Ensino de História | Kátia Abud, André Silva e Ronaldo Alves

Este livro faz parte de uma coleção intitulada “Ideias em Ação”, cuja coordenadora é autora de uma de suas obras, esta, intitulada Formação Continuada de Professores. Logo, sequências didáticas pormenorizadas são uma das coisas que se encontra a cada um de seus capítulos (dez no total). Fundado, portanto, num princípio organizacional de metodologia aplicada, seu leitor pode tanto aproveitá-las na íntegra, aplicando-as com seus educandos, quanto tomá-las como referencial para elaboração de suas próprias. Sendo aplicada, indica-se como meio de aprimoramento do senso didático de docência em História, haja vista que, tendo cada sequência um objeto diferente, cada uma delas é precedida por uma breve exposição teórica acerca de sua construção como documento e fonte de problematização. Destarte, nele, algo como a literatura ficcional tem seus níveis discursivos, enquanto obra, expostos, assim como suas estruturas estruturantes, enquanto mananciais de visões de mundo, operacionalizadas; procedimento análogo feito também para o uso de fotografias, mapas, músicas, filmes, jornais, artefatos museológicos e objetos de cultura material. Por conseguinte, cada introdução teórica é acompanhada da sequência didática de que é objeto, expostas esquematicamente como se parte de um plano de aula fossem. Alicerçado numa proposta prática de exercício de contextualização, se tivermos como finalidade um ensino pelo qual o sujeito possa aprender a problematizar os objetos do mundo, ao mesmo tempo em que torne-se capaz de os situar no interior de temporalidades distintas, seu leitor, caso docente, pode aprimorar-se como sujeito que reflete sua prática por ser instado, por ele, a especular sobre como problematizar sua ação didática tanto quanto como aprimorar sua intervenção pedagógica.

As noções de tempo histórico usadas pelos autores desdobram-se, lato sensu, da teoria braudeliana, pela qual a sincronia entrecruza-se por âmbitos de interação e mudança diferenciados. Há aqueles nos quais as interações ocorrem em maior profusão e aqueles em que as interações estendem-se numa cadeia de eventos repetitivos e duradouros. Assim, assumem que em cada objeto deva-se buscar identificar mudanças e permanências para que sua intelecção transcenda o aparente. Neste pormenor, as premissas de seus autores interligam-se aos parâmetros curriculares para o ensino de História produto da LDB de 1996 (PCNEM, 1999 & PCN+, 2002), o que dá a elas caráter didático coevo. Trabalhando com uma noção não explicitamente definida de processo histórico, consideram, ainda, este ser o ponto chave de uma ação intelectiva na aprendizagem de História, por vezes reiterando que o objeto é um locus no qual sua funcionalidade e sentido advém da interdependência de suas exterioridades (uma composição fotográfica se entrelaça com os hábitos, estes com a estrutura material de intercambiamento dos bens; esta, com os sistemas de crenças que dão suporte a sua funcionalidade, etc). Em tempo, a capacidade de operacionalizar tais noções de simbiose e exterioridade é proposta como o que deva ser, segundo o que é posto, o que torna o docente capaz de uma ação pedagógica muito mais plena e diversa.

Da mesma forma, seguindo uma matriz blochiana, propõem como ação de interpretação dos objetos não aquilo que estes encerram em si mesmos – “o documento sempre se define em relação a um terceiro” (Meneses, 1998: apud, p. 115) – mas a partir de problemas que o sujeito que conhece interpõe sobre eles – “não é o real, mas o inteligível” (Leite, 1997: apud, p. 44). Logo, como ação pedagógica, empregam o paradigma dos eixos temáticos, pelo qual define-se um tema, preferencialmente relacionado com o ordenamento presente do educando, do qual derivam-se as perguntas que serão feitas para objetos situados historicamente – “o sistema de probabilidade torna-se organizado [na mente durante a adolescência] e ocorre uma síntese entre acaso e operações” (Barca, 2000: apud: p. 64). Consideram, portanto, que existam diferentes processos envolvidos nas mudanças históricas e, ao propor uma didática pela qual suas atividades de aprendizagem visem a mobilização de operações cognitivas para interpretação de documentos e fontes, concluem que estas são exatamente o modo pelo qual tais processos se possam desvelar. Feito isto, o ensino-aprendizagem de História terá atingido seu ponto mais pleno, qual seja, o desenvolvimento da consciência histórica do educando, isto é, capacitá-lo a “refletir criticamente sobre a forma contemporânea de conceber e vivenciar o mundo e em que medida há o encontro e desencontro dessa mentalidade com o passado” (Abud: 2010, p. 48).

