Educação Moral e cívica: uma estratégia psicossocial de legitimação de poder (1969-1985) | Cristiano Alexandre Santos e Eduardo Gusmão de Quadros

O livro escrito pelos professores Cristiano Alexandre dos Santos e Eduardo Gusmão de Quadros busca analisar a implantação e o desenvolvimento da disciplina Educação Moral e Cívica durante o regime militar. Esta disciplina já existia como parte da formação escolar dos estudantes brasileiros desde o Segundo império (1840-1889), mas só se tornou uma disciplina do currículo escolar oficial a partir do decreto-lei nº 869, assinado em 1969, no período da ditadura civil-militar.

A partir da implantação da Educação Moral e Cívica como disciplina escolar, o que se observou foi uma tentativa de legitimação do regime Militar através da defesa do nacionalismo e da ênfase no anticomunismo, o que é visível na organização do currículo dessa disciplina. Nesse sentido os autores trabalham para demonstrar como a criação dessa disciplina buscou inculcar os valores caros aos militares e seus apoiadores como os valores únicos e verdadeiros a juventude brasileira. Para esses autores os conceitos chaves de análise são poder e legitimação:

Nas mais diferentes épocas e sistemas políticos, os detentores do poder recorrem as variadas estratégias de conquista e preservação de sua posição de comando acompanhando esses processos é que se depara com o problema da legitimidade; esta é uma questão complexa, basilar do pensamento político e atrai interessados de diferentes campos de estudo. O princípio de legitimidade está diretamente associado a justificação do poder ou do direito de mandar (2019, p. 17).

Os militares, ocupando o poder estatal, precisavam manter o poder e as estratégias de repressão e censura. Mas se elas funcionassem por um tempo de longo prazo, o resultado seria desgastante socialmente. Assim, buscaram justificar seu domínio no executivo por meio de estratégias de legitimação, como a propaganda do crescimento econômico, o discurso anticomunista e salvacionista e a idealização do próprio movimento golpista de 1964. É nesses dois últimos sentidos que a Educação moral e Cívica contribuiria para a legitimação do Regime Militar que governava o Brasil no período.

O livro de Santos e Quadros busca traçar o desenvolvimento dessa estratégia psicossocial, como a denominaram os autores. Assim o livro é construído em seis capítulos que vão de um contexto geral a um contexto mais específico, ao analisar a disciplina Educação Moral e Cívica a partir dos livros didáticos utilizados no período nos três níveis de ensino (1º grau, 2º grau e Ensino Superior). Em cada nível a disciplina tinha nome diferente1 mas todas tinham o mesmo objetivo: legitimar um governo que havia chegado ao poder por meio de um golpe de Estado. A obra pode ser dividida em duas partes: os capítulos um, dois e três fazem um contexto geral do período; os capítulos quatro, cinco e seis analisam especificamente a disciplina Educação Moral e Cívica.

No primeiro capítulo, os autores descrevem o cenário internacional e nacional do período conhecido como Guerra Fria (1947-1991). Assim a tomada de poder pelos militares em 1964 deve ser vista como consequência da Guerra Fria onde o mundo ficou dividido em dois blocos político-econômicos, capitalista e socialista, e como essa disputa influenciou nas disputas internas dos países da América latina e mais especificamente no Brasil durante esse período. O destaque desse capítulo é a análise das ideologias capitalista e socialista através das propagandas feitas por cada lado. Na parte específica, os autores demonstram como o medo do comunismo foi utilizado como meio de justificar a sua intervenção no poder ao mostrar como o temor das reformas propostas por Jango foi capitalizada para ampliar o medo da tomada do poder pelos comunistas. Teríamos um golpe para evitar um golpe.

