Egocentricidade e mística: um estudo antropológico – TUGENDHAT (C)

TUGENDHAT, Ernst. Egocentricidade e mística: um estudo antropológico. Trad. de Adriano Naves de Brito e Valerio Rohden. São Paulo: WMF M. Fontes, 2013. Resenha de: CESCO, Marcelo Lucas. Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 2, p. 204-208, maio/ago, 2014.

Ernest Tugendhat nasceu em 1930, em Brünn. Atualmente, vive em Tübingen. É professor emérito de Filosofia nas Universidades de Berlin e Tübingen. Sua obra, traduzida para o português, é composta por uma grande variedade de livros e artigos, entre eles se destacam Propedêutica lógico-semântica (1996), Lições introdutórias à filosofia da linguagem (2006) e Lições de ética (1997). Vem somar-se a estas obras traduzidas Egocentricidade e mística: um estudo antropológico, texto que será apresentado nesta resenha.

No referido texto, Tugendhat faz uma análise filosóficoantropológica, buscando, se não primeiramente responder, suscitar outras perspectivas de possíveis respostas para perguntas como: O que significa dizer “eu”? Por que os seres humanos buscam a paz de espírito? O que diferencia o homem dos outros animais? Como é que se dá a relação do homem com a vida e com a morte? Qual a diferença entre religião e mística? Este livro é dividido em duas grandes partes, a saber: na primeira, com o título de “Relacionar-se consigo mesmo”, o autor se foca mais em questões antropológicas, especificamente tentando responder o que ele entende por egocentricidade. Na segunda parte, sob o título “Tomar distância de si mesmo”, Tugendhat tem o foco voltado para as questões do que e como ele compreende a mística.

No primeiro capítulo do texto, “A linguagem proporcional e o dizer “eu””, Tugendhat procurou demonstrar, a partir da concepção do logos aristotélico, que a linguagem proporcional é fruto de uma evolução biológica, que distingue muitos dos traços existentes entre os homens e os outros animais. É através desta capacidade de se autorreferenciar que a noção de “eu” implica a distinção de conceitos e noções do que é considerado bom ou justo. Pois o autor constata que a relação social não é uma condição já estabelecida geneticamente, mas antes está condicionada por uma construção verbal e cultural. Uma das ideias centrais deste capítulo é que a linguagem humana pode ser predicativa, imperativa, volitiva, intencional, podendo ser negada ou afirmada, até mesmo ignorada. Ela não depende da situação. Esta mesma linguagem necessita de uma compreensão, de uma reciprocidade de referências.

Neste caso, o objeto A deve ser entendido como objeto A, e não objeto B. Nesta mesma perspectiva surge no texto a pergunta: Afinal o que significa dizer “eu”? Para o autor: “quando me atribuo predicados, façoo como uma pessoa que se distingue de todos os outros objetos e especialmente também de todas as outras pessoas”. (TUGENDHAT, p. 24).

Neste sentido, outro aspecto defendido é a ideia de que não se pode dizer “eu” só para si, pois, “tão logo eu posso dizer ‘eu’ a mim, uma multiplicidade de outros que dizem ‘eu’ torna-se uma realidade para mim”. (TUGENDHAT, p. 25).

O autor, no segundo capítulo, questiona a posição que a tradição tem do altruísmo, o conceito mais aceito deste é: visar o bem-estar de outrem. O autor assume uma posição própria em relação ao altruísmo; para ele, poderia se objetar: “Quando alguém se preocupa com o bemestar alheio (ou de uma coisa), não estaria fazendo isso seu próprio bemestar?” (TUGENDHAT, p. 37). Para ele, “a estrutura da egocentricidade também se mantém para aquele que se preocupa não somente com o seu próprio bem-estar, pois ele faz do bem-estar alheio o seu objetivo”. (TUGENDHAT, p. 38).

Esta lógica estrutural da egocentricidade permite demonstrar a diferença entre egocentricidade e egoísmo. Nesta perspectica, de tomar em consideração o outro, entra a noção de em que medida algo é ou não importante. Esta medida é o que define a importância da mística. É um distanciar de si, para se dirigir a um outro eu. É perceber que o seu eu está em um universo de tantos outros eus, assim tomando um distanciamento de si.

No terceiro capítulo, sob o título “O dizer “eu” no domínio prático: autoativação e imputabilidade” é apresentada a tese de que, dizer “eu” implica necessariamente em um “eu” gramatical. Pois, dizemos eu consigo, eu tomo posição, eu julgo. Esta metodologia analítica permite a Tugendhat dizer: “Portanto, poderíamos dizer que ter consciência de si próprio significa ter consciência de si como ser pensante em um espaço de manobra de tomada de posição.” (TUGENDHAT, p. 49). Ou seja, a realização ou não de algo no domínio prático depende do eu.