Todas as discussões teóricas que precedem a exposição das sequências didáticas de cada capítulo têm, portanto, como objetivo tanto elevar seus objetos a um estado inteligível quanto explicitar a diversidade de seus modos de apropriação. Os modos de se conceber os domínios da vida no interior de uma narrativa cinematográfica são relacionados a processos mais amplos como o fenômeno da urbanização industrial, por exemplo. Articulados a estes processos, tais modos ganham sentido – entendido o termo como ato de conhecimento, menos que como finalidade teleológica. Este efeito de sentido permitiria suprimir o estranhamento por modos de conduta e crenças que a princípio padecem indivíduos em idade escolar. Pedagogicamente, a superação do estranhamento permitiria a formação de uma conduta de alteridade. Atingido este nível, o docente teria tido êxito como facilitador de aprendizagem situando-se na zona de desenvolvimento proximal do educando, uma vez que o senso de alteridade consolida-se senão por meio de aparatos psico-cognitivos com densidade abstracional mais complexa. Contextualizar e examinar uma práxis por meio de um ou mais objetos de cultura material, segundo o método empregado pelos autores (outro de muitos exemplos), permite também que a ação pedagógica no ensino-aprendizagem de História atinja um nível ainda mais capacitante, conquanto revestida pelo protagonismo instrumentalizado que o docente previamente deve elaborar; seja este o de, ao desenvolver o senso de alteridade em relação a um domínio de temporalidade passado, excitar o domínio das operações cognitivas dos educandos para que reconheçam e compreendam que os domínios que envolvem sua condição no mundo em que vivem também estão articulados a condicionantes cuja origem e normas de funcionamento independem da trajetória ontogenética do indivíduo. Conseguido este estágio de desenvolvimento, o educando poderá se tornar, por suposto, apto a duas coisas, ambas caracteres da noção de consciência histórica pretendida: 1º) Examinar suas crenças, suas condutas, ou o modo como é situado e se situa na sociedade e avaliar tanto o sentido que elas têm para a funcionalidade da estrutura social na qual se movimenta quanto os sentidos que ele próprio pode protagonizar. 2º) Compreender esta funcionalidade ao tornar-se capaz de examinar os fatores genéticos conjunturais que as condicionam, assim como ser capaz de perceber que tais fatores podem não ser conjunturais, mas terem genealogia em estruturas passadas; atualizadas por novas intersecções processuais, como subproduto, suponho, de movimentos dialéticos cuja ordem seja preciso desvendar (não obstante isto exceder o propósito do livro). Assim, a competência atitudinal vinculada à proposta didático-pedagógica demonstrada pelos autores centra-se mais em ações de produção de conhecimento que na absorção de conclusões verbalizadas em forma de narrativas cuja lógica e procedimento escapam ao educando.

