Sebastião Rodrigues Barcell, usou a ideia de “solo livre”, ou seja, vivendo em Estado onde havia sido abolida a escravidão, Anacleto seria considerado livre. Contudo, não sabemos exatamente por que – e aqui está o ponto em que a própria documentação limita o pesquisador – ele aparece no inventário de seu senhor Escouto, em 1865, então com 15 anos de idade. Possivelmente parecesse radical aplicar a lei, já que havia dezenas de fazendeiros que estariam nessa situação, além do potencial subversivo dentro da escravaria local.

Tendo como base os dados que encontrou nos arquivos, o autor recria contextos, compõe cenários e imagina cenários plausíveis diante do que suas fontes demonstram sobre seus personagens. Todos eles, é importante salientar, produzidos com base em intensa pesquisa na documentação, cruzamento de fontes e de leituras realizadas pelo historiador. Não à toa, Jônatas compara seu texto a uma peça de teatro e nos agradecimentos refere-se a si mesmo como diretor: “[…] Qualquer tropeço do diretor, e o fracasso ou sucesso de sua peça, é de sua inteira responsabilidade […]” (Caratti, 2013, p. 12). Sua narrativa e análise é um múltiplo labirinto que se abre e se transforma, demonstrando as multifacetadas vivências dos indivíduos que fazem parte de sua peça.

São várias as metodologias utilizadas por Jônatas em seu texto, já que ele trabalha com fontes diversas.

Assim, encontramos reflexões sobre as alforrias, sobre o mundo do trabalho escravo – com dados de compra e venda e leitura de pesquisadores da área –, escolha dos padrinhos, tráfico de escravos e comércio de cativos.

A narrativa do professor é instigante por colocar um elemento que, muitas vezes, está ausente na historiografia: a imprevisibilidade. Ao mesmo tempo que Anacleto e Faustina tinham seus próprios objetivos, suas vidas se entrecruzam com a visão de outros, que relacionavam-se entre si e por vezes determinaram seu futuro. O indivíduo e a sociedade, representada pela vontade de vários, são também reflexões possíveis da trama apresentada pelo professor. Segundo o próprio historiador, sua metodologia, inspirada na micro-história, trata de questões “inesperadas” e também as analisa de forma “experimental”; além disso, seu objetivo é explorar as fontes e os dados encontrados, mesmo quando poucos (Caratti, 2013, p. 55).

Se a narrativa por vezes esfria os conflitos que eram inerentes ao momento em que foram narrados, podemos afirmar que na narrativa de Jônatas por vezes afloram paixões, já que ele nos aproxima, como poucos, dos personagens por ele tratados. Assim, quando Joaquina Maria foi levada para depor, estava em “estado de alienação” e “chamava por sua filha”. Faustina estava no rancho de seus pais, escondida em um barril, quando dois homens a levaram. Mesmo que a mãe afirmasse que juntava dinheiro para a compra de sua liberdade, os homens, num cálculo frio, raciocinaram que a menina daria mais lucro e suportaria mais a viagem que a mãe e resolveram levar a garota. O que sentia essa mãe? Como isso a alterou emocionalmente ao ponto de não conseguir depor? A aflição dessa mulher demonstra não só a rede de relações entre senhores e escravos, as tentativas de fuga, mas também a sensação de completa instabilidade vivida pelos cativos nesse contexto.

De um lado, os donos de escravos, que viam como fundamental a utilização de mão de obra escrava em suas estâncias no lado uruguaio. De outro, o medo de que os escravos usassem a lei a seu favor e garantissem sua própria liberdade. A descrição das trajetórias de Anacleto e Faustina procura elucidar essas questões, que são o eixo principal da pesquisa do historiador.

Essa reflexão sobre os personagens, seus anseios e desejos faz com que o trabalho de Jônatas se insira na historiografia recente sobre escravidão, que não os trata como “coisas” ou como engrenagens de uma estrutura. Eles têm nomes, desejos, sonhos e lutam pela liberdade diante das possibilidades apresentadas.

Anacleto e Faustina não foram vítimas de um crime comum, mas estiveram envolvidos em conflitos sobre posse de escravos, fronteira e limites do Estado. Passaram por Melo, Jaguarão, Pelotas, Encruzilhada, Tupambahé e Rio Grande. Assim, o limite da pesquisa de Jônatas não é local, mas temporal, procurando perceber as diversas interfaces que permeiam a vida dos protagonistas de suas tramas. No decorrer do livro, o autor nos leva a cada um desses lugares, com dados levantados dos arquivos e bibliografia especializada, apresentando um quadro social amplo da sociedade sul-rio-grandense. A mobilidade é uma constante em sua obra: “[…] Tropeiros tocando o gado pela fronteira, escravos fugindo estrategicamente em embarcações, juízes e delegados retirados e colocados em vilas, como se fossem peças de um jogo de xadrez: tudo indica que essa gente não vivia na monotonia” (Caratti, 2013, p. 64).

Tal como em uma peça teatral, acompanhamos os personagens na narrativa de Jônatas, envolvemo-nos com suas trajetórias e percebemos suas vidas como mostras de um tecido social. O historiador, desta forma, nos abre outras cortinas: da complexidade do social e da dinâmica das relações que se dão entre o micro e macro. Um livro instigante, que poderia ser filme e que mostra que é possível unir boa narrativa com rigor acadêmico.

Referências

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SOARES, M. 2009. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c. 1750-c. 1830. Rio de Janeiro, Apicuri, 265 p.

Notas

2 Domenico Scandella ficou conhecido como Menocchio graças a Carlo Ginzburg, que procurou compreender o mundo do moleiro através dos arquivos da Inquisição. Seus ensinamentos renderam-lhe a qualificação de herege, sendo morto e torturado na fogueira (Ginzburg, 1987).

3 “Poucas crianças chegavam a ser adultos, sobretudo quando do incremento dos desembarques de africanos nos portos cariocas […] no intervalo entre o falecimento dos proprietários e a conclusão da partilha entre os herdeiros, os escravos com menos de dez anos de idade correspondiam a um terço dos cativos falecidos, dentre estes dois terços morriam antes de completar um ano de idade, 80% até os cinco anos” (Góes e Floretino, 2002, p. 180).

Debora Regina Vogt – Doutoranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Analista técnico educacional da rede SESI/SP. Av Paulista, 1313, 01311-923, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

Cativos do Reino: A circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19 | Renato Pinto Venâncio

Renato Pinto Venâncio é doutor pela Universidade de Paris IV – Sorbonne, onde defendeu, em 1993, a tese intitulada “Casa da Roda: instituition d´assistance infantile au Brésil, XVIII – XIX siècles”. Atualmente é professor da Escola de Ciência da Informação na Universidade Federal de Minas Gerais.

Em seu livro Cativos do Reino, o autor analisa casos em que escravos circulavam de uma região a outra, sendo responsáveis por transmitir valores e tradições nas diversas partes do reino português e suas colônias. Embora reconheça que esses casos não eram comuns, o autor consegue nos mostrar como essa circulação de cativos é importante para compreendermos a complexidade da escravidão da Idade Moderna, muitas vezes analisada de forma simplificada pela historiografia sobre o tema. Leia Mais

Cross-cultural exchange in the Atlantic world: Angola e Brazil during the Era of the Slave Trade – FERREIRA (VH)

FERREIRA, Roquinaldo. Cross-cultural exchange in the Atlantic world: Angola e Brazil during the Era of the Slave TradeNova York: Cambridge University Press, 2012, 282 p. CORRÊA, Carolina Perpétuo. Varia História, Belo Horizonte, v. 30, no. 52, Jan./ Abr. 2014.

No início do século XIX, uma mulher negra livre chamada Francisca da Silva foi escravizada em Benguela depois de ser acusada de ter se utilizado de feitiçaria para assassinar Diniz Vieira de Lima, comerciante de escravos que, apesar de ser natural daquela cidade, falecera no Rio de Janeiro. Assim se inicia o livro de Roquinaldo Ferreira, que integra a prestigiosa série African Studies, publicada, desde 1968, pela Cambridge University Press.

Biografias de pessoas comuns, como Francisca da Silva, elaboradas a partir de documentos oficiais da época, associadas à análise de memórias e relatos de viagem, formam a base da obra, fruto de uma abordagem micro-histórica. Aliando profundo domínio dos estudos históricos recentes sobre o tema, lúcida reflexão metodológica e extensa pesquisa documental realizada em arquivos angolanos, brasileiros e portugueses, o historiador brasileiro radicado nos Estados Unidos tece um rico panorama do mundo atlântico nos séculos XVIII e XIX. O maior desafio metodológico, a feitura de generalizações a partir de exemplos reveladores – estudos de caso de indivíduos cujas vidas foram registradas para a posteridade justamente por serem, de algum modo, atípicas – é solucionado por meio da descrição densa e da atenção ao contexto. O historiador, atento, procura conectar sempre os eventos que se desenrolam no nível micro com o processo maior do qual fazem parte.

Além disso, a adoção de um recorte espacial inspirado na História Atlântica, constructo analítico segundo o qual os acontecimentos da era moderna são organizados a partir do entendimento da Bacia Atlântica como um lugar onde ocorriam intercâmbios demográficos, econômicos, sociais e culturais entre os continentes por ela banhados, permite dar ênfase a aspectos dinâmicos que transcendem as fronteiras administrativas ou nacionais.1 Essa combinação de redução da escala de análise e ampliação do recorte geográfico traz contribuições importantes tanto para a História do Brasil quanto para a História da África Centro-Ocidental.

Apesar do impacto do comércio de escravos para o Brasil, a historiografia pátria guardou silêncio quase absoluto até a década de 1990 sobre as relações entre as duas regiões. A África foi frequentemente encarada como um continente primitivo, homogêneo, estático no tempo e destituído de história, e os africanos, associados automaticamente aos escravos. Por essa razão, o trabalho de Ferreira aparece àqueles familiarizados com a produção historiográfica nacional sobre a escravidão e o tráfico de escravos como a peça faltante para que o quebra-cabeça adquira seu pleno sentido. Vem, portanto, ao revelar a face africana do negócio negreiro, somar novos conhecimentos aos importantes trabalhos que pensam o tráfico do ponto de vista do Brasil, como os de Manolo Florentino e Jaime Rodrigues.

Entretanto, só teremos uma percepção adequada do alcance da obra, se a analisarmos sua contribuição para a História da África Centro-Ocidental. Em 2004, Boilley e Thioub2 argumentavam que, durante o século XX, a escrita da história da África, influenciada, por um lado, pelos combates anticoloniais e, por outro, por modelos eurocêntricos, tendeu a considerar que, depois do contato com o ocidente, a África e os africanos se tornaram vítimas de um sistema que, rompendo com o curso normal da história, constitui a causa principal, senão exclusiva, do lugar subalterno que o continente ocupa nos negócios contemporâneos do mundo. Pensando em como a produção acadêmica sobre o comércio de cativos poderia superar essas limitações, os autores sugeriam que era preciso compreender as implicações dos africanos nos processos históricos, analisando a arquitetura social, bem como os sistemas locais de produção, de troca, de dominação e de exploração da força de trabalho. A chave seria explorar as dinâmicas internas sem silenciar quanto aos interesses e ao envolvimento de atores autóctones no negócio negreiro.

Ferreira desempenha tal tarefa com maestria, mergulhando na sociedade centro-africana durante o período do comércio de escravos. Filia-se, assim, a uma tradição historiográfica inaugurada na década de 1970 por estudiosos como Jill Dias, Beatrix Heintze, Isabel Castro Henriques e Joseph Millerque procura superar o caráter etnocêntrico das análises sobre as regiões africanas engajadas no comércio atlântico e abordar a política, a economia e a sociedade locais em sua historicidade e em sua complexidade.

Esses autores pioneiros, muitas vezes mesclando métodos e abordagens próprios da história, da antropologia e da etnografia, abriram novas possibilidades para o estudo da África Centro-Ocidental, desenvolvendo trabalhos com fontes inéditas encontradas em arquivos angolanos e portugueses. Ademais, elaboraram sofisticadas reflexões teóricas sobre o lugar da África na História Mundial, o papel do historiador ao se relacionar com fontes de natureza diversa (tradição oral, achados arqueológicos, documentos escritos) e os métodos para lidar com os filtros por meio dos quais estrangeiros (os autores da documentação consultada e os próprios pesquisadores) apreenderam a realidade africana. Inovaram ao abordar temas que, durante o período colonial, eram tabus difíceis de serem rompidos, como a fragilidade da dominação portuguesa na região e a participação dos africanos no comércio de escravos, atribuindo a eles um protagonismo em sua história que lhes foi frequentemente negado.

Na contemporaneidade, uma nova geração de historiadores veio se juntar a esses pesquisadores já consagrados, desvendando novos aspectos da sociedade centro-africana no contexto do comércio atlântico. Um bom exemplo é Mariana Cândido3 que empreendeu um estudo sobre Benguela entre 1780 e 1850, argumentando que o tráfico negreiro ajudou a fundar ali uma sociedade crioula, na qual pessoas oriundas de culturas diversas acabaram forjando uma identidade comum.

Em sua dissertação de mestrado, Ferreira já havia se ocupado de Angola, mas investigando os impactos econômicos da proibição do tráfico negreiro para o Brasil entre 1830 e 1860. Em Cross Cultural Exchange in the Atlantic World, o historiador recua no tempo, analisando aquela sociedade durante o auge do comércio atlântico, tecendo para Angola uma análise em muitos sentidos equivalente a que Law e Mann dedicaram à Costa dos Escravos.4 Como esses autores, chega a conclusões abrangentes a partir de histórias individuais, enfatizando as conexões culturais e sociais transatlânticas.

A primeira seção se inicia com a narrativa de uma expedição comandada pelo ex-capitão de navios negreiros Francisco Roque Souto, em 1739, ao Reino de Holo, cujo intento era proporcionar à administração portuguesa contatos comerciais diretos com essa região fornecedora de escravos. A análise do episódio possibilita o exame da intensificação do comércio itinerante no interior de Angola, no contexto do aumento da demanda por cativos no Brasil no século XVIII, decorrência das descobertas de ouro na região das Minas. Tal comércio, conduzido nos sertões africanos por intermediários conhecidos como pumbeiros e sertanejos, consistia na troca de mercadorias importadas por escravos, que eram então conduzidos até os portos de embarque no litoral.

São os impactos do incremento dessa atividade comercial nas estruturas sociais e econômicas de Angola que o autor se propõe a desvendar, e o faz narrando vários casos retirados das fontes, como o de três africanos que tinham chegado a Benguela em 1789, fugidos após todos os outros 25 carregadores da caravana na qual trabalhavam terem sido embebedados e posteriormente escravizados pelo sertanejo Jerônimo Corrêa Dias. Partindo desses estudos de caso, o autor analisa o aumento de formas de escravização não militar, decorrentes de endividamento ou de acusações de feitiçaria, o desvirtuamento de formas de dependência temporária tradicionais e a ampliação progressiva da esfera de atuação dos Tribunais de Mucanos, cortes competentes para conhecer casos de escravização injusta, oriundas das práticas legais Mbundu.

A segunda seção é dedicada ao panorama cultural, religioso e político de Angola durante o período estudado. O historiador explora a demografia e a economia de Luanda, expondo uma sociedade dinâmica, na qual eram fluidas as fronteiras entre escravidão e liberdade e frequentes as oportunidades de convivência entre indivíduos de condições sociais e origens diversas. Nesse mundo cosmopolita, no qual a administração portuguesa tinha dificuldades de se impor, europeus e outros forasteiros acabavam aculturados pelos locais, conforme atestam a prevalência do quimbundo sobre o idioma português.

Especial atenção é dada à religião e à cultura africanas, exploradas a partir da fascinante história de Mariana Fernandes, uma mulher negra livre acusada de feitiçaria e presa em Luanda em 1726. O estudo do processo movido contra Mariana pela Inquisição revela uma mulher dotada de grande autonomia, poder e influência, decorrentes de sua atuação como ganga, autoridade religiosa de Angola. Da leitura emerge a força da religiosidade africana, que perpassava todas as camadas sociais, unindo indivíduos oriundos de realidades muito diversas.