Esse medo se torna a chave de leitura do capítulo dois onde Santos e Quadros buscam compreender como se deu a instauração da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) no Brasil, a partir da fundação as Escola Superior de Guerra (ESG) em 1949. A ESG buscou construir a DSN brasileira a partir do medo de ataques externos ou internos: “A noção de ameaça acompanha a construção do pensamento esguiano, pois é diante dela que sistematiza o esforço em prol da segurança nacional” (p. 93). Ao analisar o pensamento de Golbery do Couto e Silva, os autores percebem o alinhamento dessa doutrina ao bloco capitalista e de que o perigo comunista rondava o Brasil na época:

Conforme as considerações de Golbery, o ocidente, ancorado na Europa Ocidental e nos EUA, encontrava-se sob a intimidação terrível do comunismo. A dimensão antidemocrática, anticristã, totalitária e imperialista desse regime representaria em sua avaliação, uma ameaça incomparável com qualquer outra já existente no passado. As ameaças eram diversas e a guerra era apresentada como a pior delas (p. 98).

Entre vários tipos de guerra, a que se tornaria central na DSN era a guerra subversiva, pois seria a principal estratégia do comunismo para chegar ao poder e era feito por agentes infiltrados em diferentes instituições. Essa era uma estratégia que evitava o confronto direto e era o maior perigo que a DSN deveria combater.

O capítulo três descreve as reformas promovidas no campo educacional no período do Regime Militar, enfatizando a reforma universitária de 1968 e a reforma da educação básica de 1971. A educação era visto como setor estratégico tanto para a economia quanto para a segurança. Essas reformas eram parte das estratégias de legitimação dos governantes militares. Nesse contexto Santos e Quadros percebem que a universidade passa a ser vista como:

… universidade-empresa [que] deve ser freqüentada para aprender uma profissão e não para fazer política. Promove-se, dessa forma, um processo de despolitização do espaço acadêmico e dos atores com eles envolvidos, como alunos e especialmente os professores universitários (p. 121).

A universidade era um dos espaços de maio oposição ao regime, passando logicamente a ser controlada e vigiada pelo governo. Ocorreram processos de expurgos tanto de professores e funcionários quanto de muitos alunos.

Já na educação básica, o foco se tornou a profissionalização dos alunos voltados para o mercado de trabalho. Com poucas vagas para a universidade o Regime militar buscou dar a juventude meio de se inserir no mercado de trabalho que se expandiu durante o Milagre Econômico. Apesar do discurso a realidade de pouco investimento levou ao fracasso da iniciativa e a perda de qualidade do ensino público.

Portanto o que se percebe é que pelas reformas na educação feitas no período militar houve dois focos: o controle político das universidades e a profissionalização nas diversas modalidades de ensino voltado para o mercado brasileiro.

A partir do quarto capítulo, os autores entram especificamente na análise da Educação Moral e Cívica. Para isso o livro contextualiza o surgimento da Educação Moral e Cívica a partir do Segundo Império (1840-1889) como um componente da formação dos alunos. Tendência que se manteve no período republicano e se tornando obrigatório no período Vargas (1930-1945) através do decreto-lei Nº 2072 como meio de criar um espírito disciplinado e patriótico além de uma ênfase no militarismo provavelmente por causa da Segunda Guerra Mundial.

Essa formação disciplinar, militar e patriótica não se daria em uma disciplina específica. Segundo Santos e Quadros:

A Educação Moral e Cívica não se daria em tempo limitado mediante a execução de um programa específico, como uma disciplina, mas resultaria, a cada momento, da forma de execução de todos os programas que dessem ensejo a esse objetivo e de um modo geral do próprio processo da vida escolar, que, em todas as atividades e circunstâncias, deveria transcorrer em termos de elevada dignidade e fervor patriótico (p. 140).

A partir de 1969 a Educação Moral e Cívica se torna disciplina obrigatória no 1º grau com suas variações OSPB no 2º grau e EPB no ensino superior. Santos e Quadros observam que essas disciplinas objetivava a construção do “tipo de cidadão desejado pelos detentores do poder, o bom brasileiro deveria ser religioso, obediente ao governo e patriota” (P. 147).

