Dourados e a democratização da terra: povoamento e colonização da Colônia Agrícola Municipal de Dourados (1946-1956) | Maria Aparecida Ferreira Carli

Convidado especial do 13º Congresso Internacional da Rede Mundial de Renda Básica que foi realizado em 2010 na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, o historiador Luis Felipe de Alencastro proferiu uma brilhante palestra sobre as implicações históricas das desigualdades sociais brasileiras. Além da ênfase, como não poderia deixar ser, à questão da escravidão, Alencastro tocou em um dos temas mais polêmicos da história do Brasil: a alarmente injustiça social na distribuição de terras em nosso país.

O historiador iniciou suas reflexões chamando atenção do público ouvinte para o fato de a Lei de Terras ter sido aprovada pelo parlamento do Brasil apenas três semanas após a proibição do tráfico negreiro. Para Alencastro, não há nenhuma coincidência nesse fato, mas sim a comprovação de que a lei número 601 de 18 de setembro de 1850 era a base de uma política que tinha como objetivo preparar o país para receber imigrantes que iriam substituir a mão-de-obra escrava. O papel dessa regulamentação das terras públicas era, mediante um novo contexto vivido pela nação, impedir que os imigrantes recém-chegados pudessem vislumbrar a possibilidade de possuir propriedades rurais, garantindo, desse modo, a força de trabalho necessária para a produção nos grandes latifúndios do país.

Essa postura conservadora sobre a posse de terras, tão bem problematizada por Felipe Alencastro em sua conferência, foi mantida durante a segunda metade do século XIX e durante todo o século XX pelas elites do país e o resultado desse conservadorismo está hoje consubstanciado na extrema concentração fundiária do Brasil. Mas essa postura conservadora, é importante acrescentar, além dos evidentes custos sociais, teve um custo político altíssimo para a nação, pois como se sabe, a proposta de reforma agrária do governo de João Goulart, anunciada no comício da Central do Brasil em março de 1964, foi preponderante para a deflagração das ações que levaram a um Golpe Militar cujos reflexos negativos podem ser sentidos ainda hoje no país.

Esses poucos apontamentos históricos já são o bastante para demonstrar o quanto a questão agrária no Brasil é importante e o quanto é necessário que esse tema seja debatido pela comunidade acadêmica, sobretudo pelos historiadores por se tratar de uma mazela perpetuada no Brasil ao longo da história. Por essa razão, o livro Dourados e a democratização da terra de Maria Aparecida Ferreira Carli é de especial importância e já se tornou uma leitura obrigatória a todos os que se interessam em compreender a luta de pequenos agricultores em um país conhecido pela preponderância de latifúndios.

Além da relevância social, a pesquisa apresentada como dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados, é dotada de grande originalidade, pois nos apresenta uma análise histórica da Colônia Agrícola Municipal de Dourados que até então não havia sido objeto de nenhum estudo histórico, ao contrário da bem mais conhecida e estudada Colônia Agrícola Nacional de Dourados – como lembrou com muita propriedade no prefácio do livro o professor Paulo Roberto Cimó de Queiroz, profundo conhecedor da história de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso e responsável pela orientação da dissertação de Maria Carli que agora vem ao público no formato de livro.

Figurar como a primeira pesquisadora a analisar de forma pormenorizada a Colônia Agrícola Municipal de Dourados exigiu da autora uma enorme destreza e Maria Carli, para desenlear os fios dos acontecimentos históricos, recorreu a diversos arquivos em um exemplar esforço de coleta de informações. Diversos materiais salvaguardados em arquivos públicos e particulares espalhados por várias cidades circunvizinhas a Dourados e até mesmo em Cuiabá e no Rio de Janeiro, uniram-se às entrevistas realizadas pela autora com pessoas cujas histórias de vida confundiam-se com a história da Colônia Agrícola Municipal de Dourados. Todo o esforço na coleta de informações foi coroado pela forma segura com que a pesquisadora inquiriu suas fontes o que resultou em uma pesquisa reveladora sobre os aspectos políticos ligados à Colônia Agrícola Municipal de Dourados e também sobre o cotidiano dos colonos que, na situação de pequenos proprietários, tantos desafios enfrentaram para garantir o sustento de suas famílias.

