Em guarda contra o “perigo vermelho”: O anticomunismo no Brasil (1917-1964) | Rodrigo Patto Sá Motta

Os trabalhos que discutem com propriedade o anticomunismo no Brasil, em sua maioria, são recentes. A dificuldade de acesso às fontes primárias e a preferência por estudos ligados aos movimentos de esquerda foram os maiores obstáculos para o crescimento desta vertente de pesquisa. No Brasil, ainda não existe uma historiografia consolidada sobre o ideário anticomunista, mas existem trabalhos interessantes e importantes para os historiadores que se interessam pelo tema – como, por exemplo, o livro de Rodrigo Patto Sá Motta. O autor procura estudar o anticomunismo entre 1917 e 1964, concentrando-se nos períodos de 1935-1937 e 1961-1964, alegando haver neles uma maior intensidade das manifestações anticomunistas.

Em relação à década de 1930, o autor identifica o manifesto escrito por Luiz Carlos Prestes – em maio de 1930, onde declarava sua adesão ao marxismo-leninismo e à causa do proletariado – como uma das primeiras influências de relevo no aumento do temor ao comunismo e, simultaneamente, dos sentimentos anticomunistas. Este aumento pode ser constatado, segundo ele, pela considerável expansão na publicação de livros anticomunistas. Além disto, o surgimento de várias greves, em 1934, em algumas capitais brasileiras, contribuiu para a criação de instrumentos repressivos legais, que se tornaram úteis ao governo na medida em que a esquerda ampliava a sua atuação. Entre 1930 e 1935, tais sentimentos estiveram ligados à percepção de que era necessária uma ofensiva em defesa da ordem, intensificada sobremaneira pela tentativa revolucionária comandada pelo PCB, em 1935, e pela Guerra Civil Espanhola, em 1936.

No período compreendido entre 1961 e 1964, segundo Motta, o anticomunismo se constitui em peça-chave para o entendimento da deflagração do golpe militar de 31 de março de 1964. Os motivos, para o autor, são de ordem interna e externa. No plano internacional, aponta a importância do entendimento da Revolução Cubana, que mergulhou a América Latina nas disputas entre os blocos liderados pela União Soviética e pelos Estados Unidos.

De outro modo, a visão de que o comunismo era uma ameaça interna se intensificou. Os motivos para esta animosidade estavam ligados ao surgimento de movimentos favoráveis a transformações sociais, como a Juventude Universitária Católica (JUC), a Ação Popular (AP), as Ligas Camponesas, a Política Operária (POLOP), além da reestruturação do PCB. Outrossim, os rancores anticomunistas foram alimentados por medidas governamentais, como a elaboração de uma política externa independente, que aproximou o país de nações não-alinhadas com os interesses norte-americanos; o reatamento das relações com Moscou e a condecoração, com a “Ordem do Cruzeiro do Sul”, oferecida a Che Guevara, pelo Presidente brasileiro.

Motta enfatiza que o surgimento de um grande número de organizações anticomunistas no período contribuiu para a formação do ambiente de radicalização e polarização ideológica, que teve o seu auge na reação conservadora de 1964. Dentre estas organizações, destaca o papel desempenhado pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), responsáveis pela indução e pela estruturação de vários grupos anticomunistas.

Embora reconheça dois momentos de intensificação das representações anticomunistas, assinala que entre as duas conjunturas existem diferenças e especificidades significativas. Por exemplo, se na primeira houve um fortalecimento da ortodoxia católica, onde o catolicismo assumiu o papel de principal força do “bem” a opor-se ao comunismo “maléfico”, na década de 1960 a ortodoxia católica foi substituída por uma espécie de “ecumenismo anticomunista”: a confluência de esforços de várias religiões para prevenção e combate ao comunismo.

Uma importante consideração feita pelo autor é a de que os líderes do golpe de 1964 não estavam usando o anticomunismo como fachada para justificar suas ações. Mesmo admitindo a existência de manipulações, argumenta que o temor por eles expresso durante a crise era efetivo. Desta maneira, o anticomunismo não foi mero pretexto, mas, antes, um sentimento pautado em convicções ideológicas, embora sua intensificação tenha sido largamente utilizada para fins escusos.

A maneira como Motta tratou o tema é particularmente interessante: estudou as manifestações anticomunistas, procurando compreender suas ações e representações, principalmente no que se refere ao seu ideário, ao seu imaginário e à sua iconografia. Tal tratamento permitiu ao autor perceber a existência de vários “anticomunismos”.

Para ele, o anticomunismo é composto por grupos políticos e projetos diversos. Neste sentido, o único ponto de união é a recusa ao comunismo e, se esta diversidade algumas vezes passa despercebida, é porque em alguns momentos de conflito agudo existe uma cooperação que contribui para nuançar as divergências existentes no interior das várias frentes anticomunistas. Como bem salienta, o anticomunismo é tão amplo que pode ser vislumbrado na direita, na esquerda, em grupos reacionários, em grupos conservadores, liberais e até esquerdistas, ainda que, no Brasil, o pensamento conservador e reacionário tenha sido majoritário.

