Em terreno movediço: biografia e história na obra de Octávio Tarquínio de Sousa – GONÇALVES (HH)

GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço: biografia e história na obra de Octávio Tarquínio de Sousa. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009, 348 p. Biografia e historiografia brasileira. Resenha de: TOLENTINO, Thiago Lenine Tito. Biografia e historiografia brasileira. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 6, p.199-203, março 2011.

Apesar de, historicamente, preencher espaços volumosos nas estantes de bibliotecas e nos catálogos editoriais, o gênero biográfico brasileiro é objeto de poucos estudos no âmbito da história da historiografia brasileira. Desde a criação do IHGB, em 1838, até meados do século XX, o fazer biográfico esteve, não sem sofrer mudanças significativas nos modos da escrita e das concepções acerca do gênero, sempre no horizonte da atividade do historiador brasileiro. O livro de Marcia de Almeida Gonçalves, fruto de sua tese de doutorado defendida em 2003 na FFLCH/USP, contribui, nesse sentido, de forma primordial aos estudos acerca do gênero biográfico brasileiro. A obra revela a riqueza de um debate, hoje esquecido, que, já nos anos 1920, pautava-se em torno de questões como as das relações da biografia com a história e com a literatura, assim como, no reconhecimento do gênero biográfico como perspectiva capaz de contemplar a importância da compreensão do indivíduo durante o pós-guerra, em diálogo com as descobertas psicanalíticas e com a consolidação da sociedade burguesa.

Na construção de uma análise historiográfica acerca do gênero biográfico, a autora optou por ter um personagem como ponto de partida: Octávio Tarquínio de Sousa. A escolha é bastante acertada. Tarquínio de Sousa (1889-1959), historiador/biógrafo relativamente desconhecido, foi o autor de uma série de biografias que, em 1958, foram reunidas sob o título de História dos Fundadores do Império do Brasil (1958). Vinte anos, porém, separam a História dos Fundadores da publicação da primeira biografia escrita pelo autor: Bernardo Pereira de Vasconcelos e seu tempo (1937). Durante todos esses anos, as reflexões de Octávio Tarquínio acerca do gênero biográfico ganharam variados contornos relacionados às diferentes influências intelectuais com as quais teve contato.

O livro de Gonçalves é particularmente fértil, justamente, na recomposição das perspectivas desenvolvidas acerca da biografia desde os anos 1920 até a década de 1950. Tais perspectivas tiveram ressonâncias distintas no interior da obra de Tarquínio de Sousa.

A produção biográfica de Tarquínio de Sousa desenvolveu-se em uma época que foi tida pelos escritores contemporâneos como um período de uma “epidemia biográfica”. Essa constatação pode ser verificada no fato de o gênero biográfico figurar, nos anos 1930/40, entre os cinco mais publicados pelas grandes editoras da época, como, por exemplo, a Cia Editora Nacional, a José Olympio, a Editora Globo e a Editora Irmãos Pongetti. A expressão “epidemia biográfica” foi cunhada pelo crítico literário e líder católico Tristão de Ataíde (Alceu Amoroso Lima). Segundo Tristão, o fenômeno seria motivado pela emergência de um “estado de espírito”, na sociedade daquela época, que estaria desenvolvendo uma “grande tendência à realidade”. A ideia de uma sedução realista que compeliu a intelectualidade a desenvolver um esforço cognitivo para decifrar e para apreender a realidade, principalmente, a realidade nacional, encontra ressonâncias em, praticamente, toda produção dos anos 1930 subscrita no topos “Estudos Brasileiros”.

O fazer biográfico, porém, era mobilizado segundo diferentes perspectivas e foi, justamente, em relação a este “anseio realista” que as biografias revelaram-se ora fugidias à exigência realista do conhecimento historiográfico, devido a suas relações com o literário e o ficcional; ora como, fundamentalmente, apropriadas à construção do saber histórico, justamente, por sua capacidade de humanização dos processos passados ao revelar suas conexões mais intrínsecas. Uma das concepções acerca da biografia que mais teria gerado debates na intelectualidade brasileira, durante os anos 1930/40, foi a “biografia moderna”.