O livro foi estruturado em três capítulos. No primeiro, a autora realizou uma discussão sobre o processo de ocupação das terras no sul do antigo estado de Mato Grosso, com ênfase nos séculos XIX e XX. Ponto alto do debate proposto nesse capítulo introdutório é a análise sobre as manobras políticas das elites durante o século XIX e, sobretudo, no século XX, que permitiram a concentração de extensas propriedades no estado de Mato Grosso do Sul. A autora apresenta alguns elementos que estiveram na base da acumulação fundiária na região em questão: grande propriedade pastoril e organização monopolista da extração da erva-mate. Outro aspecto que enriquece o primeiro capítulo é a reflexão sobre as legislações e projetos relacionados à posse de terras que geraram muitos embates entre as elites do sul do antigo Mato Grosso. É também significativa a abordagem sobre as políticas nacionalistas do governo de Getúlio Vargas para as regiões fronteiriças que haveriam de ser protegidas pela presença de pessoas que se fixariam em áreas consideradas estratégicas por meio de políticas de colonização e povoamento.

No segundo capítulo, o olhar da pesquisadora se volta especificamente ao complexo processo de criação da Colônia Agrícola Municipal de Dourados, caminho longo e bastante enviesado pelas disputas locais e pelos jogos de poder que muitas vezes estavam amarrados às políticas fundiárias estaduais e federais. A estratégia geral do capítulo é muito interessante, pois localiza a fundação da Colônia Agrícola Municipal de Dourados no quadro geral das políticas de colonização tanto do estado quanto do governo federal, uma opção metodológica que torna o capítulo fortíssimo em termos de originalidade e que deixa um bom exemplo de pesquisa histórica que consegue explorar o objeto de estudo, utilizando-se da “lupa” e da “luneta”.

No terceiro capítulo, os colonos entram em cena e trazem informações valiosíssimas por meio de seus depoimentos; informações que permitem a inserção no dia-a-dia da Colônia Agrícola e que não poderiam ser encontradas em nenhum outro tipo de fonte. Há também antigas fotografias dos primeiros anos do projeto colonizador que, em conjunto com os depoimentos dos colonos, formam um fascinante painel do cotidiano da Colônia.

A partir desse momento, a vida cotidiana da Colônia passa a ter um caráter especial na articulação da pesquisa, pois as memórias dos colonos revelam as dificuldades que foram enfrentadas devido à ingerência das autoridades que deveriam auxiliá-los na consolidação de um centro de produção agrícola em regime de pequena propriedade. Tal processo não poderia ter sido diferente em uma região historicamente constituída pela presença do latifúndio e que, por força de determinadas contingências, leia-se povoamento, procurou implantar um modelo de colonização organizado a partir de pequenas propriedades. Nesse contexto, os colonos tiveram de enfrentar os especuladores que vislumbravam uma possibilidade de lucro com a venda e delimitação de áreas e também os problemas gerados pela falta de políticas públicas que garantissem condições mínimas de produção.

Ao ler o último capítulo do livro Dourados e a democratização da terra não há como não lembrar a obra Fronteiras: a degradação do outro nos confins do mundo de José de Souza Martins, especialmente do terceiro capítulo Regimar e seus amigos no qual o autor buscou compreender a luta pela terra a partir dos depoimentos das crianças. Nesse comovente capítulo, José de Souza Martins chamou atenção para a dificuldade das ciências humanas, excetuando-se em alguns casos a Antropologia, em decifrar o silêncio das mulheres, das crianças, dos velhos, dos dependentes, dos que vivem de favor, enfim de todas as pessoas comuns que passam como “mudos da história”.

A pesquisa de Maria Carli representa um importante avanço nesse sentido, pois mesmo tendo manuseado fontes nas quais geralmente encontramos a voz das autoridades, tais como decretos, leis, regulamentos, atas das câmaras municipais e relatórios, a autora não deixou de inserir em seu estudo os colonos que em suas lides diárias encontraram formas de driblar a burocracia e a má vontade das autoridades que pareciam ignorar as demandas das famílias que queriam produzir nas terras da Colônia Agrícola Municipal de Dourados.

Fica aí um ponto de reflexão, porque o projeto colonizador prosperou devido à perseverança de trabalhadores, que, mesmo enfrentando inúmeras dificuldades, garantiram o povoamento do território de uma forma tão substancial a ponto de a Colônia se transformar em um município – a atual cidade de Itaporã. Mas o projeto falhou, por falta de vontade política, naquilo que poderia transformá-lo em um bom exemplo para Mato Grosso do Sul e para o Brasil: a consolidação de um modelo alternativo de produção agrícola baseado na pequena propriedade.


Resenhista

André Dioney Fonseca – Doutorando em História Social – FFLCH/USP. Mestre em História – PPGH/UFGD.


Referências desta Resenha

CARLI, Maria Aparecida Ferreira. Dourados e a democratização da terra: povoamento e colonização da Colônia Agrícola Municipal de Dourados (1946-1956). Dourados: EDUFGD, 2008. Resenha de: FONSECA, André Dioney. Os (des)caminhos da política fundiária no sul do antigo Estado de Mato Grosso. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v.6, n. 12, jul./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]

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