O autor analisa, a seguir, a vida social de Luanda e de Benguela tomando como ponto de partida a história do escravo Manoel da Salvador, que, criança, fora enviado ao Rio de Janeiro, retornando, já adulto, a Luanda, onde, em 1771, é acusado de assaltar a casa de um taberneiro. Para rebater a acusação, Salvador alega que a elevada soma de dinheiro encontrada em sua posse não era produto do roubo, mas fruto da venda de mercadorias enviadas a ele pelo irmão, que continuava a residir no Brasil. Embora boa parte da versão de Salvador pareça ter sido uma mentira, o crédito dado às suas alegações, em um primeiro momento, pelas autoridades, ajuda

a revelar a grande mobilidade geográfica no mundo Atlântico. O estudo de dezenas de outros casos mostra que pessoas livres e escravas atravessavam o oceano em razão de punições por crimes e comportamentos inadequados, mas também para aprender uma profissão, buscar instrução, conduzir negócios e visitar parentes.

Os laços culturais, políticos e comerciais que uniam essas regiões africanas ao Brasil eram tão robustos, que, em 1824, prósperos comerciantes de Benguela, liderados por um homem negro nascido no Rio de Janeiro, de nome Francisco Ferreira Gomes, iniciaram um movimento rebelde que pretendia romper os laços com Portugal e anexar a província ao Brasil recém-independente. A tentativa de secessão, longe de ser uma empreitada fantasiosa, era coerente com a conjuntura da época, sendo mesmo esperada pelas autoridades portuguesas.

Ao enfatizar a organicidade entre as possessões portuguesas, o autor evidencia a esterilidade dos embates em torno dos conceitos “crioulo” e “crioulização”, rótulos estáticos que, segundo ele, dificilmente são capazes de abarcar toda a complexidade dessas mutáveis sociedades, nas quais os indivíduos manipulavam as diferentes esferas culturais, religiosas e jurídicas existentes de acordo com suas necessidades momentâneas.

A obra, inspirador exercício de erudição e imaginação histórica, adiciona mais uma peça ao intrincado quebra-cabeças do Atlântico Português, dando rara ênfase à dimensão humana das sociedades africanas setecentistas e oitocentistas, contribuindo, como sugere Miller, para que “a história atlântica se apoie solidamente em três pernas”,5 e que os africanos, como os outros, assumam o seu lugar como “atores inteligíveis” na trama do passado.

1 RUSSEL-WOOD, A. J. R. Sulcando os mares: um historiador do império português enfrenta a “Atlantic History”. História, São Paulo, v.28, n.1, p.17-70, 2009.         [ Links ] 2 BOILLEY, Pierre; THIOUB, Ibrahima. Pour une histoire africaine de la complexité. In AWENENGO, Séverine; BARTHÉLÉMY, Pascale; TSHIMANGA, Charles (eds.). Écrire l’histoire de l’Afrique autrement?. Paris: L’Harmattan, 2004, p.23-45.
3 CÂNDIDO, Marina P. Enslaving frontier: slavery, trade and identity in Benguela, 1780-1850. Toronto: York University, 2006 (História, Tese de Doutorado).         [ Links ] 4 LAW, Robin; MANN, Kristin. West Africa in the atlantic community: the case of the Slave Coast. The William and Mary Quarterly,Third Series, v. 56, n.2, p.307-334, apr. 1999.         [ Links ] 5 MILLER, Joseph. History and Africa/Africa and History. The American Historical Review, v.104, n.1, p.1-32, feb. 1999.         [ Links ]

Carolina Perpétuo Corrêa – Instituto de História Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil, e-mail: [email protected].

Esclavos y cimarrones en Cuba: arqueologia histórica en la Cueva El Grillete – ANTÚNEZ et al (RAP)

ANTÚNEZ, Carlos Arredondo; HERNÁNDEZ, Odlanyer de Lara; RODRÍGUEZ, Bóris Tápanes. Esclavos y cimarrones en Cuba: arqueologia histórica en la Cueva El Grillete. Buenos Aires: Instituto Superior del Profesorado Dr. Joaquín V. González – Centro de Investigaciones Precolombinas, 2012. 180p. Resenha de: MONTEIRO, Victor Gomes. Revista de Arqueologia Pública, Campinas, n.8, dez., 2013.

O livro “Esclavos y cimarrones en Cuba: arqueologia histórica en La Cueva El Grillete” foi produzido em conjunto por três autores com distintas áreas de especialidades, todas convergindo para a Arqueologia. Bóris Tápanes e Odlanyer Lara são arqueólogos com certa experiência em escavações em Cuba. Carlos Antunes contribuiu com seu conhecimento em ciências biológicas, zooarqueologia e antropologia física. O livro é uma ótima referência para análise da cultura material de contextos quilombolas ou cimarrones, tanto por apresentar possibilidades metodológicas de análise dos materiais, quanto por traçar um panorama geral do movimento cimarronero, pelo menos no que se refere à Província de Matanzas (região ocidental de Cuba). Ao aprofundar os estudos na “Cueva El Grillete” e traçar paralelos com outros sítios de cimarrones já estudados, os autores conseguem demonstrar com maior riqueza de detalhes o cotidiano desses indivíduos e salientar o quanto ainda falta ser estudado em termos de Cuba a esse respeito, mesmo com a consciência de que o potencial para este tipo de estudo seja enorme.

O objetivo principal do texto não era propriamente revisar a historiografia a partir do elemento da cultura material, mas sim entender a partir de uma micro-escala, o que é o sítio “Cueva El Grillete” e as dinâmicas de sobrevivência dos escravos cimarrones. Para tal o acesso a cultura material, munida de uma perspectiva da Arqueologia da Paisagem, que procura entender não somente os sítios arqueológicos isolados de seus meios, mas sim entender as paisagens arqueológicas presentes no espaço geográfico, ou seja, os processos e formas culturais do espaço (Boado, 1999), são de fundamental importância. O alicerce informacional do refugio cimarrón Cueva El Grillete” é somente a documentação arqueológica (cultura material) e os elementos relacionados à paisagem, muito pouco se tem de documentação escrita acerca do local.

Através da organização estrutural dos capítulos é possível perceber que os autores compartilham de uma visão um tanto quanto cartesiana de divisão entre “dados históricos” e “dados arqueológicos”, ou de isolamento de elementos que deveriam estar em constante diálogo, que é o contexto histórico (proveniente de documentos escritos) em consonância com o contexto arqueológico (criado por todos elementos da cultura material). Essa divisão fica bem nítida com a escolha de deixar o segundo capítulo destinado a descrição e apresentação dos “dados históricos” e os seguintes capítulos (3º; 4º 5º) para os “dados arqueológicos”, sem tratar as fontes ditas históricas como potencialmente elucidativas da vida material dos cimarrones, ou seja, sem considerar esta documentação escrita como sendo portadora de materialidade e vetor da cultura material, tanto em seu conteúdo escrito, onde pululam referências a respeito das “materialidades do passado”, como na sua própria materialidade de documento constituído de suporte físico específico.

Na introdução os autores fazem uma análise da gênese até a atualidade da pesquisa em arqueológica histórica em Cuba, observando que até os anos 1960 as pesquisas se focavam muito nos estudos das elites nas sociedades coloniais. Os estudos em arqueologia da escravidão e dos cimarrones em Cuba, só vão se reverter em estudos sistematizados e de maior profundidade a partir dos anos 1990, principalmente pelas investigações realizados por Gabino La Rosa (1989; 1991). O grosso das publicações arqueológicas de escravidão e cimarrones se deram nas alturas de Habana-Matanzas. Nas regiões de Limonar, Coliseo e San Antonio de los Baños, não se tem proliferado estudos, mesmo com o potencial dessas regiões. Por outro lado a densidade e o contexto das plantações de café e açúcar de Habana- Matanzas tem sido, do ponto de vista arqueológico, bem estudadas.

O segundo capítulo “Algunos datos históricos”, é divido em duas partes. Num primeiro momento são apresentadas as informações de cunho contextual e histórico da região de Matanzas, desde a formação da indústria açucareira e da introdução da mão de obra escrava, ao processo de cimarronaje. Através de uma série de dados oficiais colhidos junto aos Arquivos da Província de Matanzas e outros locais, os autores traçam um cenário da rebeldia escrava na região com os focos de fugas e conseqüentemente de caça aos cimarrones.

Num segundo momento os autores discorrem a respeito das autoridades locais e dos indivíduos responsáveis pela manutenção e execução do sistema repressivo e coercitivo do sistema escravista cubano: os rancheadores. A documentação produzida pelos rancheadores em suas “batidas de caça” são uma das mais ricas fontes de informação da dinâmica e estratégias de sobrevivência dos cimarrones, como também do poder repressivo que buscava o extermínio desse fenômeno social. Através de seus “relatórios”, eles descreviam de certa maneira o cotidiano dos cimarrones, ao elencar as características de seus refúgios, a cultura material presente nessas habitações e informações sobre os escravos capturados ou executados.

Esse registro das atividades dos rancheadores era além de uma obrigação burocrática, uma estratégia para melhor entender a dinâmica dos cimarrones.

Um ponto que merece destaque nesse capítulo, pelo menos para quem trabalha com resistência escrava, rebeliões e quilombolas no Brasil, é o registro da preocupação dos senhores e administradores locais da região de Guamacaro, de uma possível conspiração escrava que acabou não tomando proporções maiores em 1830. Saliento essa parte, por perceber que as notícias de conspirações escravas (em grande escala), mesmo na maioria das vezes não passando de boatos ou não chegando a se concretizar, são processos que permeiam tanto Cuba quanto o Brasil, como no exemplo da suspeita de uma conspiração escrava na província do Rio Grande de São Pedro nas primeiras décadas do séc. XIX (Maestri, 1984, p.145-146) ou do temor das autoridades da cidade de Pelotas para a possibilidade de uma revolta em massa dos cativos locais, incentivado por elementos estrangeiros (Monteiro, 2012).

Os autores mantêm uma divisão, proveniente do trabalho de Gabino La Rosa Corzo (1989; 1991), entre cimarronaje simple, que seria o primeiro nível de resistência, e as quadrilhas de cimarrones, que consistiam de grupos armados, que se deslocavam de um local a outro sem praticar agricultura, vivendo de caça, pesca, e roubos, estes fariam parte da resistência ativa. Essa divisão entre resistência ativa e passiva é pouco produtiva e não leva em consideração as resistências cotidianas e simbólicas, que não se encontram necessariamente no campo da resistência física direta.

No terceiro capítulo “Trabajos arqueológicos en Matanzas” os autores elencam uma série de trabalhos arqueológicos desenvolvidos na região de Matanzas (Cafetal La Dionisia; Cueva El Garrafón o Mural; Cueva Los Cristales; etc.). Salientam que são poucos os trabalhos executados com relação a potencialidade de pesquisa na região. As pesquisas relacionadas à escravidão não são propriamente relacionados ao cimarron, proporcionando na maioria das vezes um panorama contextual e sócio-político em que estavam inseridos os escravos. Os autores salientam que seguem para este trabalho o espaço natural de Matanzas em que se moveram os cimarrones, e não exatamente uma representação objetiva dos limites territoriais da província.

No quarto capítulo “La Cueva El Grillete” os autores entram no objeto específico das suas pesquisas que é o sítio “El Grillete” em Matanzas. Os dados arqueológicos retirados da “Cueva El Grillete” são analisados nas primeiras páginas do capítulo, relegando-se o final ao desenvolvimento e aplicação do conceito de paisagem.

Nessa parte do livro os autores descrevem de forma mais detida os aspectos metodológicos e contextuais da cultura material que dá base para produção deste trabalho.

Nesta primeira sessão do capítulo são descritos os dados quantitativos e de análise tipológica dos materiais, com destaque aos objetos de maior relevância para o entendimento da vida dos cimarrones que viveram naquele local. Ao final do capítulo os autores apresentam alguns aspectos do que entendem por paisagem e desenvolvem esse conceito baseando-se no sítio “Cueva El Grillete”. O estudo da Arqueologia da Paisagem é um aspecto até então não sistematicamente estudado em Cuba e de grande potencial para o estudo dos escravos cimarrones. Pela perspectiva que os autores seguem a paisagem não é mais estática, da ordem física e ambiental, mas sim é vista como construção social, imaginária, enraizada a cultura.

Por esse motivo se propõe como objetivo deste trabalho entender paisagens arqueológicas, ou seja, os processos e formas de culturalização do espaço. Inspirados em Criado Boado (1999), entendem a paisagem como um produto social, com três dimensões espaciais intrínsecas e relacionais: o espaço como meio físico ou ambiental da ação humana; o espaço enquanto meio construído pelo ser humano, onde se produzem as relações entre indivíduos e grupos; e o espaço enquanto meio pensado e simbólico que oferece a base para desenvolver e compreender a apropriação humana da natureza.

Seguindo essa linha de pensamento, os autores desenham cada um dos espaços com relação ao sítio estudado. O espaço natural diria respeito às elevações onde se encontra a “Cueva El Grillete” e que constituem a Sierra de Guamacaro. O espaço como meio construído poderia ser percebido, através da geografia das elevações da Sierra de Guanamacaro, que permitem inferir de certa maneira as possíveis vias de transito e a mobilidade dos cimarrones nessa zona. Por último os autores destacam o espaço como meio simbólico, que se demonstraria na cultura material através de elementos que poderiam conformar aspectos de religiões afro-cubanas. Certo para os pesquisadores é que a construção do mundo cimarrón não se limitou apenas a cultura material, mas também ao uso dos meios naturais, especialmente dos sistemas montanhosos e das covas que formataram parte imprescindível de suas vidas.

O quinto e último capítulo “Zooarqueología de la cueva el grillete” apresenta especificamente a pesquisa da fauna presente no sítio, com análise bastante detalhada de cada especificidade dos materiais ósseos e conseqüentemente da dieta alimentar dos cimarrones que em algum momento habitaram aquele local. Em resumo é possível depreender a partir da análise zooarqueológica dos materiais do sítio, que os cimarrones obtinham sua sobrevivência muito em função do aproveitamento das diversas espécies introduzidas pelos europeus a fauna nativa e da utilização dos recursos naturais. O registro não intencional ou as informações deixadas por esses indivíduos no tempo se dá na forma dessa dieta rica em carne animal (proteína), e nos utensílios de uso cotidiano que permanecem no registro arqueológico.

No sexto capítulo estão os apontamentos finais. Os autores ressaltam o valor dos estudos em arqueologia para dar luz a esse fenômeno social do séc. XIX que foram os cimarrones. As características geográficas e ambientais do sítio estudado “Cueva El Grillete” permitiram a conservação e preservação natural desses materiais tanto da ação do clima tropical como da ação antrópica. Artefatos como armas, vasilhas de cerâmica, recipientes e contas de vidro, cachimbos, três fogões e abundantes restos ósseos de animais, conformaram o espaço de habitação temporal dos cimarrones que ali estiveram. O auge do fenômeno da cimarronaje na área teria sido os anos de 1820 a 1840, no entanto as evidências arqueológicas apresentadas neste livro inclinam os autores a pensar em outro momento de habitação que se estabeleceria entre 1840 e 1886, próximo a abolição da escravatura em Cuba.

Referências

BOADO, Felipe Criado. Del terreno al espacio: planteamentos y perspectivas para La Arqueología del Paisaje. Capa 6. Grupo de Investigación em Arqueología del Paisaje, Universidad de Santiago de Compostela, 1999.

CORZO, Gabino La Rosa. Armas y tácticas defensivas de los cimarrones em Cuba. Reporte de Investigación del Instituto de Ciencias Históricas. Nº 2. Academia de Ciencias de Cuba. La Habana. 1989.

_______. Los Palenques em El Oriente de Cuba. Resistencia y Ocazo. Editorial Academia.

La Habana. 1991.

MAESTRI, Mário. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984.