A autora retrata a trajetória da “biografia moderna” desde seus criadores europeus – André Maurois, na França, Emil Ludwig, na Alemanha, e Lytton Strachey, na Inglaterra – até sua recepção pela intelectualidade brasileira.

Identificada com o contexto posterior à primeira guerra mundial, a “biografia moderna” estava inserida em um contexto de revolta antipositivista “revolta antipositivista”, no qual emerge uma nova concepção de natureza humana mediada pelo conceito de inconsciente, pela valorização do meio histórico e cultural na compreensão das possibilidades e limites da ação dos indivíduos no mundo, pela junção, em escalas diferenciadas, do intuitivo e do racional nos métodos cognitivos (GONÇALVES, 2009, p. 154-155).

A recepção da “biografia moderna” em terras brasileiras rapidamente assumiu um sentido de identificação entre o fazer biográfico e a criação literária.

Em 1929, o crítico literário Humberto de Campos comemorava o fato de, a partir do surgimento da “biografia moderna”, ficar reservado ao Instituto Histórico a “missão soturna e benemérita de arquivar certidões de batismo, de coligir testemunhos de contemporâneos, de colecionar citações de historiadores eminentes” (CAMPOS apud GONÇALVES, 2009, p. 110). As biografias, porém, seriam agora escritas por “homens de pensamento – pelos romancistas, pelos poetas, pelos críticos literários –, porque ela deixará de ser história, isto é, ciência, para tornar-se arte em uma de suas expressões mais puras e legítimas” (CAMPOS apud GONÇALVES, 2009, p. 110). A “biografia moderna” passou, então, a ser sinônimo de biografia romanceada, contrapondo-se às biografias históricas.

Autores como Sérgio Buarque de Hollanda, Alceu Amoroso Lima, Lúcia Miguel Pereira, Sylvio Elia, Nelson Werneck Sodré e Luiz Viana Filho iriam, nos anos 1930/40, compor o debate intelectual em torno da biografia, ora defendendo seu caráter histórico, ora promovendo sua relação com a ficção.

Na maior parte dos casos, procurava-se uma conciliação entre as duas perspectivas.

Octávio Tarquínio de Sousa, fio condutor da obra de Gonçalves, percebia o sentido daquela epidemia biográfica como um sintoma de uma época que seria caracterizada pela “inumana anulação do indivíduo” (SOUSA apud GONÇALVES, 2009, p. 207) e que, por “reação inevitável” (SOUSA apud GONÇALVES, 2009, p. 207), era ávida por livros em que os “homens apareçam de alma nua, homens particulares, homens diferentes uns dos outros, homens como a vida modela e destrói […] a vida, toda a vida em suas mais opostas e diversas faces” (SOUSA apud GONÇALVES, 2009, p. 207).

E foi a partir de um teórico reconhecido por seu destaque à importância do conceito de ‘vivência’ [Erlebnis] para a compreensão nas ciências humanas que Octávio Tarquínio sintetizou suas perspectivas acerca do fazer biográfico.

De fato, segundo o biógrafo brasileiro, “sua tarefa biográfica inspirou-se em boa parte das lições de Dilthey” (SOUSA apud GONÇALVES, 2009, p. 296).

Nota-se, portanto, que Octávio Tarquínio de Sousa percebia no gênero biográfico um viés valioso para a compreensão das realidades passadas. Reconhecia o valor historiográfico inestimável de biografias clássicas como Estadista no Império (1897-1898), de Joaquim Nabuco, e Dom João VI no Brasil 1808-1821 (1908), de Oliveira Lima. Ao mesmo tempo, Octávio Tarquínio considerava como fundamentais as inovações trazidas ao gênero biográfico por meio do surgimento da “biografia moderna”. Não obstante, foi com base no teórico alemão Wilhem Dilthey (1833-1911) que Tarquínio de Sousa conseguiu sistematizar o valor do gênero biográfico para a compreensão da história.

Tratava-se de se perceber a “conexão estrutural de uma época ou período” não em que o indivíduo e o mundo histórico tornam-se distintos, porém, infinitamente, relacionados: assim como os homens não podem ser compreendidos se extraídos de sua época histórica, seria impossível compreender os processos históricos sem a atuação dos indivíduos.