Um aspecto bastante positivo desse capítulo é o uso das imagens dos desfiles cívicos em períodos distintos da história do Brasil no século XX, realçando como o patriotismo é um elemento primordial da formação do cidadão que se esperava obter com a Educação Moral e Cívica.

O Capítulo cinco se torna essencial para a compreensão da Educação Moral e Cívica como disciplina e prática escolar. Nesse capítulo os autores analisam livros didáticos das disciplinas Educação Moral e Cívica, OSPB e EPB como fontes primárias. Seu recorte entre 1969 e 1985 se justifica a partir da implantação da disciplina Educação Moral e Cívica em 1969 até o fim do Regime Militar em 1985.2

É o capítulo primordial do livro, pois ao analisar os livros utilizados para ministrar a Educação Moral e Cívica os autores buscam desvendar as idéias centrais que eram ensinadas e encucadas por meio das obras. Nos onze livros analisados, Santos e Quadros descrevem as abordagens utilizadas pelos autores dos livros didáticos e as estratégias de ensino. Assim, por exemplo, a autora Edília Coelho Garcia em seu livro voltado para o 1º grau (1972) utiliza de uma personagem, o pré-adolescente Mauro, que escreve um diário onde anota assuntos importantes para se tornar um bom cidadão. Mauro era uma criança de onze anos que aprendia a cada dia o caminho certo a trilhar. Uma outra abordagem interessante é a de Duarte (1973) que inicia o seu livro sobre Moral e Cívica com uma descrição do mundo natural e “ defende a tese de que o universo funciona conforme uma ordem harmoniosa estabelecida por um grande arquiteto, um artista supremo: Deus” (SANTOS; QUADROS, 2019, p. 173). É importante salientar que Santos e Quadros já haviam abordado em outra parte do livro (p. 157-159) como a religiosidade Cristã era vista como parte importante da construção de uma cidadania no Brasil na visão de nossas elites.

No sexto e último capítulo, os autores buscam encontrar nos livros didáticos conteúdos que demonstrem como a implantação da Educação Moral e Cívica se tornou realmente uma estratégia de legitimação do Regime Militar de 1964. Assim os autores apontam quatro temas que demonstram essa busca de legitimidade:

  1. a) Legitimação do movimento civil e militar de 1964 nos livros de EMC.
  2. b) Do comunismo ao anticomunismo: o uso do medo como estratégia de legitimação.
  3. c) A cooperação com o Regime Militar: um exemplo de civismo.
  4. d) O Brasil como exemplo de democracia.

Ao analisar, por exemplo, o livro de Garcia (1972), construído a partir do diário do personagem Mauro, é descrita uma comemoração cívica do dia da Revolução de 31 de março de 1964, na qual alunos e professores comemoram a vida nova que chegou com os governos militares. Segundo Santos e Quadros ao analisar essa passagem:

A chegada dos militares ao poder é interpretada como um marco fundante típico de uma revolução, começo de uma vida nova para o futuro do país. Essa cena é acompanhada da frase que diz é tempo de construir, numa mensagem de união e cooperação de todos em nome da nação grande e forte (p. 189).

Os autores demostram outros exemplos de como o discurso contido nos livros didáticos de Educação Moral e Cívica buscaram dar um sentido positivo a derrubada de João Goulart e a instalação do Regime Militar. Nessa narrativa graças aos militares o Brasil trilhava, de novo, o caminho brilhante do futuro.

Outro tema que buscou dar legitimidade ao regime e justificar o golpe foi o anticomunismo. O Regime Militar só ocorreu, na visão dos autores dos livros de educação Moral e Cívica, pois existia um risco real de que o comunismo estava prestes a chegar ao poder. Assim alimentando o medo e idealizando a ação dos militares salvaram o Brasil (aqui o discurso religioso é apropriado pela chamada “Revolução Redentora”).