MONTEIRO, Victor Gomes. Um inventário do medo: a Pelotas escravista e a representação do medo através das Atas da Câmara Municipal de Pelotas (1832-1850). 2012. Trabalho Acadêmico – Curso de História. Instituto de Ciências Humanas. Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, 2012.

Victor Gomes Monteiro – Bacharel em História pela UFPel (2012). Pesquisador Associado do LÂMINA.

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O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo | Elcilene Azevedo

Elciene Azevedo na obra “O direito dos escravos” tem por objetivo compreender o processo que envolve a luta abolicionista em São Paulo durante as últimas décadas do século XIX, atentando não apenas para as rupturas no decorrer do processo, mas também para as continuidades e reelaborações.

A autora vai além de uma compreensão, por muito tempo cristalizada em nossa historiografia, sobretudo pela “Geração de 1930”, a qual entendia que o escravo devido a constância dos maus tratos a que era submetido se tornava alheio a sua própria vontade. Sob essa leitura eram então sujeitos amorfos que não resistiam à violência, quando não eram ainda interpretados como inertes à escravidão pela benevolência de seus senhores, necessitando de homens brancos e ilustrados, repletos de sentimentos humanitários capazes de tirar-lhes da escura escravidão. Leia Mais

Cativos do Reino: A circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19 | Renato Pinto Venâncio

A obra “Cativos do Reino: A circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19”, de autoria do professor doutor Renato Pinto Venâncio, foi lançada em 2012 pela editora Alameda. Ao longo de oito capítulos, o autor leva os seus leitores a repensar a escravidão sob uma vertente diferenciada. A perspectiva que se tem é a da movimentação e circulação de escravos. Entendida como um fenômeno referente à transferência de cativos de uma região a outra, em áreas externas ao continente africano, esta circulação envolvia também fatores essencialmente humanos, como o trânsito de valores e as ideias.

Logo no primeiro capítulo Venâncio traça um dos itinerários que irá percorrer em suas reflexões: as rotas de circulação de cativos no interior do império português, especialmente nas Minas Gerais colonial. As Minas foram um lugar de intensa circulação de pessoas e mercadorias pós-descoberta do ouro, lugar em que senhores, acompanhados por seus escravos, vindos de partes distantes do império luso, fixaram residência e buscaram enriquecimento sob influência da quimera aurífera. Leia Mais

Domingos Álvares: African healing, and the intellectual history of the Atlantic World – SWEET (VH)

SWEET, James H. Domingos Álvares. African healing, and the intellectual history of the Atlantic World. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2011, 300 p. MELLO E SOUZA, Marina de. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 48, Jul./ Dez. 2012.

A história de Domingos Álvares, possível de ser reconstituída por ter ele sido alvo de um processo inquisitorial e da pesquisa minuciosa de James Sweet, permite que sejam discutidos vários aspectos das sociedades formadas a partir das relações tecidas em torno do Atlântico no século XVIII. Como já havia feito em seu livro anterior, Recreating Africa, o autor tem como projeto de fundo inserir processos históricos e universos mentais africanos no conjunto de variáveis a serem consideradas nas análises de situações coloniais que envolveram o Brasil e Portugal,e de trajetórias de africanos inseridos à força, por meio da escravização e da introdução na sociedade escravista brasileira, em relações que abarcavam espaços de três continentes, conectados por interesses econômicos, políticos, e palco de intercâmbios culturais. Com uma escrita de alta qualidade e uma narrativa muito bem construída, conduz o leitor por uma sequência de fatos que o envolvem num crescendo no qual a força do texto não prescinde de uma pesquisa de grande fôlego. Cada elemento apresentado pela narrativa foi minuciosamente pesquisado em arquivos e discutido à luz de estudos anteriores, com os quais o autor mantém diálogos que permitem que reflexões já feitas sejam utilizadas de forma a tornar mais consistente sua própria análise.

O fio condutor da narrativa são os acontecimentos da vida de um curandeiro que é obrigado e se reinventar constantemente ao ser escravizado e transportado do Daomé para Pernambuco, dali para o Rio de Janeiro, onde compra sua liberdade e é preso como feiticeiro, sendo então levado para Lisboa, onde conhece os horrores dos porões inquisitoriais, antes de ser condenado ao exílio no extremo sudeste de Portugal, passando então a vagar em busca de uma sobrevivência cada vez mais árdua de ser obtida. Tendo saído adulto de um Daomé convulsionado pelas guerras de expansão do tempo de Agaja, que impunha sua autoridade sobre territórios vizinhos, submetendo os chefes tradicionais e tornando-se o principal fornecedor de escravos para o comércio atlântico a partir da segunda década dos setecentos, levou consigo o conhecimento especializado já adquirido, que o habilitava a recorrer aos voduns e antepassados para lidar com as adversidades do mundo visível, fossem elas pertinentes a questões físicas ou emocionais. Ligado a tradições perseguidas por Agaja que se via ameaçado pelas estruturas de poder a elas ligadas, nativo de uma região submetida ao expansionismo irradiado a partir de Abomé, foi um dos muitos escravizados naquele contexto de guerras regionais, entre os quais deviam se encontrar vários especialistas em práticas mágico-religiosas como ele. Mas de poucos deles foram registradas informações detalhadas. Para desgraça de Domingos Álvares e fortuna do pesquisador e de seus leitores, ele caiu nas garras da inquisição, talvez até por ter superestimado seus poderes e não ter sido suficientemente discreto e cuidadoso no exercício de suas atividades de adivinhação e cura.

As muitas lacunas da história de Domingos Álvares, extraída do processo inquisitorial aberto contra ele, são preenchidas com suposições fundamentadas em informações de ordem diversa, como a história do Daomé e as tensões entre Agaja e os sacerdotes de Sakpata, vodun responsável pela cura da varíola, e as obtidas no banco de dados sobre o tráfico atlântico de escravos, sob a coordenação de David Eltis, que indica a quantidade significativa de escravizados jejes desembarcados no Recife nas primeiras décadas do século XVIII. Para entender o percurso do escravizado Domingos Álvares, primeiro em um engenho nas cercanias de Recife e depois naquela cidade, o autor traça um quadro da economia da época, que passava por um período de crise com muitos engenhos parados, e das relações sociais escravistas que exigiam determinados comportamentos não só dos escravos mas também dos senhores, de forma a garantir a manutenção do sistema. A presença significativa de pessoas escravizadas oriundas da região do Daomé é rastreada não só pelos dados quantitativos produzidos pelo comércio de escravos, mas também pela centralidade do fon no dicionário da língua geral organizado por Antonio da Costa Peixoto, que entre outras coisas associou o vodunon com o padre católico. Em um ambiente de misturas antigas, entre índios, portugueses e africanos, entre os quais até então haviam predominado os bantos, nos anos seguintes a 1720 chegaram muitos jejes, adeptos dos voduns, em consonância com os processos de escravização em curso na costa ocidental da África.

Nesse meio social que propiciava alguma identificação entre africanos vindos da mesma região e que passava por uma crise econômica, os conhecimentos curativos de Domingos Álvares foram agenciados pelo seu proprietário em Recife, para que atuasse não só junto aos escravos como também entre os brancos, pois até mesmo padres católicos integravam elementos de origem africana em suas práticas. Certamente homem de inteligência e sagacidade acima da média, Domingos logo incorporou conhecimentos curativos que circulavam em terras pernambucanas, como plantas adequadas para combater certas doenças e uma prática que adotará a partir de então que consistia em envolver a cabeça do paciente em uma toalha sobre a qual era lentamente derramava água.

Ao detectar a possibilidade de, por meio de suas atividades de cura e adivinhação, articular laços sociais entre seus semelhantes e reivindicar maior independência entrou em atrito com seu senhor que não abriu mão do controle que tinha sobre suas ações. No embate entre a busca de mais autonomia por parte de Domingos e o empenho do proprietário em mantê-lo sob controle conforme as regras da sociedade escravista, as relações entre ambos deterioraram,e seus poderes mágicos foram direcionados contra o senhor e sua família. Já no gozo da fama de curandeiro poderoso, foi acusado de tentar matá-los e encarcerado até que aparecesse um comprador, que o embarcou para o Rio de Janeiro, sendo assim afastada a ameaça que representava não só para aquela família como para a manutenção da ordem senhorial. A falta de vento durante a viagem foi atribuída a resultante de feitiço seu, o que lhe rendeu boas chibatadas e a confirmação de que se tratava de um elemento altamente perigoso, que manipulava forças mágicas.

A despeito dessa fama, ou devido a ela, foi comprado por uma pessoa cuja esposa sofria de uma doença crônica da qual ninguém dava jeito. Nessa nova casa também não foi possível a convivência entre os escravos e seus senhores, que o acusaram de agravar a doença da senhora e mesmo tentar matá-la. Por outro lado, a integração entre os negros do Rio de Janeiro foi rápida e logo Domingos estava novamente exercendo sua atividade de curandeiro. Quando sua permanência na casa do senhor se tornou insustentável devido ao grau a que haviam chegado os conflitos e a ameaça que ele passou a representar à vida da senhora, uma autoridade colonial foi chamada a intervir para solucionar o caso, sugerindo que fosse transferido para a casa de outro senhor, cujos escravos estavam adoecendo em quantidade acima do normal, podendo ser Domingos de utilidade em função dos seus talentos, cujos benefícios eram àquela altura amplamente reconhecidos apesar dos mesmos poderem também ser materializados em malefícios, como ocorreria na casa em que se encontrava.

O sucesso de suas adivinhações e desmanche dos feitiços que estavam provocando as doenças entre os escravos foi imediato e o novo senhor entrou em um acordo que foi favorável a ambos, dando-lhe a autonomia que buscava e liberdade para exercer sua profissão de curandeiro em troca de pagamento. As vantagens pecuniárias foram tão altas para os dois, que apesar do baixo índice de alforrias entre homens africanos, Domingos conseguiu comprar sua liberdade, depois de ter dado um bom lucro ao seu senhor. Sweet atribui os diferentes comportamentos de seus senhores no Recife e no Rio de Janeiro às diferenças entre a maneira de pensar e agir de um senhor de uma área rural conservadora, atrelado à sua lógica econômica, e a maneira de pensar e agir de um senhor inserido num mundo urbano pautado pelo empreendedorismo, para o qual o ganho obtido por meio do trabalho do escravo era mais importante do que a manutenção de uma dada estrutura social.

A etapa final da trajetória de Domingos Álvares no Brasil transcorreu entre a população livre do Rio de Janeiro, africana, afrodescendente, mestiça e mesmo branca, com ele atuando sempre nas fímbrias, seja do centro urbano, seja entre aqueles inseridos nos lugares menos privilegiados da organização social. Depois de ter seus talentos monopolizados pelo senhor em Recife, contra o qual se insurgiu, ter conquistado autonomia e propiciado altos ganhos para si e seu segundo senhor no Rio de Janeiro, o que lhe permitiu comprar sua liberdade, entrou numa terceira etapa de sua adaptação à vida na sociedade escravista brasileira, ao construir em torno de si uma comunidade de adeptos, estabelecida num centro de culto que atraía pessoas em busca de cura para seus males. Tal sucesso deve ter lhe subido à cabeça e dado uma autoconfiança que fez com que não percebesse o perigo que corria com o exercício público e aberto de suas curas e adivinhações. As denúncias aos representantes da inquisição se multiplicaram (e serviram de base para a reconstituição de sua atuação como adivinho e curandeiro) e em 1742 Domingos acabou enviado para Lisboa para ser julgado pelo Santo Tribunal. Junto com ele desembarcaram em Lisboa outras duas acusadas de feitiçaria: uma crioula chamada Luzia da Silva Soares e Luzia Pinta, nascida em Luanda e objeto de alguns estudos que buscam entender as misturas presentes em suas práticas e os processos culturais que levaram à formação delas.

Depois dos interrogatórios, mais de dezoito meses na prisão e uma sessão de tortura rápida e eficiente, Domingos abjurou de suas culpas, saiu em auto da fé e rumou para Castro Marim, na divisa com a Espanha, onde deveria cumprir a pena de quatro anos de exílio. Premido pela necessidade de sobrevivência ignorou a pena imposta e perambulou pela região fazendo curas em troca de comida e abrigo, e adaptando-se às necessidades locais ao incorporar novos conhecimentos. Tratou doenças com ervas e disse ser capaz de encontrar tesouros enterrados uma vez que esta era uma forte demanda local para os portadores de poderes de adivinhação. Conseguiu construir vínculos com uma ou duas pessoas que o ampararam em momentos de maior necessidade mas nunca foi tão marginal, com as marcas da alteridade inscritas na cor de sua pele, nos orifícios nas orelhas e nariz, nas incrustações nos dentes, todos indícios de sua condição de africano e ex-escravo, ainda por cima condenado ao exílio pela inquisição. Mesmo assim não abriu completamente mão de sua ousadia e descumpriu a ordem de permanecer em Castro Marim, e voltou a exercer sua profissão de curandeiro e adivinho, para o que chegou a forjar situações que simularam a interferência de forças do além para impressionar seus clientes.

Mais uma vez denunciado, voltou a argumentar diante do tribunal a partir da lógica da racionalidade ocidental e do catolicismo, dizendo que apenas usou ervas para curar e que os incidentes sobrenaturais não passaram de engodo estimulado pela extrema necessidade em que se encontrava. Seu estado deplorável talvez tenha comovido o juiz, que o libertou depois de alguns meses de cárcere, condenando-o ao exílio em Bragança onde parece nunca ter chegado pois findam em Évora, onde foi julgado pela segunda vez, os registros acerca de sua existência.

A história de Domingos Álvares, é narrada com extrema competência tanto no que diz respeito à minuciosa pesquisa que busca completar as informações do processo inquisitorial e dar subsídios para uma análise que transcenda a esfera individual e proponha uma compreensão de contextos pelos quais o indivíduo transitou, quanto no que se refere ao texto propriamente dito, que transporta o leitor para o seio dos acontecimentos e prende sua atenção num crescendo que faz com que se emocione com o destino do personagem. Mesmo sendo um livro essencialmente descritivo, com potencial para interessar um público mais amplo do que o de um grupo de historiadores, contém uma boa análise sobre a realidade apresentada, sempre conectando a história do Daomé com os processos em curso ao redor do Atlântico, e a organização social dos grupos daquela região da África com as experiências vividas por Domingos Álvares. Nesse sentido, argumenta que as estruturas básicas que ligam o homem à sua ancestralidade e ao grupo social do qual é parte indissociável estariam sempre orientando as suas ações, ao mesmo tempo que ele buscaria se adequar aos contextos nos quais se encontrava, para o que geralmente, mas não sempre, demonstrava especial sensibilidade, ao perceber quais comportamentos seriam mais proveitosos. Pois se não escondeu suas atividades de adivinho e curandeiro, talvez sentindo-se fortalecido pela comunidade que criou ao redor da sua casa de culto no Rio de Janeiro, ao ser inquirido pelos juízes do tribunal da inquisição entendeu ser mais proveitoso se apresentar como escravo, mesmo já tendo comprado sua liberdade, pois dessa forma evocava um vínculo com alguém que poderia protegê-lo no contexto da sociedade escravista e buscava evitar o pior, que seria a existência totalmente isolada, afastada fosse dos ancestrais, fosse dos senhores.

Com uma interpretação bem mais consistente do que a presente em seu livro anterior, Recreating Africa, James Sweet continua, entretanto, a tratar a cultura como um conjunto de traços o que faz com que busque paralelismos entre práticas daomeanas e brasileiras, como por exemplo quando equipara os processos de iniciação no culto de Sakpata e o batismo católico. Mais interessado em detectar equivalências que expliquem as novas práticas, do que em desvendar processos de interpretação e de tradução simbólica, sua análise perde fôlego no que se refere à esfera da cultura, e o fascinante quadro de trocas simbólicas que seu texto desvenda não chega a ser explorado além da descrição de práticas e da indicação de paralelismos. Nesse sentido, não entra no conjunto de preocupações do autor a busca por compreender os mecanismos por meio dos quais Domingos Álvares adotou tradições em vigor em Pernambuco, no Algarve, e mesmo incorporou explicações típicas do discurso inquisitorial, como quando acusou uma mulher de feiticeira, pois anos antes ela teria dormido com o Demônio. Essa ausência só é notada porque os contatos culturais estão constantemente presentes no texto e não chegam a ser explorados com mais vagar, como acontece com vários outros assuntos introduzidos pela documentação. Domingos é apresentado como se reinventando constantemente, como um híbrido cultural, como tendo uma extraordinária capacidade de adaptação, mas não é proposta uma análise dos processos pelos quais essas transformações ocorreram. A constatação, presente em vários momentos do livro, de que a partir do exílio era necessário construir novas comunidades, orienta a análise para a esfera das relações sociais e talvez seja essa a razão da interpretação final carecer de densidade, pois propõe uma análise do universo intelectual existente no quadro de circulações atlânticas sem ter se detido com mais vagar sobre as questões culturais, pertinentes, me parece, ao que chama de intelectual.