Nesse sentido, observa-se, em Octávio Tarquínio, a possibilidade de indivíduos tornarem-se representativos de determinadas épocas, pois os sujeitos seriam um “ponto de cruzamento” de nexos efetivos e estruturais expressivos de comunidades e de sistemas culturais históricos. As trajetórias individuais trazem como que marcada, em seus corpos e em suas mentes, todo um mundo histórico que assume sentidos singulares através de cada experiência individual. Ao mesmo tempo, considera-se a existência de “sujeitos supraindividuais” como o direito, a arte, a religião e a nação. Eles seriam “um sujeito especial, preso a uma unidade que envolveria muitos sistemas particulares” (GONÇALVES, 2009, p. 306). A compreensão em ciências humanas e, especificamente, na historiografia, teria, portanto, um caráter hermenêutico marcado pela compreensão e pela revivência e sempre associado ao reenvio constante dos feitos individuais aos traços mais gerais de um mundo histórico.

A perspectiva historista trazia em seu bojo o caráter irrepetível do passado, a sua desvinculação de qualquer sentido teleológico (providência, progresso, liberdade) e a impossibilidade de redução da vivência histórica a uma explicação que a esgotasse.

Conforme demonstra a autora, Octávio Tarquínio de Sousa foi seletivo na apropriação tanto do pensamento de Dilthey, quanto das demais perspectivas com as quais teve contato. De fato, em sua busca pela renovação e, mesmo, pela validação do gênero biográfico como viés epistemologicamente legítimo à produção do conhecimento historiográfico, Octávio Tarquínio de Sousa sistematizava uma série de referências na composição da narrativa biográfica: Documentos de época, como cartas, jornais e atas oficiais, eram relacionados tanto com a historiografia mais antiga sobre a história do Brasil, como Southey e Armitage, quanto com autores renovadores do saber histórico brasileiro, como Gilberto Freyre. O gênero biográfico traduziria tanto uma inovação, fruto da demanda contemporânea por uma interpretação das realidades passadas segundo significados que remetessem à “compreensão” e à “vivência”, quanto um esforço revisionista, que objetivava reavaliar e reestruturar o saber histórico constituído.

O livro de Gonçalves traz, portanto, uma inestimável contribuição à história da historiografia nacional, justamente, por abordar discussões acerca de gêneros pouco, ou quase nunca, observados pelos especialistas da disciplina. De fato, o que a renovação dos estudos em história da historiografia brasileira deve revelar é a complexidade de temáticas e de perspectivas nas quais os historiadores brasileiros debruçavam-se, principalmente, entre o fim do século XIX e a metade do século XX. As relações da história com a literatura, da história com a época na qual é produzida, as possibilidades da história na constituição das identidades regionais e nacional, os conflitos em torno do passado mais legítimo e verdadeiro e, portanto, os sentidos políticos inerentes à produção historiográfica constituíram temáticas centrais nas discussões historiográficas brasileiras do período citado. Trata-se, portanto, de revisitar autores e obras que, por muito tempo, foram considerados como, justificadamente, esquecidos, e tantos outros sequer lembrados, em função de seu atraso segundo uma concepção evolucionista da “ciência” histórica. Em tempos de problematização acerca do sentido evolucionista da “ciência histórica”, o diálogo com aquela produção passada torna-se, cada vez mais, inescapável à reflexão historiográfica contemporânea.

Referências

NABUCO, Joaquim. Estadista no Império. Rio de Janeiro: H Garnier, 1897- 1898. 3 vols.

LIMA, Oliveira. Dom João VI no Brasil 1808-1821. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comércio, 1908.

SOUSA, Octávio Tarquínio de. Fundadores do Império do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958. 10 vols.

SOUSA, Octávio Tarquínio de. Bernardo Pereira de Vasconcelos e seu tempo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937. Coleção Documentos Brasileiros.

Thiago Lenine Tito Tolentino – Doutorando Universidade Federal de Minas Gerais [email protected] Rua Henrique José Ribeiro, n 30, Trevo 31545010 – Belo Horizonte – MG Brasil.

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