Por fim, historicamente, este livro possui ainda uma relevância que ultrapassa suas linhas, na medida em que, como outros, situa-se numa encruzilhada histórica. Tal qual o movimento da Escola Nova e o sócio-interacionismo freireano (1932-1964) foram solapados pelo currículo que suprimiu o ensino de História pelo de Educação Moral e Cívica e OSPB, implantado pelos estrategistas da Ditadura Civil-Militar perpetrada pelo Golpe de Estado de 1964, ele também insere-se num processo de debates e conferências vindo desde a Constituinte de 1988 (XI ANPED e Fórum Nacional de Defesa da Escola Pública) que – a despeito de redundar num ante-projeto proveniente da sociedade civil organizada, assim como outro, já este aprovado com emendas no Congresso e encaminhado pelo Executivo daquele período – tem em voga seus pressupostos teórico-metodológicos também em vias de serem igualmente defenestrados. Consumados na LDB de 1996 e em seus documentos congêneres (PCNs de 1998 e as Orientações Curriculares aos PCNs de 2002 e 2006), seus paradigmas acabam de ser gravemente aviltados. A Lei 13.415/2017, intitulada como lei do Novo Ensino Médio e instituída pelo governo federal empossado pelo golpe parlamentar de 2016, passa a estabelecer que o educando escolha já ao início do ensino médio um itinerário formativo entre cinco áreas do saber. Desse modo, apenas 60% da carga horária será constituída por uma base nacional curricular comum (BNCC), cujas componentes curriculares serão definidas futuramente pelo Conselho Nacional de Educação. Não há menção à História como disciplina obrigatória, apenas que a BNCC será objeto de regulamentação e que a estruturação do currículo por disciplinas é considerada um modo arcaico a ser substituído por áreas de conhecimento, nas quais, pode-se deduzir, os objetos e saberes das disciplinas tradicionais serão forçosamente diluídos.

Sendo o que é posto, a finalidade do saber historiográfico concebida tanto pelos autores do livro quanto dos PCNs terá que ser abandonada. Não há solução de continuidade entre uma ação pedagógica que se materialize por situações de aprendizagem que tenham como base “eixos [que] se organizam em torno da problematização de aspectos da existência social, envolvendo conceitos estruturadores” (PCN+: 2002, p. 83, vol. III) e outra que as problematizem por meio de meras assertivas conceituais. Mesmo porque, a primeira visa a extrapolar o ato de problematização pela singularização de sua própria episteme. O que significa dizer que através de atividades didáticas sequenciais, procura formar, procedimental e atitudinalmente, o domínio de competências capazes de consolidar um savoir-faire com o qual o educando possa “sintetizar as relações entre as durações e a constituição da memória e da identidade sociais (PCNEM: 1999, p. 306). Uma vez que estas relações não desvelam-se a menos que postas a luz de “diferentes temporalidades, especialmente da conjuntura e da longa duração” (Idem), o propósito todo é castrado. Em algum momento, para parcela significativa dos estudantes, já que institui-se a existência de cinco áreas curriculares e uma delas é a de formação técnica e profissional, seu itinerário formativo deverá excluir a área de “Ciências Humanas e Sociais Aplicadas”. Portanto, não há dedução que exclua o fato de que sua formação escolar tenha que ser limitada. Ainda mais que, mesmo na base comum, os conceitos, procedimentos e saberes próprios do ensino de História terão que ser sintetizados aos de outras 03 disciplinas (Geografia, Filosofia e Sociologia). O tempo é curto e as idiossincrasias um oceano. Logo, o aprendizado necessário para decodificar memórias, identidades e sistemas inseridos na diacronia da curta e da longa duração não deve ser a meta objetualizada. Nas palavras do MEC: o Novo Ensino Médio “… aproximará ainda mais a escola da realidade dos estudantes à luz das novas demandas profissionais do mercado de trabalho”[1]. Sendo esta uma de suas duas principais justificativas para a reorganização curricular posta em marcha, logo vê-se que a mesma não tem muito a ver com pedagogia.

Nota

1 PORTAL DO MEC, disponível em < http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=40361>, acessado em 19/05/2017.

Julio Cesar dos Santos Machado – Mestre em História Social pela FFLCH-USP.

ABUD, Kátia; SILVA, André; ALVES, Ronaldo. Ensino de História. São Paulo: Cengage Learning, 2013. Resenha de: MACHADO, Julio Cesar dos Santos. A fonte da consciência ou a consciência da fonte: didática de História por documentos. Crítica Histórica. Maceió, v.8, n.15, p.236-240, jul., 2017. Acessar publicação original [DR]

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