Ao comparar os destinos de Domingos Álvares e de uma menina que Tegbesu mandou de presente ao rei de Portugal (por meio de um embaixador que enviou a Salvador em 1750), mas que por ter ficado cega não seguiu para Lisboa, James Sweet conclui seu livro ressaltando casos nos quais a invisibilidade social e a solidão prevaleceram, atribuindo essa derrota às instituições imperiais que levaram à individualização, por oposição às tradições africanas nas quais os laços de parentesco, seja com os vivos, seja com os mortos, eram constitutivos básicos do ser.Segundo essa perspectiva, que não toca na questão das relações de poder em jogo, podemos pensar que de nada teria valido a capacidade de adaptação de Domingos Álvares diante das determinações do mundo capitalista em construção. Segundo Sweet, suas práticas de cura, que não diziam respeito apenas às pessoas mas também à sociedade, pois desvendavam conflitos e tensões, representariam uma alternativa para neutralizar o infortúnio por meio da ênfase no bem estar comum. Mas no embate entre diferentes lógicas, de um lado a das tradições africanas, e de outro a da Coroa portuguesa, da Igreja católica, e dos senhores coloniais, restou para Domingos Álvares o isolamento social e a penúria. E para isso os interesses imperiais do Daomé trabalharam junto com os de Portugal, pois também para Agaja e Tegbesu o poder dos ancestrais e dos voduns deveria ser neutralizado para não constituírem uma ameaça a eles. Esse, aliás, é um dos pontos fortes e originais da análise de Sweet, que argumenta que havia uma interconexão entre os processos imperiais em curso em Portugal e no Daomé, que se encontraram no mundo Atlântico do século XVIII.

Considerando Domingos um intelectual africano, o que me parece um uso inadequado do conceito, com a ressalva de que não tenho familiaridade com os estudos dos quais extrai essa ideia, Sweet entende que pessoas como ele, mesmo quando neutralizadas pelo poder institucional português, produziram um profundo impacto no discurso intelectual do mundo atlântico ao oferecer uma linguagem alternativa de cura que desafiava o nascente imperialismo sócio econômico. Mesmo sendo parte derrotada nesse embate as ideias africanas fariam parte das construções atlânticas, ao lado da herança intelectual europeia. Apesar de concordar com sua afirmação, discordo da maneira como a fundamenta, pois, no meu entender, se a contribuição africana está presente na construção do que Sweet chama de mundo intelectual atlântico não é por ter proposto uma lógica alternativa, que confrontou a dominante, e sim porque muitas pessoas foram bem sucedidas ao participar de processos de construção de comunidades que, apesar de dominadas, fizeram parte da formação desse novo mundo atlântico e da interpretação de sistemas simbólicos que resultaram em concepções e práticas que mesmo não hegemônicas integram-no.

Na ânsia de chamar atenção para o lugar da contribuição africana na construção do mundo atlântico, inclusive considerando os processos políticos internos ao Daomé, Sweet propõe uma interpretação que não me parece ser sustentada pela sua pesquisa e pelo seu admirável texto, que conta a história de uma pessoa que, depois de um sucesso temporário, fracassou em sua tentativa de recriar laços sociais a partir de práticas de cura africanas, mergulhando na obscuridade da solidão e do isolamento, enquanto tantas outras foram bem sucedidas e, elas sim, participaram da construção de um mundo atlântico, no qual o lugar da contribuição africana está sendo cada vez mais demonstrado. Como já transparecia em seu livro anterior, Sweet prefere abordar os diferentes sistemas culturais em contato, africanos e europeus, como estruturas que entram em choque e não como sistemas que criam áreas de comunicação, que resultam em produtos culturais novos. No que entende ser um embate entre um estilo europeu individualista e iluminista (e não nos é dito como este se coadunaria com o tribunal da inquisição), e sistemas de pensamento africanos que enfatizariam o bem estar comum, percebe a derrota deste, no seu entender temporária, com a saída de cena de Domingos Álvares. A sua resistência em voltar a atenção para os processos de diálogo cultural não permite que invista na análise do que a história que nos conta aponta com mais força, ou seja, a maleabilidade do comportamento de Domingos Álvares e a sua capacidade de perceber rapidamente o mundo que o cerca, adaptar-se a ele e buscar formas de integração que comportam práticas e comportamentos de sua sociedade de origem.

Ao ignorar o caminho que considera o compartilhamento de códigos culturais na formação de um mundo atlântico e enveredar pelo que ressalta o confronto entre eles, força uma análise segundo a qual a contribuição africana, fundada no enfrentamento das vicissitudes pela perspectiva da cura, teria antecipado a contestação à escravidão e ao imperialismo que surgiria mais tarde, resultante do humanitarismo e das ideias relativas às liberdades individuais. Por esse caminho reivindica um lugar para a contribuição africana no desenvolvimento de posturas humanistas, para as quais seriam sempre apontadas apenas as contribuições europeias e americanas, e entende Domingos Álvares como um típico exemplar da modernidade, ao mesmo tempo que feroz oponente do mundo capitalista, em formação à época em que viveu. Ao deixar de explorar os processos pelos quais as contribuições africanas formaram o mundo atlântico na medida em que participaram de um diálogo, mesmo ocupando o lugar de dominados, busca identificar essa contribuição na linguagem gestada a partir do pensamento ocidental, identificando nas tradições africanas elementos de modernidade antes que esta se constituísse enquanto tal. Proposta certamente ousada e não destituída de interesse, não chega a ser plenamente convincente ao tomar como base para sua defesa a vida de Domingos Álvares, pela qual somos magistralmente conduzidos pela sua perícia de narrador e pesquisador.

Marina de Mello e Souza – Departamento de História da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP, São Paulo – SP, [email protected].

Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos | Eduardo França Paiva

A partir dos anos 1980 a historiografia brasileira passou por um processo de renovação, revisitando a história do Brasil sob um novo enfoque e trazendo à tona elementos que antes eram quase invisíveis para ela. Essa nova historiografia passou a dar visibilidade a diversos agentes sociais enquanto participantes de processos históricos, observando suas dinâmicas cotidianas que, por sua vez, evidenciam a complexidade das relações entre os mais diversos grupos sociais. É, portanto, a partir de uma nova perspectiva teórica e metodológica, de um novo olhar e de novas questões que tais agentes, até então desconsiderados ou considerados irrelevantes para os processos históricos e identitários, foram visibilizados pela historiografia.

O livro Escravos e Libertos nas Minas Gerais do Século XVIII: Estratégias de Resistência Através dos Testamentos, de autoria do historiador Eduardo França Paiva, apresenta agora sua terceira edição, e é caudatário dessa transformação na perspectiva historiográfica. A primeira edição da obra resultou de pesquisa de mestrado desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em História e defendida ainda na década de 1990 na Universidade Federal de Minas Gerais – instituição em que, atualmente, o autor é professor do Departamento de História. Estudando o sistema escravista, o autor focaliza três aspectos que seriam peculiares às Minas Gerais do XVIII: “o processo de libertação do escravo, o papel desempenhado pelo elemento forro – sobretudo a mulher – na organização socioeconômica da capitania e o exame das relações sociais retratadas nas nossas principais fontes de pesquisa, isto é, os testamentos” (PAIVA, 2009, p.34). Leia Mais

Calabouço urbano. Escravos e libertos em Porto Alegre (1840-1860) | Valéria Zanetti

Em nossa formação como nação, como povo e como Estado a colonização e a escravidão foram fundamentais e sob muitos aspectos ainda estão presentes em seus prolongamentos. A escravidão permanecendo bem além da constituição do Estado nacional e do surgimento de um novo ente político, cultural, social e econômico: a Nação brasileira.

Sob as mais diversas visões interpretativas e com maior ou menor solidez de pesquisa documental, ambas – colonização e escravidão – foram desde logo objeto de estudos históricos muitos dos quais se tornaram referências obrigatórias na historiografia brasileira. Não podia ser diferente, mesmo de um ponto de vista teoricamente pouco ambicioso, devido, entre outros fatores, a união intrínseca entre colonização e escravidão e a longa duração de ambas por mais de quatro séculos para a primeira e quase cinco séculos para a segunda. A escravidão sobreviveu ao fim do Antigo Sistema Colonial e continuou sendo o fundamento das relações sociais de produção do Império do Brasil. Todas as tentativas iniciais feitas para desvincular a nova Nação da escravidão fracassaram sob a força avassaladora da herança colonial escravista. Assim o Império do Brasil assentou sua modernidade na manutenção de uma estrutura econômica e social arcaica. Conheceu uma nova inserção na economia internacional absorvendo várias das inovações tecnológicas oriundas da revolução industrial: navegação a vapor, estradas de ferro, cabo submarino para a comunicação com a Europa e a América do Norte, fotografia, telefone, imprensa de massa. No plano político nasceu como uma nação constitucional, com divisão de poderes, limitações ao poder imperial, declaração de direitos de cidadania, liberdade de imprensa, vida social e cultural burguesa. Mas, convivendo com tudo isto no plano das estruturas materiais e das estruturas da política e da cultura, lá estava presente a escravidão. Não é, naturalmente, fortuito, que o final do Império tenha se dado pouco depois do fim da escravidão, embora esta quase coincidência não possa e não deva ser vista como uma causalidade mecânica. A relação entre os dois acontecimentos é mais profunda e, sob muitos aspectos, não deve ser tomada em desfavor das realizações reformistas do Império. Mas esta questão nos levaria longe do objeto e do objetivo desta resenha: a escravidão urbana em Porto Alegre e, por extensão no Brasil, a partir do livro de Valéria Zanetti, aqui examinado.

A grande teia das relações escravistas que cobriu, com intensidade diversa, todo o território colonial e nacional até sua extinção tinha duas grandes expressões espaciais: a rural e a urbana. A primeira numericamente mais importante propiciou a inserção da colônia e depois do Império independente, na economia mundial. Foi, em sua fase colonial, essencial para o enriquecimento da metrópole e de suas camadas mercantis, burocráticas clericais e fradescas e do Estado monárquico português. Foi, ainda, fundamental no processo de acumulação primitiva que está na base da formação do capitalismo e da eclosão da revolução industrial do século XVIII. A escravidão urbana, mais voltada para a acumulação interna, foi, sobretudo, a escravidão dos indispensáveis serviços domésticos quando a tecnologia do cotidiano dependia em larga medida da força física: abastecimento de água e lenha, limpeza dos excrementos humanos, limpeza do lixo, transporte de alimentos, de diversas mercadorias, de móveis e mesmo de pessoas. Mas ela esteve, também, presente, no comércio urbano de miudezas, de alimentos, de bebidas. No transporte costeiro e fluvial. Produtores de renda para seus senhores, escravos e escravas urbanos foram utilizados sob a dupla forma de escravos de aluguel e de escravos de ganho. Vista no longo prazo percebemos que, ao contrário de arrefecer com a Independência e com o crescimento de uma vida urbana de recorte mais burguês, ela se intensificou. O auge da escravidão urbana no Brasil corresponde justamente aos anos de consolidação do Império e ao seu apogeu.

Durante anos, mais ou menos ignorada pela historiografia ou mitificada como mais suave, a escravidão urbana no Brasil tem sido objeto de novos e importantes estudos, que tem promovido uma verdadeira renovação do conhecimento da história brasileira em seu conjunto. Neste processo de renovação muitos são os autores e livros a serem citados. Para não cometer injustiças e omissões deixamos de mencioná-los aqui, mas o leitor encontrará boa parte deles nas referências presentes no livro de Valéria Zanetti. Que passaremos agora a examinar mais detidamente. Situando-se com originalidade na renovadora historiografia da escravidão no Brasil Valéria Zanetti nos deu um livro vigoroso, solidamente fundamentado em pesquisas de ricas fontes primárias e utilizando o melhor das referências então disponíveis. Com pleno domínio da boa escrita histórica. O que significa que a leitura é feita com agrado, além de proveito, tanto por especialistas quanto por não especialistas, o que não é pouco.

Com este livro tomamos conhecimento da escravidão urbana na Porto Alegre e arredores entre os anos 1840-1860. A autora reforça a revisão de um equívoco por vezes ainda corrente: a da pouca presença do escravo no Rio Grande do Sul. Para tanto os dados quantitativos são, naturalmente, essenciais. Ficamos assim sabendo que mesmo após o fim do tráfico a partir de 1850, o número de escravos no Rio Grande do Sul aumentou. Informação importante que significa a existência de um dinamismo econômico que necessitava do aporte de mão de obra escrava através do comércio interprovincial de escravos. Mas, os essenciais dados quantitativos são aqui a base de uma trama qualitativa de grande riqueza. Para tanto contribui em muito o uso de depoimentos de viajantes e observadores locais, do noticiário dos jornais e dos processos judiciais. As ilustrações foram escolhidas com critério, enriquecem o texto, complementando-o.

Acomodação, negociação, alimentação, vestuário, doenças, folguedos, ofícios e ocupações de escravos e escravas, feitiçarias, estupros prostituição, devoção, controle, traições, atração erótica da mulher negra, assassinatos, conflito violência, criminalidade, roubos, suicídios, resistência, sob as mais diversas formas, (in) justiça senhorial, são algumas expressões e temas estudados ao longo do livro e que registram com acuidade a presença e o modo da presença de escravos e escravas no meio urbano de Porto Alegre de meados do século XIX. Expressões e temas que podem ser aplicados às principais cidades brasileiras do período, o que situa este livro não apenas como uma valiosa contribuição para a história de Porto Alegre, mas para a história do Brasil. A enunciação dos títulos dos seus vários capítulos dará ao leitor uma idéia dos diversos aspectos da escravidão em Porto Alegre no período estudado por Valéria Zanetti: 1. O gado, a terra e o homem, 2. Porto Alegre: origem e povoamento, 3. Violência no passado, amenidades no presente: as visões da historiografia acerca do escravo urbano, 4. Crimes de escravos e libertos em Porto Alegre, 5. Vivendo em conflito e em solidariedade, 6. Vida amorosa, familiar e manifestações culturais de escravos e libertos em Porto Alegre, 7. Poder e contrapoder: resistência do escravo urbano.

Finalizemos esta breve resenha com um trecho do livro para que o leitor tenha a vontade, da qual não se arrependerá, de conhecer o livro em sua inteireza:

“A visão de que os cativos urbanos eram bem alimentados, vestiam-se adequadamente e viviam em harmonia com os senhores não combina com a informação documental. Involuntariamente, os anúncios sobre fugas na imprensa denunciam a verdadeira condição de existência civil. Arsène Isabelle esteve na província e não partilhou da visão otimista, registrando em seu diário as violências cometidas pelos senhores. Segundo Isabelle, os senhores gaúchos tratavam seus cativos como se tratavam os cães: ‘Começam por insultá-los. Se não vêm imediatamente, recebem duas ou três bofetadas da mão delicada de sua senhora […] ou ainda um rude soco, um brutal pontapé de seu grosseiro amo. Se resmungam, são ligados ao primeiro poste e então o senhor e senhora vêm com grande alegria no coração, para ver como são flagelados, até verterem sangue aqueles que não têm, muitas vezes, outro erro que a inocência de não ter sabido adivinhar os caprichos de seus senhores e patrões’.