Esta diversidade, segundo o autor, pode ser vista nas construções discursivas e imagéticas anticomunistas por meio de algumas idéias que eram mais bem recebidas que outras. Como exemplo, mostra o modo pelo qual argumentos fundamentados em valores religiosos católicos formaram a base principal da mobilização anticomunista, relegando outras motivações, como o liberalismo e o nacionalismo, a posições secundárias. Mesmo havendo uma forte influência internacional, salienta que havia uma dinâmica própria no campo das representações anticomunistas, ou seja, existiam fatores internos e externos compondo tais representações, que variavam de acordo com a conjuntura histórica.

Em relação aos documentos analisados, o material iconográfico utilizado por Motta está entre os mais interessantes. Tratando-os adequadamente, mostrou como desenhos, charges, caricaturas e histórias em quadrinhos foram utilizados e veiculados em publicações e impressos de diversos tipos – como livros, jornais, revistas, panfletos e cartazes – para fins de propaganda política. Em tais documentos, sobressaem as representações que associavam os comunistas ao demônio, a animais – polvo, serpente, bode, hidra, lobo, abutre – e a doenças e a temas correlatos – como peste, praga, bacilo, veneno, vírus, câncer, etc. Segundo Motta, a relação de proximidade com os temas “doença” e “infiltração” deu origem a um amplo leque de representações do comunismo, dentre elas as que apresentam os comunistas como uma ameaça vinda do exterior. Assim, eles, inimigos externos do país, se infiltrariam na organização social brasileira tal como agentes patológicos, colocando em risco a integridade da nação.

Em meio às representações do comunismo como um fenômeno ligado à ação de estrangeiros, o autor destaca a vertente anti-semita. As representações vinculando os judeus ao comunismo, segundo ele, originavam-se, geralmente, nos círculos fascistas e católicos. Em tais representações, os judeus teriam criado o comunismo por serem, supostamente, anticristãos, materialistas e internacionalistas, e a sua motivação seria o desejo de controlar o mundo. Como exemplo da importância do anti-semitismo no ideário anticomunista no final da década de 1930, Motta cita uma circular secreta, de junho de 1937, onde autoridades da política imigratória restringiam a entrada de judeus no país.

Um aspecto importante na divulgação do ideário anticomunista, enfatizado pelo autor, são as entidades brasileiras criadas com o fim de combater o comunismo. Em sua opinião, quanto maior o medo dele, mais forte a tendência ao surgimento de entidades dedicadas a combatê-lo. Por este motivo, argumenta que houve uma incidência mais intensa nos anos de 1935-1937 e, principalmente, entre 1961-1964, marcos das “duas grandes ondas anticomunistas” ocorridas no Brasil.

Contudo, ainda que optássemos pelo modelo proposto pelo autor, seria difícil não considerar como marco semelhante aos indicados o período que sucedeu à Segunda Guerra Mundial. Entre 1945 e 1954, o anticomunismo foi um fenômeno constante na história nacional, manifestando-se em vários setores sociais e, em nossa opinião, tão intenso e tão notado como nas conjunturas defendidas pelo autor. Motta, que procura estudar o anticomunismo como um fenômeno duradouro, captando as linhas de continuidade presentes ao longo da história1, argumenta que o anticomunismo foi mais intenso dentro dos marcos cronológicos acima, chegando a transformar-se em força política influente2. Por este motivo, em seu livro, não se dedica ao estudo das manifestações anticomunistas ocorridas entre 1939 e 1960, embora recorra várias vezes a material iconográfico anticomunista, produzido neste período, para enfatizar sua argüição. A distinção atribuída pelo autor está ligada a eventos políticos importantes, como os golpes ocorridos em 1937 e 1964. Todavia, avaliar o anticomunismo apenas a partir de marcos institucionais pode comprometer seriamente o entendimento do lugar deste fenômeno na história social brasileira – em um sentido amplo – até porque, como o próprio autor aponta, o anticomunismo não foi reproduzido somente através da ação do Estado, mas também através de organismos sociais e mesmo de indivíduos.

Além disto, deve-se observar que o anticomunismo gestado nos anos que sucederam ao final da Segunda Guerra Mundial foi de fundamental importância na edificação dos alicerces em que se fundaram os movimentos que, no início da década de 1960, visavam à desestabilização do regime constitucional. Deste modo, talvez fosse interessante estudar o anticomunismo como parte de um processo em que o social não pode ser aprisionado em “ondas” ou balizas estanques, pois extrapola conjunturas estabelecidas por demarcações pautadas em rupturas institucionais. Por fim, tais considerações não diminuem a qualidade e a originalidade com que Motta estudou o tema; apenas sugerem lacunas difíceis de serem evitadas, devido a um recorte cronológico tão extenso.

Notas

1Cf. Rodrigo Patto Sá Motta, Em guarda contra o “perigo vermelho”: O anticomunismo no Brasil (1917-1964), São Paulo, Perspectiva/FAPESP, 2002, p. XXV.

2Cf. Idem, p. XXIV.


Resenhista

Alexandre Busko Valim – Doutorando em História Social – Universidade Federal Fluminense – UFF. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: O anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva; FAPESP, 2002. Resenha de: VALIM, Alexandre Busko. Das grandes ondas aos grandes diques. Tempo. Niterói, v.10, n.19, 2005. Acessar publicação original [DR]

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