No quarto capítulo, “O bom do ponto de vista adverbial, prudencial e moral; honestidade intelectual”, a tese defendida é de que existem graus daquilo que consideramos bom. Há uma espécie de escala valorativa que parte do que definimos como sendo o pior para o que definimos como sendo o melhor, esta mesma escala é válida para tudo o que fazemos ou deixamos de fazer. Nesta perspectiva, Tugendhat, considera que o bom é algo que todos nós desejamos, mas que o atingimos apenas mediante o reconhecimento de um outro eu, ou até mesmo de forma intersubjetiva, de quão próximos ou distantes estamos deste determinado grau de bom. Para ele, “o moralmente bom se diferencia dos outros bons do ponto de vista adverbial porque as exigências são recíprocas e incondicionais”. (TUGENDHAT, p. 75). É uma exigência que nos permite perguntar: Por que agir moralmente? A consciência temporal é vista no capítulo cinco, a saber, “Relacionar-se com a vida e com a morte”, como um ponto fundamental da egocentricidade, já que esta consciência temporal é um dos elementos mais marcantes da diferenciação entre os homens e os animais. Ter consciência temporal significa ter consciência da morte, e, por conseguinte, ter consciência da própria vida. Tugendhat afirma: “Para animais que não possuem nenhuma consciência temporal, sua limitação não tem nenhum significado, pois eles não aspiram a nada além de seus limites. A egocentricidade humana, ao contrário, implica a preocupação com o futuro.” (TUGENDHAT, p. 107). É a partir desta noção de temporalidade que a egocentricidade se aproxima da mística, pois é a mística que permite que o homem se distancie de si, e neste distanciar se compreenda, ou para usar o vocabulário do texto, se espante.

Na segunda metade de sua obra, intitulada como Tomar distância de si mesmo, o autor parte para a análise da religião e da mística (capítulo 6). Nesta diferenciação, a religião e a mística servem como forma de recolhimento do indivíduo perante o medo da morte e das demais circunstâncias que a consciência temporal traz consigo. A religião e a mística são vistas pelo autor como uma atitude perante o “como” da vida. Auxiliam na compreensão de um transcendente. Nesta perspectiva, Deus e o universo podem ser considerados como sendo tudo aquilo que transcende o que está presente neste mundo. Os homens, para Tugendhat, possuem uma necessidade antropológica de se recolherem e se encontram nesta busca mística e/ou religiosa. Para Tugendhat, religião é vista como a crença em deuses ou em Deus e a mística como um experiência destas divindades ou com o universo. Neste processo de distanciamento, o homem percebe que, além de estar em um mundo repleto de eus também está inserido em uma totalidade de um universo.

Desta forma “os que dizem ‘eu’ vivem nos contrastes de pequeno-grande, dependente-poderoso, conhecimento-ignorância…” (TUGENDHAT, p.132).

Na busca da compreensão destes contrastes, o homem pode seguir por muitos caminhos místicos, como o budismo, o taoísmo, o catolicismo, a tradição judaica. Enfim, é uma busca pela compreensão do eu em uma consciência temporal, dentro de um espaço físico ilimitado.

A análise do último capítulo, “Espanto”, permite ao autor defender a tese de que o espanto ocorre quando algo torna-se perceptível, quando algo é notável. Pois, espanta-se com aquilo que carece de uma explicação, o espanto é algo que pede um aprofundamento, por exemplo, uma obra da arte, em que o belo nela espanta aquele que a vê. O espanto vai além da falta de compreensão de algo, pois esta falta de compreensão pode ser questionada e, com o aprofundamento destes questionamentos, pode-se passar a se compreender; porém, o espanto é algo que está além da capacidade de explicação. (TUGENDHAT, p. 175). No espanto não se exclui compreender o fato, mas o que se torna mais notável é que tal fato exista, por exemplo, a mesma obra de arte, que podemos explicá-la nos seus mínimos detalhes, mas ainda causa espanto somente por existir. É com esta análise que Tugendhat finaliza a segunda parte de sua obra: “Que espantoso que possamos nos espantar com o fato de que haja alguma coisa (ou que haja o mundo)!” (TUGENDHAT, p. 178).

A discussão do texto Egocentricidade e mística: um estudo antropológico não se resume a esta pequena explanação de algumas de suas teses e conceitos. A análise que fez Tugendhat, em que a antropologia é vista como a filosofia primeira, permite que possamos não apenas rever os conceitos tradicionais da filosofia, mas possamos perguntar sobre eles a partir de uma nova perspectiva. É desta forma que o autor, em seu apêndice final, demonstra que podemos percorrer a filosofia como uma forma de compreender o homem, mas sem esquecer que esta compreensão não é finita e completa. Esta sempre pode e deve ser revista.

Esta obra de Tugendhat demonstra uma enorme riqueza de compreensão da própria antropologia, filosofia e, principalmente, da relação entre o “eu” e o transcendental. Um estudo mais profundo de suas teses e argumentos pode se revelar em algo de grande importância para a discussão da filosofia contemporânea; além disso, sua interpretação nos permite melhor entender a constituição da condição humana.

Egocentricidade e mística: um estudo antropológico. Esta obra foi originalmente publicada em alemão com o título Egozentrizität und Mystik no ano de 2003, tendo sua tradução para o português feita pelos professores Adriano Neves de Brito e Valerio Rohden, sendo que Rohden não chegou a finalizar o trabalho devido a seu falecimento em 19/09/2010, cabendo ao professor Brito a finalização do trabalho.

Marcelo Lucas Cesco  – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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