Ao percorrer as páginas deste livro, sob muitos aspectos fascinantes, não podemos deixar de pensar que muitos dos antigos males da escravidão não compõe apenas o nosso passado. Renovam-se cotidianamente em nossa (in) justiça de classe, ainda senhorial, na precariedade das diversas formas de trabalho nas áreas rurais e urbanas, na precariedade dos direitos, nas discriminações de gênero, na exploração do trabalho infantil, em renovadas formas de trabalho escravo, na violência a que está submetida a população pobre do campo e das cidades, especialmente dos descendentes diretos dos antigos escravos, nos privilégios incrustados no Estado, na sua captura pelos interesses privados.

Livros como este mostram como a boa história é sempre libertadora e não faz uma limitada e equivocada separação entre o passado e o presente. Por isso a grande mídia conservadora a ignora, promovendo best sellers que veiculam uma visão pitoresca e caricatural do nosso passado. Visão que serve apenas para acomodar os leitores na visão de que nada mudou e nada mudará.

Nota

1. Home Page: www.upf.tche.br/editora. E-mail: [email protected]

Denis Antônio de Mendonça Bernardes – Universidade Federal de Pernambuco.


ZANETTI, Valéria. Calabouço urbano. Escravos e libertos em Porto Alegre. (1840-1860). Apresentação de Mário Maestri. Passo Fundo: Editora Universitária; Universidade de Passo Fundo1, 2002. (Coleção Malungo, 6). Resenha de: BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.2, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

Visões da Monarquia. Escravos, operários e Abolicionismo na Corte | Ronaldo Pereira de Jesus

Os estudos sobre a sociedade imperial do Brasil baseados em critérios de estratificação social de classe, desde sempre, é fato, ressoavam as concepções de mundo das classes dirigentes ou “dominantes”, ou “superiores”. Tal se dava seja porque se enaltecia, num primeiro momento, a “obra virtuosa” de edificação da Nação-Estado monárquica levado a cabo por sua diligente elite política; seja, depois, devido à análise crítica do papel dessas mesmas elites imperiais e sua obra: 1) a edificação do aparato jurídico do Estado pelos homens de letra e lei imperiais, consubstanciada em seus diplomas magnos que são a Constituição de 1824, o Código Criminal de 1830, o do Processo Criminal de 1832 e o Código Comercial de 1850; 2) a construção de uma identidade nacional, costurada em ponto-cruz pelos artistas, com grande peso dos escritores, sob a luz romântica do século (aqui, de nosso romantismo indianista); e, 3) a direção política da máquina governamental, em particular durante o segundo reinado, sob a tutela da indefectível mão paternal do summa potestas imperial.

Pelo menos desde os anos 1980, porém, sob influência da recepção das diversas matrizes do que se batizou de history from Below ou history from the bottom up, em particular da história social britânica de E. P. Thompson e Eric Hobsbawm mas igualmente de outras vertentes da história cultural que têm as camadas populares como sujeitos privilegiados de análise, como a micro- história italiana, os historiadores brasileiros procuraram expandir os horizontes das concepções ou visões de mundo constitutivas dessa heterogênea sociedade brasileira do século XIX, um mosaico complexo e que se torna complexo devido à sobreposição de critérios de identidade dos indivíduos, que misturam elementos de caráter jurídico (escravos, forros, livres), de caráter político (baseada em padrões censitários como cidadãos ativos, não-ativos e não-cidadãos), de estratificação social de classe (escravos, senhores, trabalhadores livres), de estratificação social de ordem (religiosos, militares aristocratas, trabalhadores), e, como ainda acontece no Brasil errante de hoje, critérios de identidade étnica (pretos, brancos, índios, pardos (?)). Em verdade, essa historiografia renovadora que surgiu nos anos 1980 foi mais bem sucedida quando identificou seus sujeitos (não ousaria dizer aqui “objetos”) de estudo a partir de critérios de estratificação de classe, nomeadamente os escravos no século XIX. Nomes justamente conspícuos, modelares de nossa historiografia, como Kátia Mattoso, João José Reis, Eduardo Silva, Silvia Hunold Lara, Luiz Geraldo Silva, Manolo Florentino e tantos outros aqui deram e dão enorme contribuição. Porém, a rigor, não me vem à mente estudo bem sucedido quando aqueles critérios se diluem, trabalho que resta por fazer.

O livro de Ronaldo Pereira de Jesus soma-se a esse esforço coletivo de nossa historiografia no sentido do resgate dos modos de ver a instituição monárquica e a figura do imperador de uma perspectiva from below, do ponto de vistas das camadas populares. Este talvez seja um dos grandes desafios que não apenas Ronaldo Pereira, mas todos os pesquisadores que compartilham desta perspectiva enfrentam, ou seja, a definição criteriosa do que se encontra below: entre vários, o autor opera com termos como “população pobre”, “classes populares”, “camadas populares”, “gente comum”, “povo”, “setores subalternos” (no prefácio ao livro, Sidney Chalhoub fala da “gente miúda”). A composição desse segmento só pode ser abrangente, para conter “o setor mais diretamente ligado ao cativeiro, composto por escravos e libertos, negros e mulatos” (p.10). A estes se somam os “homens livres pobres (miseráveis, mendigos, ‘vadios’ ou ‘desclassificados’)”. Devem compor a “gente comum”, ainda, pequenos comerciantes, artesãos, “executores de ofícios indignos”, militares de baixa patente, funcionários públicos de baixo escalão e operários. Por certo que há subjacente um desafio metodológico. As “elites”, por mais ambíguo que seja este conceito mesmo, deixaram registros de sua experiência. O investigador pode mesmo nomear os membros das elites (sejam estas elites políticas, intelectuais, econômicas ou qualquer outro recorte); pode agrupá-los, pode resgatar sua rede de relações. Há tanto documentação como metodologia para isso (prosopografia, por exemplo). Trata-se daquela famosa metáfora brechteana: sabemos quase tudo do faraó de tal pirâmide, mas muito pouco dos escravos que a levantaram. De modo que as visões de mundo dessas classes subalternas chegam-nos muita vez enviesadas, por terem sido registradas pelos vencedores e produtores da memória oficial.

Porém subjazem aí, também, duas questões de ordem teórica: primeiramente, no que tange ao caráter generosamente inclusivo desse conceito de “pessoas comuns”. Compartilhariam todos aqueles segmentos das mesmas visões da monarquia? Em segundo lugar, não obstante o autor expressar sua opção pela análise da diferenciação social de classes e da dinâmica da relação entre elas, ao evocar a brilhante análise da “dialética da malandragem” de Antonio Candido sobre os três mundos (do trabalho, da ordem e da desordem) que justamente ordenavam o universo social das Memórias de um sargento de milícias, o autor ancora sua análise numa estrutura teórica que concebe a sociedade escravista monárquica em sua divisão em ordens e não em classes. O que, a meu ver, é efetivamente mais profícua para seus propósitos e lhe oferece bons frutos, ainda que persista a tensão conceitual.

Muito sagaz e bem realizada é a forma como Ronaldo Pereira de Jesus estruturou sua pesquisa e construiu sua narrativa. Depois de uma exaustiva recensão bibliográfica, as visões da monarquia, do monarca e do governo imperial (que muitas vezes se confundem), foram criteriosamente pesquisadas em diversos e complementares fundos documentais. Dentro do sistema paternalista em que se erigia a monarquia brasileira, os súditos recorriam à coroa para todo tipo de benefício pessoal. Num universo imenso de súplicas dirigidas ao monarca para obtenção de todo tipo de graça (prática comum desde o reinado de D. João e mesmo antes, na história da monarquia portuguesa), o autor coligiu as súplicas dirigidas ao monarca pelas pessoas comuns, lavradas cunho próprio ou por terceiros. Em seguida, procurou depurar aquelas visões da monarquia inscritas nas homenagens dirigidas à Coroa por inúmeras corporações de ofício e associações profissionais, de classe ou beneficentes (de auxílio mútuo, por categorias sócioeconômicas). Aqui, o autor sugere a existência do movimento de um proto-operariado organizado e portador de uma consciência de classe que, sábia de seus direitos, pugnava por estes direitos junto ao Estado (por isso, com Fausto, denomina-o “estatista”), desenvolvendo “práticas de contestação aliadas a uma discursividade radical ao longo da segunda metade do século XIX” (p.96).

As visões da monarquia são perscrutadas, em seguida, em três movimentos importantes do Segundo Reinado, como são a Revolta do Vintém, o Abolicionismo e os impactos da Abolição da escravidão propriamente dita sobre as visões da gente comum sobre a realeza. Um dos capítulos mais saborosos do livro, a narrativa sobre a Revolta do Vintém permite ao autor perceber uma alteração de percepção da monarquia, de protetora e paternal para sua crítica contumaz, que chega à mobilização coletiva e violenta, ao gosto dos riots estudados por Rudé e Hobsbawm. Para o autor, a Revolta do Vintém ensejou mesmo a “alteração radical e momentânea das atitudes e expectativas diante do regime político e do imperador”, mais do que “uma mudança significativa e duradoura no imaginário popular e nas representações das pessoas comuns acerca da Monarquia. A recuperação da participação popular (singela!) no movimento abolicionista, levada a cabo nas conferências realizadas na Corte nos momentos decisivos da campanha (1885-1887), nos festivais abolicionistas e na mobilização efetivamente popular consiste numa das grandes contribuições de toda a obra. Embora constatando que o Abolicionismo, como movimento formador de opinião pública, foi definitivamente um movimento de elite, o autor conclui “supondo que a profusão de imagens negativas do imperador e do regime monárquico abalou consideravelmente as percepções positivas do imperador e da monarquia entre as pessoas comuns da corte” (p.163). Porém, independentemente dessa gradação valorativa e essa é a tese recorrente do livro, para além dela subsistiria entre a gente comum da corte “o pragmatismo, a indiferença e o afastamento de sempre”. Ou seja, as pessoas comuns pouco se deixavam “contaminar” pelas visões positivas da monarquia e do monarca, como “pai dos pobres”, benevolente e justo estas sim imagens difundidas pelas camadas dominantes. Assim também, pouco alteraria o quadro a “outorga” da libertação dos escravos pela Princesa Izabel, já que todas as festas da abolição foram manifestações públicas das classes escravistas e de setores médios urbanos, expressões de “alívio e entusiasmo por não mais habitar um país escravista” (p.173). O povo, a gente comum, não foi senão espectador nessa festa. Espectador bilontra, mas espectador.

Afora pouquíssimos ruídos de edição, o texto de Ronaldo Pereira de Jesus é muito bem cuidado, bem escrito, prazeroso. Seu livro expressa mais uma contribuição séria e bem executada deste importante setor da historiografia brasileira que se dedica a escrever a história daqueles sujeitos que foram insistentemente esquecidos por ela.

Jurandir Malerba – Professor no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (FFCH/PUC-RS – Porto Alegre/Brasil). E-mail: [email protected]


JESUS, Ronaldo Pereira de. Visões da Monarquia. Escravos, operários e Abolicionismo na Corte. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009. Resenha de: MALERBA, Jurandir. Vossa Alteza, vista cá debaixo. Almanack, Guarulhos, n. 1, p.162-164, jan./jun., 2011.

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El sistema legal y los litigios de esclavos en Indias (Puerto Rico – Siglo XIX) – CARLO-ALTIERI (M-RDHAC)

CARLO-ALTIERI, Gerardo A. El sistema legal y los litigios de esclavos en Indias (Puerto Rico – Siglo XIX). Sevilla: Consejo Superior de Investigaciones Científicas; Ediciones Puerto, 2010. 191p. Resenha de: CUNILL, Caroline. Memorias – Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe, Barranquilla, n.14 Barranquilla jan./jun. 2011.

Al articular en un análisis riguroso aspectos legales, políticos, económicos y sociales, en el presente libro Gerardo Carlo-Altieri ahonda de forma significativa en el conocimiento de la litigación de los esclavos puertorriqueños del siglo XIX. El sistema legal y los litigios de esclavos en Indias (Puerto Rico -Siglo XIX) se inserta, por lo tanto, en una corriente historiográfica de corte muy reciente que se ha centrado en las relaciones entre las minorías étnicas y la justicia en América desde el periodo colonial hasta la actualidad.

Para comprender la relación que los esclavos mantuvieron con el sistema judicial, el autor se interroga sobre tres puntos: las herramientas legales de que disponían para comparecer ante la justicia, la forma en que las utilizaron para defender sus intereses y, finalmente, las consecuencias políticas que el uso cada más frecuente de los tribunales por los esclavos pudo tener en el proceso de emancipación de la isla.

El libro se divide en dos partes: en la primera, Carlo-Altieri analiza con gran precisión el complejo andamiaje legal relativo a la esclavitud, mientras que en la segunda se detiene en el examen de varios pleitos que involucraron a los esclavos puertorriqueños en el siglo XIX. Para ello utiliza un gran número de documentos legales -cedularios, instrucciones, bandos, etc.- y de expedientes judiciales, sacados de los archivos tanto nacionales (Archivos Municipales de Vega Baja y Manatí, Archivo General de Puerto Rico), como españoles (Archivo Histórico Nacional, Archivo General de Indias).

Sin entrar en detalles acerca de las numerosas aportaciones del libro, señalaremos únicamente las que, a nuestro juicio, resultan ser más novedosas. Carlo-Altieri muestra que, al ofrecer a los esclavos un grado mínimo de protección, el Reglamento de Esclavos de 1826, inspirado en la Instrucción sobre la esclavitud en Ultramar que la Corona pretendió implantar sin éxito en 1789, brindó a los esclavos las herramientas necesarias para acudir ante la justicia. En los siglos anteriores, la ausencia de disposiciones abarcadoras y la multiplicidad de las fuentes de derecho en asuntos esclavistas habían desembocado, en efecto, en la conformación de un cuerpo legal desarticulado, favoreciendo la multiplicación de los abusos perpetrados casi siempre directamente por los propios amos.

El autor también advierte que el hecho de que en Puerto Rico el poder judicial estuviera durante años en manos del poder ejecutivo también dificultó el acceso de los esclavos a la justicia. Por esta razón, la creación en 1831 de la última Real Audiencia de América, localizada y con jurisdicción exclusiva sobre Puerto Rico, favoreció a los esclavos querellantes, puesto que si un litigio no se resolvía de forma favorable a una de las partes ante los jueces ordinarios, tendría oportunidad de ventilarse en grado de apelación ante los oidores. Además, a partir de 1833 el Real Acuerdo empezó a dictar autos que vinieron a interpretar y sirvieron para implantar el Reglamento de esclavos de 1826. Finalmente, esclarece el papel desempeñado por intermediarios como el síndico de esclavos en el acceso de los mismos al sistema de justicia.

No obstante, como lo señala Carlo-Altieri, estas nuevas condiciones no evitaron que surgieran conflictos jurisdiccionales entre el poder judicial y el poder ejecutivo, dado que el miedo a los levantamientos justificó la frecuente intervención de los militares para sentenciar delitos cometidos por los esclavos puertorriqueños. En efecto, más allá de la esfera estrictamente legal e institucional, el autor ahonda en las dimensiones cultural, política y socioeconómica en juego en la configuración de las relaciones entre los esclavos y el sistema de justicia.

Muestra, por ejemplo, que la necesidad de mano de obra esclava, por un lado, y la aceptación del derecho de acumular bienes propios que tenían los siervos, por otro, también constituyeron factores que deben tomarse en cuenta para explicar el uso de los tribunales por parte de los esclavos y, sobre todo, el tipo de quejas que éstos presentaban. El libro también reivindica el peso que pudo tener la resistencia “legal” protagonizada por los esclavos, con las escasas y rudimentarias herramientas de que disponían en la historia de la emancipación de la isla, un tema que fue poco contemplado por la historiografía.