A obra mostra como os autores das obras didáticas de Educação Moral e Cívica buscaram sempre apontar os aspectos negativos do primeiro e os positivos do segundo. “Nos livros didáticos de EMC, o anticomunismo é um tema recorrente. Ele aparece em debates, em geral, contrapõem a democracia ao totalitarismo, a religiosidade ao o materialismo, ao a liberdade a escravidão, análises no mínimo maniqueístas” (p. 202). Assim os livros didáticos defendem que a intervenção dos militares foi a ação positiva e em prol dos brasileiros,

Em um terceiro momento, Santos e Quadros identificam que a Educação Moral e Cívica buscou criar um sentimento nacionalista nos estudantes e buscavam manter estratégias de legitimação ao dar a impressão que o patriotismo e civismo eram formas dos brasileiros participarem da construção do Estado Brasileiro. Os autores ao analisarem o livro Educação Moral e Cívica em Nova Metodologia Didática: Dinâmica de Grupo, de Teles (1970), apontam:

Conforme o autor, a EMC deve estar ao lado da propaganda do governo na construção de um ambiente de entusiasmo, nacionalismo e desenvolvimento. Lembrando que seu livroé de EMC, portanto para as séries iniciais da educação básica, o escritor aponta para a necessidade de que o exercício de convencimento e orientação comportamental deve ser iniciado ainda na infância, junto as séries do primário. A persuasão substitui preventivamente o uso da força; quanto maior a adesão dos cidadãos aos programas governamentais, menor seria o grau de eventuais resistências e, dessa forma, menos necessário seria o uso da força (p. 211).

Assim, mais do que aceitar o governo dos militares, o bom cidadão era aquele engajado na construção de um Brasil melhor, participando dos eventos cívicos, sendo bom estudante, bom profissional e obediente ao regime.

O último aspecto de legitimação aborda a tarefa mais dificil: querer construir a imagem do Regime Militar como uma democracia. É um malabarismo onde uma ditadura é um exemplo de democracia, apesar de ser tutelada pelos militares e ter a eleições totalmente controladas. Na análise de Santos e Quadros:

Pela exposição dos autores, é possível identificara seguinte mensagem para as crianças, jovens e adultos da educação básica e superior: ser nacionalista não significa adotar uma ditadura, mesmo que algumas ditaduras sejam nacionalistas. Assim o regime Militar brasileiro não poderia ser enquadrado como totalitário nem como ditadura. Por essa análise o Estado Militar supostamente preservava a democracia enquanto usava um nacionalismo, que na opinião do autor, era equilibrado, saudável e necessário, capaz de conciliar o indivíduo, a nação e a cultura universal (p. 221).

Dessa maneira, acreditamos que Santos e Quadros construíram uma análise consistente das estratégias de poder e de legitimação usadas pelos militares através do ensino da Educação Moral e Cívica, sendo o livro altamente recomendável para todos aqueles interessados em História do Brasil e História da Educação. Aí está uma contribuição relevante, inclusive, para se entender o momento político brasileiro atual, onde se voltou a falar em tal disciplina.

 Notas

1 Educação Moral e Cívica no 1º Grau; Organização Social e Política do Brasil (OSPB); Estudo dos Problemas Brasileiros (EPB).

2 A disciplina sobreviveu um pouco mais que o Regime Militar sendo revogada em 1993 pela lei Nº 8663 assinada pelo presidente Itamar Franco.


Resenhista

Leksel Nazareno Rezende – Mestrando em História pela PUC Goiás, Bolsista FAPEG. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SANTOS, Cristiano Alexandre; QUADROS, Eduardo Gusmão de. Educação Moral e cívica: uma estratégia psicossocial de legitimação de poder (1969-1985). Goiânia: Editora Espaço Acadêmico, 2019. Resenha de: REZENDE, Leksel Nazareno. Revista Mosaico. Goiânia, v. 13, p. 166-170, 2020. DOI 10.18224/mos.v13.n0.7929. Acessar publicação original [DR]

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