En definitiva, Carlo-Altieri no sólo nos proporciona esclarecedoras consideraciones sobre la construcción de un andamiaje legal dúctil en asuntos esclavistas, sino que también reflexiona acerca del papel que pudieron desempeñar instituciones como la Real Audiencia de Puerto Rico en la evolución de la litigación de los esclavos. Tampoco se olvida del protagonismo de los mismos esclavos en la configuración de los intereses políticos y económicos en juego a lo largo del siglo XIX. El libro ofrece la posibilidad de establecer provechosas comparaciones con el margen de negociación de que gozaron los indígenas en el periodo colonial y de reflexionar sobre el rol de las instituciones y de los intermediarios como los síndicos de esclavos y los protectores de indios en el acceso de las “minorías étnicas” al sistema de justicia.

Caroline Cunill – Université de Toulouse II-Le Mirail.

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A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário – LINEBAUGH; REDIKER (Tempo)

LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Tradução de Berilo Vargas. Resenha de: ALADRÉN, Gabriel. História atlântica vista de baixo: marinheiros, escravos e plebeus na formação do mundo moderno. Tempo v.16 no.30 Niterói  2011.

“Deus não é respeitador de Pessoas”: evocando essa passagem bíblica, os Diggers3 lutavam contra o cercamento dos campos na Inglaterra. A frase tinha uma conotação universalista que remontava às origens do cristianismo e advertia que Deus não diferenciava a humanidade por critérios de raça, etnicidade, classe, gênero ou nação. A terra seria uma criação divina e seu uso comunitário deveria ser livre para todos, de forma igualitária, “sem respeitar pessoas”. Versões semelhantes apareciam nas palavras de homens e mulheres que integravam grupos religiosos dissidentes durante a Revolução Inglesa.

Suas ações fizeram parte da resistência do proletariado atlântico ao processo de formação do capitalismo global nos séculos XVII e XVIII. Essa “história oculta do Atlântico revolucionário” é o tema do livro de Peter Linebaugh e Marcus Rediker, A hidra de muitas cabeças, publicado originalmente no ano 2000 e trazido ao público brasileiro em uma bela edição da Companhia das Letras.

Trata-se de um livro inovador, narrado com maestria e paixão e lastreado em uma sólida pesquisa documental. Sua metodologia e estrutura de apresentação são originais. Os autores percorrem casos de motins, revoltas, conspirações e situações que expressam a oposição das classes populares ao nascente capitalismo inglês, construindo uma história do Atlântico vista de baixo.

Para simbolizar esse confronto, Linebaugh e Rediker recorrem ao mito clássico de Hércules. Políticos, filósofos e proprietários o usaram como um emblema do poder e da ordem, no qual seus doze trabalhos representavam o desenvolvimento econômico. O segundo trabalho de Hércules foi a destruição da hidra de Lerna, um monstro de várias cabeças, as quais renasciam constantemente quando decepadas.

Da expansão colonial inglesa aos primórdios da industrialização no século XIX, “os governantes usaram o mito de Hércules e da hidra para descrever a dificuldade de impor a ordem em sistemas de trabalho cada vez mais globais, apontando aleatoriamente plebeus esbulhados, delinquentes deportados, serviçais contratados, extremistas religiosos, piratas, operários urbanos, soldados, marinheiros e escravos africanos como as cabeças numerosas e sempre cambiáveis do monstro” (p. 12).

Ao adotar um ângulo de visão inusitado e ao utilizar com criatividade fontes de natureza variada, os autores demonstram a existência de conexões raramente observadas entre histórias a princípio tão diversas como a dos grupos radicais na Revolução Inglesa, dos náufragos nas primeiras expedições colonizadoras da Virgínia, dos maroons jamaicanos, dos escravos rebeldes e dos servos irlandeses no Caribe, dos piratas e marinheiros, dos conspiradores das cidades portuárias do Atlântico e dos operários ingleses. O impacto do livro na historiografia é significativo e será duradouro, em especial para os estudos sobre a Idade Moderna e para a história do trabalho, pois ele descortina uma perspectiva toda nova para a análise da expansão capitalista e das origens da classe operária.

Um de seus maiores méritos é o de realizar uma genuína história atlântica, na qual os diferentes fatores que condicionam a formação do capitalismo são integrados em uma análise densa e apresentados com uma narrativa primorosa. Em cada um dos casos discutidos ficam claras as forças transnacionais e a circulação de experiências que influenciaram as ações e os anseios revolucionários do proletariado atlântico.

Sublinhar isto não é de menos importância, pois atualmente há uma certa avidez entre os historiadores por vincular seus trabalhos ao rótulo da história atlântica, sem que necessariamente empreguem metodologias e formulem problemas de pesquisa que efetivamente transcendam os quadros nacionais ou, na melhor das hipóteses, imperiais. Tal movimento é salutar na medida em que exige o redimensionamento dos esquemas conceituais de fenômenos históricos usualmente explicados a partir de cadeias de causalidade circunscritas, mas muitas vezes serve apenas para apresentar temas e abordagens tradicionais – e nem por isso menos meritórias – em novas roupagens.4

Isso posto, é necessário fazer uma ressalva ao caráter atlântico do livro, especialmente para os pesquisadores da América do Sul e particularmente do Brasil. Na verdade, se trata de uma história do Atlântico Norte de língua inglesa o que, aliás, é reconhecido pelos próprios autores.

No Atlântico Norte operava o chamado comércio triangular, que conectava os portos ingleses, africanos e americanos e seguia as correntes marítimas que partiam da Europa, passavam pela costa da África e atingiam o Caribe, retornando depois ao noroeste europeu. Tal sistema não gerava simplesmente uma articulação mercantil transoceânica, mas também possibilitava o contato de pessoas de diferentes sociedades que compartilhavam ideias e experiências e criavam novas formas de comunicação e cooperação. Essa circulação levava as ondas revolucionárias e as tradições proletárias, sempre recriadas em cada contexto por novos sujeitos, a todas as margens do Atlântico Norte, acompanhando o fluxo das marés e das transações comerciais.

No Atlântico Sul, funcionava um sistema diferente.5 Desde o século XVII, o tráfico negreiro assentava-se na base de um comércio bilateral, que unia a América portuguesa diretamente à África – em especial o Rio de Janeiro a Luanda e Salvador à Costa da Mina. Essa ligação foi duradoura, passou praticamente incólume pela independência do Brasil e só foi ser rompida com o término do tráfico atlântico em 1850.6 A veiculação de ideias e tradições de resistência no Atlântico Sul passava mais por essa comunicação direta entre Brasil e África do que por rotas triangulares que eram típicas do sistema mercantil do Atlântico Norte.7

Outro  ponto  importante  é  a  discussão  sobre  o  proletariado  atlântico, um conceito chave do livro. Linebaugh e  Rediker  partem  de  Marx  para  ir além, encontrando conexões e vínculos insuspeitados e até uma espécie de consciência   coletiva   contra-hegemônica  –  no  que  às  vezes  incorrem  em certo impressionismo – entre os trabalhadores das diferentes partes do império britânico. O proletariado atlântico era constituído de camponeses ingleses expropriados,   ameríndios   inseridos em regimes de trabalho compulsório, africanos escravizados, marinheiros de diversas  nações  e  indentured servants irlandeses.  Homens  e  mulheres  que não eram, necessariamente, indivíduos livres vendendo sua força de trabalho em troca de salário, conforme a acepção mais restrita de Marx.

A ousadia de incluir trabalhadores tão distintos – sob critérios étnicos, raciais, nacionais, culturais e jurídicos – em um mesmo conceito é uma das forças do livro. Permite que se faça uma leitura ampla da história do mundo atlântico e se identifiquem relações geralmente encobertas entre as diversas formas de exploração do trabalho que foram cruciais para a gênese da modernidade.

Nesse sentido, o livro navega na tradição teórica que enfatiza as relações entre modernidade, capitalismo e escravidão.8 Um de seus mais notáveis representantes é C.L.R. James, que há muito divisou a proximidade das condições dos escravos das plantations com o proletariado moderno.9 No entanto, essa identificação era pensada por James em uma chave de leitura mais convencional, na medida em que ele considerava que os escravos antecipavam as experiências coletivas dos proletários – e aqui pensava em trabalhadores fabris –, mas não se confundiam com eles.10

Na conclusão, Linebaugh e Rediker apresentam uma síntese da constituição histórica do proletariado no Atlântico Norte. Na primeira fase, de 1600 a 1640, o capitalismo surgiu na Inglaterra e se expandiu via comércio e colonização, deixando para trás uma massa de plebeus expropriados transformados em proletários na África, na Irlanda, na Inglaterra, no Caribe e na América do Norte. Na segunda fase, de 1640 a 1680, o espectro da resistência se ergueu, inicialmente com a revolução na metrópole e posteriormente com as revoltas de escravos africanos e indentured servants em Barbados e na Virgínia. Suas derrotas abriram caminho para a estruturação do tráfico negreiro britânico na África Ocidental e para a montagem das plantations nas colônias.

A terceira fase, de 1680 a 1760, foi marcada pela consolidação do capitalismo atlântico, baseado na organização de um Estado marítimo inglês que garantia política e militarmente os capitais que operavam no lucrativo comércio colonial. Nesse cenário, o controle da mão-de-obra dos navios mercantes e da marinha de guerra tornou-se fator decisivo, e o uso da violência e do terror passou a ser fundamental no recrutamento de marinheiros e na repressão aos motins nos portos e em alto mar.

Em oposição à rígida hierarquia do Estado marítimo, os piratas construíram uma ordem alternativa e democrática que ameaçou a estabilidade do comércio britânico no Caribe e na costa africana. As várias gerações de piratas e marinheiros rebeldes foram reprimidas até serem silenciadas na década de 1720.

As lutas do proletariado atlântico passaram a se manifestar no ciclo de rebeliões escravas caribenhas nas décadas de 1730 e 1740 e culminaram com uma conspiração na zona portuária de Nova York em 1741, da qual participaram soldados, marujos e escravos irlandeses, hispano-americanos e africanos, que foram chamados pelas autoridades de “os párias das nações da Terra”.

A quarta e última fase ocorreu entre 1760 e 1835. Na Jamaica, a Revolta de Tacky envolveu quilombolas e escravos e assustou os proprietários das plantations. Na América do Norte, a horda heterogênea de marinheiros, escravos e negros livres lutou para marcar a Revolução Americana com um caráter abolicionista, mas foi contida pelos pais da pátria que arquitetaram uma república escravista. Na década de 1790, uma segunda onda de revoltas estourou na América e na Europa e contribuiu para difundir os direitos do homem e, a longo prazo, para abolir o tráfico e a escravidão.

A “era das revoluções” foi o canto do cisne do proletariado atlântico. A industrialização metropolitana, a construção dos estados nacionais e a repressão à revolução no Haiti concorreram para quebrar seus vínculos e bases materiais. A formulação da ideia biológica de raça e da categoria política e econômica de classe em fins do século XVIII expressa a divisão, que se aprofundaria nas décadas subsequentes, entre os operários brancos ingleses e os escravos negros nas Américas.

A historiografia sobre a classe operária costuma iniciar daí, sem observar que em suas origens, as aspirações dos operários ingleses estavam profundamente carregadas de uma dimensão atlântica. Linebaugh e Rediker formulam uma crítica às narrativas dominantes sobre o tema, sobretudo à influente obra de E.P. Thompson11, por apenas identificarem as tradições estritamente nacionais que conformaram a classe operária na Inglaterra. Essa crítica é ilustrada pela análise da conspiração de Edward e Catherine Despard e da Sociedade Correspondente de Londres, fundada por Thomas Hardy.

Edward Marcus Despard era irlandês, coronel do exército britânico e servira na Jamaica, na Nicarágua e em Belize, antes de retornar a Inglaterra e ser executado em 1803, sob acusação de ter planejado um atentado contra o rei. Catherine, sua esposa, era uma afro-americana que o conhecera no Caribe. Juntos chegaram a Londres no ano de 1790, e naquela década turbulenta, participaram do movimento abolicionista que então entusiasmava os trabalhadores ingleses. Linebaugh e Rediker argumentam que os Despards compartilhavam, junto com pessoas como o poeta William Blake, Thomas e Lydia Hardy, o escritor C.F. Volney e os ex-escravos abolicionistas Olaudah Equiano e Ottobah Cugoano, uma concepção de liberdade e igualdade universais, expressa na ideia de “raça humana”, em oposição aos critérios de raça e nação que estavam se impondo.

Thomas e Lydia Hardy e Olaudah Equiano eram amigos e viveram juntos entre 1790 e 1792. Quando Thomas fundou a Sociedade Correspondente de Londres, evento considerado por Thompson como um marco na formação da classe operária inglesa, pediu auxílio a Equiano para estabelecer contatos em Sheffield. No início, a Sociedade tinha entre seus objetivos o combate à escravidão e a luta pela igualdade de todos “fossem negros ou brancos, superiores ou inferiores, ricos ou pobres” (p. 288). No entanto, logo passou a se dirigir a um público mais restrito, britânico e branco, deixando para trás a questão da igualdade racial. Essa mudança foi fruto da reação inglesa à revolução de São Domingos, que empregou o racismo para combater o exército negro de Toussaint L’Ouverture. Nesse contexto, Hardy preferiu evitar discutir o tema, que se tornou delicado, e circunscreveu o escopo da Sociedade aos limites nacionais.

O argumento de Linebaugh e Rediker é de que a década de 1790 foi um divisor de águas para a história do proletariado atlântico. Ao mesmo tempo em que chegou ao seu auge, a circulação de ideias revolucionárias foi duramente reprimida e a solidariedade entre os trabalhadores da Inglaterra e das Américas foi quebrada com a gênese das concepções modernas de raça, classe e nação: “O que ficou para trás era nacional e parcial: a classe operária inglesa, os negros haitianos, a diáspora irlandesa” (p. 300). É como se o bumerangue revolucionário, para retomar expressão utilizada por Linebaugh,12depois de ter ido tão longe, tivesse caído bruscamente, abatido pela forte rajada de vento que reprimiu as aspirações do proletariado atlântico.

A análise e a periodização proposta pelos autores são apropriadas para a história do Atlântico Norte e do capitalismo inglês. Na América Latina, a construção dos estados nacionais e a afirmação das concepções modernas de raça e classe seguiram ritmos bem distintos. Talvez justamente por isso, as contribuições do livro são potencialmente interessantes para a historiografia latino-americana. Novas pesquisas poderão dizer se a hidra, decepada no hercúleo processo de globalização capitalista no Atlântico Norte, no Sul ainda levantaria suas subversivas e heterogêneas cabeças ao longo do século XIX.

3 Os Diggers, Levellers e Ranters eram grupos populares radicais que atuaram na Revolução Inglesa defendendo ideais igualitários. Ver Christopher Hill, O mundo de ponta-cabeça. Ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640, São Paulo, Companhia das Letras, 1987.         [ Links ] 4 Uma excelente análise de exemplos positivos da “virada atlântica” na historiografia do Brasil colonial pode ser encontrada em Stuart B. Schwartz, “A historiografia dos primeiros tempos do Brasil moderno: tendências e desafios das duas últimas décadas”, História: Questões & Debates, n. 50, Curitiba, 2009, pp. 175-216.         [ Links ] 5 Mesmo no Atlântico Norte, o comércio triangular era complexo e envolvia rotas mercantis que escapam a um modelo simplificado. Ver Herbert S. Klein, The Atlantic Slave Trade, Nova York, Cambridge University Press, 1999.         [ Links ] 6 Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.         [ Links ] 7 João José Reis, por exemplo, discute as dimensões africanas da Rebelião dos Malês. Ver João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, São Paulo, Companhia das Letras, 2003.         [ Links ] 8 Sobre o tema ver Robin Blackburn, A construção do escravismo no Novo Mundo: do barroco ao moderno, 1492-1800 , Rio de Janeiro, Record, 2003.         [ Links ] No campo dos estudos culturais ver Paul Gilroy, O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro, Editora 34/UCAM, 2001.         [ Links ] 9 C.L.R. James, Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos, São Paulo, Boitempo, 2007.         [ Links ] A publicação original é de 1938.
10 Convém lembrar o importante trabalho de Sidney Mintz, que escreveu sobre a necessidade de integrar analiticamente o estudo dos escravos e dos proletários, sem distingui-los radicalmente do ponto de vista conceitual. Ver Sidney W. Mintz, “Was the plantation slave a proletarian?”, Review, vol.2, nº1, 1978, pp. 81-98.         [ Links ] 11 E. P. Thompson, A formação da classe operária inglesa, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.         [ Links ] 12 Peter Linebaugh, “All the Atlantic mountains shook”, Labour/Le Travailleur, n. 10, 1982, pp. 87-121.         [ Links ] Linebaugh usa o termo bumerangue para simbolizar a circulação de experiências históricas de luta contra a exploração capitalista no Atlântico que levava tradições revolucionárias da Europa para as Américas e para a Àfrica e vice-versa.

Gabriel Aladrén – Doutorando em História na Universidade Federal Fluminense.

A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário – LINEBAUGH; REDIKER (A)

LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Resenha de: GONZÁLEZ, Martín P. Antítese, v. 3, n. 6, jul./dez. 2010.

Si bien tanto Peter Linebaugh como Markus Rediker realizaron otras publicaciones antes y después de La Hidra de la Revolución, 1 nunca lograron alcanzar el reconocimiento que les valió este libro. En la presente reseña crítica nos proponemos, entonces, recuperar las diversas dimensiones que hacen del presente trabajo una innovación dentro de un escenario historiográfico un tanto hostil a los nuevos abordajes y las propuestas analíticas novedosas. Para facilitar la lectura, estructuraremos nuestro análisis en seis apartados diferenciados, para así dar cuenta de la riqueza y los matices que posee el libro. El primero estará centrado en analizar los debates historiográficos, metodológicos y teóricos en los cuales La Hidra se posiciona, buscando así establecer vínculos y relaciones con otros autores. Los siguientes cuatro apartados se centrarán en comentar el libro a partir de su propia estructura, buscando ir más allá de una mera enumeración de capítulos, indagando en las aristas problemáticas que pueda presentar el abordaje de los autores. Finalmente, el último apartado presentará una conclusión crítica. Existe también una publicación en español La Hidra de la Revolución. Marineros, esclavos y campesinos en la historia oculta del Atlántico, publicada por Crítica en Barcelona durante 2005.

Galardonado con el “International Labor History Association Book Prize”, el presente trabajo de Linebaugh y Rediker generó grandes controversias en los círculos académicos, a partir no sólo de su novedosa interpretación de la historia atlántica entre los siglos XVII y XIX, sino también de la forma en que utilizan ciertas categorías de la tradición analítica propia de la historiografía marxista inglesa, estableciendo diálogos con la teoría antropológica y sociológica. Así, si bien el libro está claramente orientado hacia problemáticas analizadas por historiadores de la talla de Rodney Hilton, Edward Palmer Thompson o Christopher Hill2 –como por ejemplo las resistencias campesinas y esclavas, las ideologías radicales de las multitudes sin voz, los conflictos y resistencias en el proceso de trabajo, o la constitución de clases sociales a partir de la experiencia de los sujetos–, podemos notar en el análisis de Linebaugh y Rediker la intención de trascender los límites nacionales –específicamente ingleses– de esos procesos. En este sentido, La Hidra retoma algunas de las hipótesis que guiaron los trabajos tempranos de George Rudé y Eric Hobsbawm,3 quienes buscaron traspasar las barreras de la historia inglesa, analizando ideologías y movimientos populares más allá de los límites geográficos de los Estados nacionales. Nos encontramos entonces con una propuesta temática y un recorte espacial, cronológico y temático más amplio: el espacio del Atlántico, cuyas corrientes y mareas determinaron una serie de experiencias comunes a un proletariado atlántico compuesto de marineros, labradores, criminales, mujeres, radicales religiosos y esclavos africanos, desde el comienzo de la expansión colonial inglesa en el siglo XVII hasta la industrialización metropolitana de inicios del XIX. En este sentido, “los gobernadores recurrieron al mito de Hércules y la hidra para simbolizar la dificultad de imponer orden en unos sistemas laborales cada vez más globales” (p. 16): es precisamente sobre el origen, características, accionar y devenir de las múltiples cabezas de esa hidra, que está centrado el análisis de Linebaugh y Rediker. Entonces, en lugar de centrarse en analizar la constitución de una clase obrera industrial, las características de los piratas, el tráfico esclavista o las ideologías religiosas radicales como elementos independientes, los autores buscan rescatar –a partir de una mirada “desde abajo”- esta multiplicidad de experiencias de opresión, violencia y dominación en función de un abordaje holístico que recupere las conexiones existentes entre estos fenómenos aparentemente dispersos. Así, si bien estos conflictos tendrán diversos escenarios (principalmente los terrenos comunales, la plantación, el barco y la fábrica), el eje de análisis pasa por las relaciones, los quiebres, y las continuidades entre esta diversidad de espacios. Como los procedimientos de análisis de los autores presentan variaciones de capítulo en capítulo, consideramos oportuno abordar a continuación una descripción de los mismos, en función del recorte temático-temporal que realizan, estructurado en cuatro momentos en el desarrollo de este conflicto entre la globalización capitalista hercúlea y las resistencias planteadas por esa compleja hidra policéfala. Los dos primeros capítulos del libro se ocupan de la primera fase de este proceso de dominación hercúleo, que ocurre en los años de 1600 a 1640, signado por el crecimiento y desarrollo del capitalismo comercial inglés y la colonización del espacio atlántico. Estos años de expropiación serían fundamentales, entonces, para la conformación de una estructura económica de exclusión y transformación de las relaciones sociales existentes hasta el momento. El primer capítulo, “El naufragio del Sea-Venture”, sienta las bases de la metodología analítica de los autores. La misma parte de reconstruir casos concretos –como en este caso, el del naufragio de un barco inglés– para indagar en cuestiones estructurales de la época. Así, a partir de este suceso, se abordan cuestiones esenciales del naciente capitalismo atlántico de principios del siglo XVII: la expropiación –mediante la reconstrucción del contexto de competencia imperialista y desarrollo capitalista del cuál la Virginia Company fue uno de sus motores esenciales, a partir de las estrategias de colonización de tierras americanas trasladando poblaciones campesinas–, la lucha por crear modos de vida alternativos a esa expropiación –retomando así la tradición de uso de terrenos comunales, que llegó al territorio americano de la mano de los marineros–, las formas de cooperación y resistencia –fundamentalmente entre los mismos marineros, que, ante los peligros de altamar, iban más allá de sus condiciones de artesanos, proscriptos, campesinos pauperizados, o peones, uniéndose en pos de lograr objetivos comunes– y la imposición de una disciplina clasista –a partir de la respuesta que los funcionarios de la Virginia Company tuvieron frente a esas resistencias, imponiendo el terror de la horca y una disciplina laboral estricta. Este primer capítulo es también representativo en términos de los procedimientos de análisis que los autores realizan de los documentos. En este punto podemos observar un claro interés por hacer dialogar la teoría marxista – especialmente La ideología alemana y el capítulo veinticuatro (sobre la acumulación originaria) de El Capital de Marx–, con la historiografía inglesa – si bien el interlocutor privilegiado lo constituye el marxismo británico de Hill y Thompson, también se cuestionan otras interpretaciones, como podría ser la Hugh Trevor Ropper– y un extenso y detallado corpus documental del período, compuesto principalmente por relatos de viajes, documentos administrativos de la Virginia Company y obras literarias como La Tempestad de Shakespeare. Así, en el segundo capítulo, “Leñadores y aguadores”, los autores retoman los argumentos de algunos de los principales intelectuales de la primer parte del siglo XVII inglés, como Francis Bacon o Walter Raleigh, y cómo caracterizaban a los enemigos de ese Hércules explorador, colonizador y comerciante, a partir de la monstruosidad de esas multitudes variopintas. Centrándose entonces en los leñadores y aguadores, que desempeñaron funciones esenciales para el avance de este proceso globalizante –a saber, realizaron las tareas de expropiación mediante la tala de bosques y destrucción del hábitat de los terrenos comunales, construían los puertos y barcos, y desarrollaban las actividades domésticas cotidianas–, los autores reconstruyen el proceso de constitución de la “infraestructura” necesaria para la expansión del capitalismo comercial, así como la consolidación de un aparato represivo orientado a controlar estas poblaciones: el terror, la prisión, los correccionales, la horca, las campañas militares y los trabajos forzados en ultramar. Sin embargo, a partir de los vínculos de solidaridad y resistencia, estos grupos de “leñadores y aguadores” comenzaron a formar iglesias, regimientos politizados al interior del ejército y comunas rurales y urbanas. “La hidra, formada por marineros, obreros, aguadores, aprendices, es decir, las clases humildes y más bajas –o, por decirlo de otra manera, el proletariado urbano revolucionario– estaba emprendiendo acciones de un modo independiente” (p. 87). Estas cuestiones constituyen el transfondo de la segunda fase de este proceso. Los siguientes dos capítulos están centrados en la segunda fase de este proceso, que iría de 1640 a 1680, y que estaría signada por los levantamientos de esas múltiples cabezas de la hidra, mediante la revolución en la metrópolis y los levantamientos en las colonias. El interlocutor privilegiado de estos capítulos es Christopher Hill, ya que el contenido de los mismos está orientado hacia los mismos problemas y tópicos teóricos tratados por él, aunque con ciertas variaciones que enriquecen el análisis. El tercer capítulo, “Una ‘morita negra’ llamada Francis” constituye acaso la forma más acabada de aplicación de la metodología de estos autores. Como decíamos más arriba, Linebaugh y Rediker parten de casos concretos para reflexionar sobre la totalidad de un proceso, explotando los documentos al máximo e indagando en las condiciones estructurales a partir de coyunturas específicas. Pues bien, en este caso los autores analizan un único documento, un informe de Edward Terrill, dirigente eclesiástico de la Iglesia de Broadmead, en Bristol, sobre “una criada morita y negra llamada Francis”. Lo interesante es cómo, a partir de esta somera descripción de una carilla, los autores analizan la confluencia entre dinámicas sociales como la raza, la clase y el género en el contexto de la revolución puritana inglesa. Así, la reconstrucción de la posible trayectoria de Francis, lejos de centrarse en un abordaje biográfico, da cuenta de las diversas problemáticas del período. “La bifurcación de los debates de Putney”, el cuarto capítulo, está centrado específicamente en las ramificaciones que dichas polémicas tuvieron. Durante el otoño de 1647 tuvieron lugar, en el pequeño pueblo de Putney, una serie de debates de radical importancia para el futuro de Inglaterra –y del capitalismo.

Notas

1 Entre los numerosos trabajos realizados pos los autores, vale la pena resaltar: Marcus Rediker. Between the devil and the deep blue sea: merchant seamen, pirates, and the AngloAmerican maritime world, 1670-1750. Cambridge: Cambridge University Press, 1993; Peter Linebaugh. The London Hanged: Crime and Civil Society in the Eighteenth-Century. Cambridge: Cambridge University Press, 1992; y Douglas Hay, Peter Linebaugh, John G. Rule, Edward P. Thompson y Cal (eds.) Albion’s Fatal Tree. Crime and Society in Eighteenth-Century England. London: Penguin Books, 1988. Martín P. González Peter Linebaugh e Marcus Rediker.

2 Entre la numerosísima bibliografía de estos autores, resaltamos: Christopher Hill. Antichrist in Seventeenth-century England. Londres: Verso, 1990; El mundo trastornado. El ideario popular extremista en la Revolución inglesa del siglo XVII. Madrid: Siglo XXI España, 1983; y Los orígenes intelectuales de la revolución inglesa, Crítica, Madrid, 1996; de Edgard P. Thompson. Costumbres en común. Barcelona: Crítica, 1984 y Tradición, revuelta y consciencia de clase. Estudios de la crisis de la sociedad industrial. Barcelona: Crítica, 1984; y Rodney Hilton. (ed.) La transición del feudalismo al capitalismo. Barcelona: Crítica, 1982; y Hilton, Rodney. Siervos liberados. Madrid: Siglo XXI, 1978.

3 Hacemos referencia, principalmente, a trabajos como: George Rudé. La multitud en la historia. Madrid: Siglo XXI, 1971; y Eric Hobsbawm. Revolución industrial y revuelta agraria. El capitán Swing. Madrid: Siglo XXI, 1978; y Rebeldes primitivos. Estudio sobre las formas arcaicas de los movimientos sociales en los siglos XIX y XX. Madrid: Crítica, 2001.

Martín P. González – Professor da Universidad de Buenos Aires (UBA) / Argentina.

Black Imagination and the middle passage | Maria Diedrich, Henry L. Gates e Carl Pedersen

Danilo Rabelo

DIEDRICH, Maria; GATES, Henry Louis; PEDERSEN, Carl. Black Imagination and the middle passage. Oxford University Press, 1999. 320p. Resenha de: RABELO, Danilo. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.3, n.6, jan./jun., 2003. Arquivo indisponível na publicação original. [IF]

 

A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850) | Mary Karasch

Desde o século XIX, o tema da escravidão tem sido central nos estudos sociológicos e históricos sobre a formação do Brasil. Como objeto de investigação, teve um percurso variado. A produção intelectual brasileira voltou-se para o tema a partir de diversas perspectivas e, logicamente, chegou a diferentes conclusões. Sem dúvida, a obra de Gilberto Freyre, da década de 1930, destaca-se pelo êxito em termos de apresentação e circulação de suas idéias (Pinheiro, 1999). Na década de 1950, também sobressaíram vários estudos,1 que, procurando ir contra a idéia de uma escravidão branda, acabavam por considerar os escravos como vítimas passivas do sistema — abordagem já bastante criticada pela historiografia brasileira da década de 1980 (Chalhoub, 1990).

Um esforço no sentido de resgatar os grupos subalternos, inclusive os escravos, como agentes de sua própria história (Machado, 1988; Slenes, 1999), pode ser identificado nas historiografias européia e norte-americana entre o final da década de 1960 e o início da de 1970. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850), de Mary Karasch, originou-se da tese de doutorado defendida pela autora em 1972, estando inserida nesse período de renovação. Leia Mais

Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1888) – WISSENBACH (RBH)

WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1888). São Paulo, Hucitec/História Social, USP, 1998. Resenha de: MOURA, Denise. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19 n.37, sept. 1999.

Graças à iniciativa do Programa de Pós-Graduação em História Social, do Depto. de História da USP e a Ed. HUCITEC, Sonhos africanos, vivências ladinas, defendido como dissertação de mestrado em 1989, é mais um volume da série Teses que vem facilitando o acesso dos pesquisadores a estudos de relevo, que têm contribuído para entendermos um pouco mais sobre nosso passado e nossa própria atualidade.

A autora, Maria Cristina Cortez Wissenbach, vem se destacando com publicações em diversas revistas especializadas e mais recentemente com um dos capítulos do 3o volume da História da Vida Privada. Em 1997, apresentou sua tese de doutorado sobre práticas mágico-religiosas nas primeiras décadas do século XX paulista.

Em Sonhos africanos…, sua pena de historiadora coloca-nos diante das experiências de vida de pessoas comuns. Homens, mulheres, forros ou escravos, remediados ou muito pobres. Uma gente engenhosa o suficiente para se apropriar das asperezas da vida e das relações cotidianas e criar estratégias de sobrevivência. O quê nos liga a estes homens e mulheres das terras paulistas de 1850-1880?

Tributária de uma vertente teórica que nos anos 80 trouxe novos ares aos estudos de escravidão – E. P. Thompson, E. Genovese, Herbert G. Gutman -, a autora empreendeu um vigoroso trabalho de pesquisa em documentos do Tribunal de Justiça, trazendo à luz práticas, percepções e valores de uma gente de ontem disfarçada no discurso das camadas dominantes. É nos processos-crime – e na documetanção processual em geral – que ouvimos o sussuro de suas existências. Mesmo revelando um universo sutilmente recortado pelos interrogatórios, é nos processos jurídicos que estão estas vozes: sofridas, tímidas, medrosas, ladinas, chorosas.

São vozes que a renovação historiográfica dos anos 80 tornou mais perceptíveis e que têm desconcertado formas mais tradicionais de se ver nosso passado escravista. A começar pela maneira desfigurada do escravismo em São Paulo dos anos 1850-1880, pois núcleo urbano tímido que era, favoreceu uma situação na qual pessoas de diferentes condições sociais serviam-se das mãos e pés escravos, sob a forma de aluguel ou ganho, numa vivência tão estreita que tendia a confundir senhores de posses irrisórias com seus cativos.

A escravidão urbana tendeu a atenuar os rigores do regime, ampliando a margem de negociação dos escravos com seus senhores, dando-lhes maior liberdade para circular pelas ruas e improvisar variados expedientes que aumentavam seus ganhos, além de favorecerem o exercício de uma sociabilidade nas irmandades e em pontos específicos da cidade.

De página em página, o leitor vai assistindo a cenas intrigantes da vida de pessoas comuns: desentendimentos, confusões com guardas locais insistentes em alinhar condutas em padrões definidos, um ir e vir incessante, solitário ou em ajuntamentos, sempre procurando tornar a vida melhor de ser vivida.

Os níveis de criminalidade cativa – e a própria documentação que a autora utilizou – apontam para a violência destes tempos. Esta criminalidade, insana em muitas situações, coexistia no entanto com histórias bastantes corriqueiras, como a dos escravos de Joaquim Camargo do bairro de Santana, que podiam usar o carro do senhor para venderem lenha, produto de seus próprios negócios1. Quantos não se ocuparam de outros serviços nos intervalos das tarefas incumbidas por seus senhores. Afinal, eram possibilidades extras de ganhos. Produção agrícola ou criações independentes também fizeram parte desta política de consentimentos e acordos nos relacionamentos de escravos e senhores.

No capítulo “O sentido social do crime e da criminalidade escrava” vemos o quanto transgressões à lei e o recurso à violência pelos escravos foi parte de um movimento mais amplo, dotado de uma coerência criada por eles próprios e que aos poucos foi ruindo o regime de escravidão.

Foi recolhendo os fragmentos da fala de negros cativos ou forros e homens livres, pobres ou remediados, que a autora foi costurando o tecido social da São Paulo destes anos. Eram lavadeiras, quitandeiras, domésticas e trabalhadores de ofícios, andejos na sobrevivência e que diariamente incomodavam as autoridades locais e as famílias mais abastadas. Parecia intrigante aos olhos de senhoras brancas e senhores sisudos o vai-e-vem nervoso de uma gente de cor ora com trajos que quase a confundia com seus donos, ora com adereços que lembravam as tradições africanas.

Intolerável era o conversar ruidoso, em torno aos chafarizes, em meio às rodas de capoeira e partidas de jogos, misturando-os a homens livres pobres, também trabalhadores de diversos ofícios e expedientes, numa convivência tensa e necessária para a sobrevivência.

O capítulo “O escravo e o mundo caipira na comarca de São Paulo” é primoroso ao revelar o ritmo da escravidão num meio rural pobre, afrouxado pela pobreza dos senhores e pelas interrupções do trabalho inerentes à faina na roça.

É o potencial criativo que as pessoas carregam consigo que vamos acompanhando por meio da narrativa de Sonhos africanos…. Artistas da sobrevivência, escravos criavam a partir das condições que o “ser escravo” em São Paulo na segunda metade do XIX permitiam, ou seja, o regime abria esta possibilidade e os escravos souberam se apropriar disto com astúcia e sabedoria, donos que eram de uma erudição das ruas, aprendida nos imprevistos que enfrentavam, nas traições, nas brigas em torno do chafariz, nos sofrimentos de amor e nos laços de vizinhos e parentes que tão bem sabiam tecer.

O leitor se vê diante de uma sociabilidade tensa e solidária nas praças, largos, pontes, becos, festas e reuniões. Espaços onde solucionavam discórdias, lavavam a honra e tramavam ganhos e negócios. Sob o foco de estudo pioneiro e clássico da história social e das mulheres2, a autora vai desvelando flagrantes da pobreza feminina paulista, na vida de forras audaciosas o suficiente para afrontarem imposições de maridos e autoridades, firmando sua condição de mulheres que respondiam por boa parte – senão por todo – o sustento da casa.

O conjunto iconográfico do volume é tocante: uma galeria de fisionomias comuns e antigos locais de trânsito, trabalho e encontros que desafiaram o tempo graças à arte fotográfica do conhecido fotógrafo Militão Augusto de Azevedo (1835-1905).

O estudo de Wissenbach é também um desafio ao tempo, fazendo com que os sonhos e as vivências de homens e mulheres que viveram tão antes de nós não caiam na grande armadilha do esquecimento. Mas como estes sonhos de uma vida melhor de ser vivida e esta arte de improvisar e criar a sobrevivência parecem tanto com os dos dias de hoje.

Notas

1 WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1888). São Paulo, Hucitec/História Social, USP, p. 135, 1998.

2 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2a. ed., São Paulo, Brasiliense, 1995.

Denise Moura – Doutoranda do Dep. de História da Universidade de São Paulo

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[IF]

Coroas de Gloria, Lagrimas de Sangue — A rebelião em Demerara em 1823 – COSTA (VH)

COSTA, Emilia Viotti da. Coroas de Gloria, Lagrimas de Sangue — A rebelião em Demerara em 1823. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. Resenha de: SÁ, Cristina Isabel Abreu Campolina. Varia História, Belo Horizonte, v.14, n.19, p. 212, nov., 1998.

Este livro e um fino exemplo de um trabalho de pesquisa de primeira classe sobre urna das maiores revoltas de escravo do Novo Mundo. A revolta ocorreu no ano de 1823 na Colônia de Demerara na Guiana, ex-Guiana Inglesa. A autora se propõe a contar a história do missionário evangélico John Smith que, proveniente da Grã-Bretanha para Demerara em 1817, foi acusado de ser o mentor e instigador da referida rebelião.

A região onde o conflito se deu é conhecida corno Costa Leste ocupando urna imensa área de cultivo de açúcar que se estende ao longo do mar por quase 40 Kms a leste da foz do rio Dernerara. Atingindo quase 60 fazendas a partir da fazenda Success pertencente a Jonh Gladstone, a rebelião contou com a participação de 10 a 12 mil escravos que se sublevara, em nome de seus “dreitos”.

O dado que confere singularidade ao conflito foi a interferência do missionários evangélicos que jogaram luz nos desmandos do sistema escravista vigente, em confronto com os senhores (fazendeiros locais) e, as autoridades coloniais que os acusavam simultaneamente de traidores e fanáticos. Outro dado importante no conflito foi que contrariando a esperada atitude de apoio por parte da Metrópole, nos inúmeros atritos entre missionários/colonos, colonos/escravos, as autoridades britânicas nunca se posicionaram radicalmente a favor dos fazendeiros.

A autora justifica a importância de tal pesquisa pelo valor universal do terna da escravidão e, considera o trágico destino do Reverendo Smith emblemático no que concerne a atuação de indivíduos que se distinguem na história corno paladinos da justiça e da igualdade.

Cristina Isabel Abreu Campolina Sá.

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[DR]

OBS: Resenha incompleta só consta essa página.

Abolitionism in the United States and Brazil. A Comparative Perspectiva – AZEVEDO (VH)

AZEVEDO, Célia Marinho. Abolitionism in the United States and Brazil. A Comparative Perspectiva. Nova Iorque e Londres: Garland Publishing, 1995. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.17, p. 279-282, mar., 1997.

A tese de doutoramento da Professora Célia Marinho Azevedo, apresentada à Columbia Universlty, nos Estados Unidos, acaba de ser publicada na coleção de “Estudos sobre Cultura e História Afro-Americana”, de Nova Iorque. Raras são as obras de brasileiros publicadas no exterior e, ainda mais excepcionais aquelas que não se refiram apenas ao Brasil, como é o caso deste estudo comparativo do abolicionismo nos dois países. Na verdade, a abolição tem sido considerada muito mais do ponto de vista econômico e político do que de uma perspectiva social e cultural e este trabalho, portanto, cobre também uma lacuna na historiografia sobre o tema 1_ O livro começa com um pequeno prefácio, seguido de uma introdução bibliográfica (lx-xxiv) e desenvolve-se por quatro capítulos principais, sobre “O abolicionismo nos dois países: uma visão geral” (págs. 3-20), “Visões do senhor de escravos” (págs_ 21-48), “Visões do escravo” (págs. 49-82), “Reflexões sobre o racismo e o destino no ex-escravo” (págs. 83-120), concluindo com um “Epílogo” (págs. 121 -126). Em cada tópico, as experiências do abolicionismo brasileiro e norte-americanos são analisadas, comparativamente e passo a passo. A erudição da autora pode ser avaliada pelas 36 páginas de notas e as 444 obras citadas, entre fontes primárias e secundárias. Sua leitura, contudo, nem por isso é difícil, mas, ao contrário, a suavidade do texto apresenta-se. ainda. tornada mais agradável pela beleza do estilo claro e pouco afeito ao jargão.

A bela comparação entre o abolicionista William Lloyd Garrison, nascido no norte dos Estado Unido e alheio, d todo, à prática da escravidão e Joaquim Nabuco, antigo senhor tornado opositor do sistema, permite observar a precisão estética da autora: “falando com este senhor, Garrison sentiu-se, provavelmente, um verdadeiro outsider, incapaz de compreender a consciência e o mundo do dono de escravos. Pelo contrário, para o futuro líder abolicionista brasileiro, Joaquim Nabuco, a escravidão tinha sempre sido uma realidade tão natural como o ar que respirava. A escravidão não era uma instituição esquisita que, às vezes, ouve-se falar ou encontra-se, face a face, apenas em circunstancias excepcionais. A escravidão era o seu mundo e moldava sua consciência tão profundamente quanto o fazia para o dono de escravos que Garrison havia encontrado na prisão de Baltimore” (págs. 16-17). Azevedo utiliza-se do conceito de “imaginário” para descrever a criação perene de figuras, formas e imagens que permite aos agentes históricos, neste caso abolicionistas. produzir sua ”realidade” e sua “racionalidade”. O livro pode ser lido como uma oposição constante entre duas culturas irredutíveis, cujas escravidões e abolicionismos guardam semelhanças externas, em parte derivadas da sua inserção em um contexto internacional comum, e profundas diferenças ideológicas.

Os diferentes caminhos dos dois países na sua emancipação política explicam, em grande parte, os divergentes abolicionismos. A Revolução Americana e a vitória do republicanismo construíram idéias sobre a identidade nacional. a igualdade política e social e a cidadania completamente diversas do compromisso pacífico entre a Coroa portuguesa e a nova nação brasileira. Seguindo as idéias desenvolvidas por David Brion Davis, sobre a liberdade interior e a virtude, Azevedo considera que o abolicionismo norte-americano foi o resultado de um pensamento inovador, derivado de uma nova ética de benevolência, cujo ideal de responsabilidade individual substituiu os antigos padrões. em de integração, da caridade da responsabilidade social de cunho medieval. Esta filosofia, surgida na Grã-Bretanha, no século XVII, confiava na capacidade humana de aprimoramento moral e opunha-se tanto à predestinação calvinista como ao apego ritualístico do catolicismo tradicional. A este ethos americano, opõe-se o caráter patriarcal da sociedade brasileira. Baseada na hierarquia e na proteção derivada das relações de compadrio, a sociedade católica brasileira, fundada no respeito à ordem vigente, que incluía a escravidão, só podia conceber o abolicionismo como … movimento dentro da Iei ! “Os abolicionistas brasileiros permaneceram, normalmente, determinados a combinar a abolição com o respeito das leis, o que, em um país escravista. eqüivalia a respeitar os interesses dos donos d escravos” (pág. 45). A guerra civil americana e seus mortos representam uma quebra com o antigo regime que, no Brasil, nunca houve. Como lembra Célia Marinho Azevedo, a passagem pacifica à emancipação, no Brasil, foi acompanhada pela reforma eleitoral de 1879 que reduziu os votantes de 1.114.066, em 1874, para apenas 145.296, em 1879 2.

O abolicionismo norte-americano fundava-se na igualdade entre os homens. entre os quais estavam os negros, o que opunha a escravidão, a um só tempo, ao cristianismo e à república. Os senhores, pecadores e infratores à constituição ipso facto, eram não apenas combatidos como a própria escravidão nos Estados Unidos era considerada a mais detestável, a menos mitigada. É neste contexto, argumenta a autora, que, naquele país, cria-se a noção de uma escravidão mais humana, porque fundada no Direto Romano, imperante alhures. O Brasil passa a ser, na verdade, o paradigma dos benefícios de uma escravidão regrada: “No Brasil. no momento (i.e. 1833) a nação com maior população escrava, é ainda melhor. Ali o senhor é obrigado, sob ameaça de pena severa, a dar a seu escravo uma licença escrita para procurar outro dono sempre que o escravo assim o pedir; encontrada a pessoa interessada na compra, o magistrado fixa o preço” (David Child}. Com o passar do tempo, o racismo norte-americano. denunciado por diversos abolicionistas, foi contrastado ao paraíso racial brasileiro, cuja fama internacional já era reconhecida em meados do século XIX. Como lembra a autora, é interessante notar que muitas dessas idéias abolicionistas sobre o inferno racial norte-americano e o paraíso racial brasileiro foram incorporadas pelos grandes estudiosos do nosso século, Gilberto Freyre e Frank Tannenbaum3.

Célia Marinho Azevedo toca, en passant, em um ponto que talvez mereça alguma reflexão: André Rebouças, de origem africana, teve carreira notável graças ao esforço, trabalho, disciplina e estudo. As disciplinas estudadas incluíam latim, francês, inglês e a tradução dos filósofos gregos e romanos. Ora, também nos Estados Unidos, escravos. fugitivos e forros privilegiavam. da mesma forma. o estudo do latim e do grego. como demonstrou Shelley P. Haley4 . No contexto norte-americano, o domínio dos clássicos era sinal de igualdade, quanto ao Brasil? Se aceitarmos a interpretação proposta pela autora, parece razoável supor que, ao contrário, o conhecimento erudito afastasse o indivíduo de ascendência africana dos escravos e libertos pobres e o identificasse como integrante da elite branca. Nesta direção caminha constatação de Célia Marinho Azevedo a respeito da imagem positiva da África nos círculos abolicionistas americanos, por oposição à terra de ignorantes na concepção brasileira predominante. Cleópatra era negra nos Estados Unidos. enquanto Rebouças era branco, no Brasil.

Espera-se que a obra seja, o mais breve possível, traduzida e publicada entre nós. Desta forma, também o público brasileiro mais amplo, e não apenas aquele mais diretamente dedicado ao estudo de temas afro-americanos, poderá ter acesso uma obra cuja repercussão acadêmica já começou nos principais centros internacionais de pesquisa.

Nota

1 Lacuna bem lembrada por Hebe Maria Matos de Castro em “Estudos Afro-Asiáticos”, número 28, 1996, pág 106.

2 De maneira independente, era o que também ressaltava Magnus Mômer em “Ibero-Americana. Nordic Journal of Latln American Sludies”, número 22, 1992, pág 20.

3 Esta oposição entre a tradição latina e anglo- saxônica foi ressaltada em diferentes historiografia latino-americanas . o caso cubano estudado por AIine Helg em “Politlcas sociais en Cuba después de la lndependencla: represión de la cultura negra y mito de la lgualdad racial”, America Negra, Bogotá, 11, 1996, páginas 63-79, apresenta paralelos interessante a respeito

4 Em ” Feminlest Theory and lhe Classlca”, organizado por N.S. Rablnowltz e A Richlin, 1993, págs 23-43.

Pedro Paulo A. Funari – Departamento de História, IFCH, IJNICAMP.

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Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos | Eduardo França Paiva

Resenhista

Tarcísio Rodrigues Botelho – Professor Assistente do Departamento de História da UFG. Doutorando em História Social pela USP.

Referências desta Resenha

PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, Belo Horizonte: Faculdades Integradas Newton Paiva, 1995. Resenha de: BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. História Revista. Goiânia, v.1, n.2, p.135-138, jul./dez.1996. Acesso apenas pelo link original [DR]