Espaços-tempos, saberes e vivências Kanhgág (Kaingang) | Revista Latino-Americana de História | 2021

Camila dos Santos e Silva com seu filho Kaingang
Camila dos Santos e Silva com seu filho – Povo Kaingang, do Paraná | Foto: Patrícia Carvalho

A Revista Latino-Americana de História (RLAH) vinculada ao corpo discente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos/RS), em seu número 26 (volume 10), com muita alegria apresenta edição dedicada ao povo Kanhgág. Desde a capa, dossiê, artigos e entrevistas, todos os materiais versam sobre aspectos da vida e pensamento kanhgág. Com exceção de um texto, submetido em 2020 e aprovado anteriormente à abertura da chamada para o dossiê, porém, inserido na proposta e contando com a aprovação do coordenador, a edição n.26 foi composta a partir da proposta: “Espaços-tempos, saberes e vivências Kaingang” coordenado pelo professor Kanhgág Dr. Bruno Ferreira, referência nas lutas e vitórias em relação à educação intercultural e diferenciada Kanhgág. Bruno é formador de outros formadores kanhgág e grande inspiração para quem almeja e age para a afirmação do direito à educação diferenciada.

Nesse sentido, acreditamos ser fundamental, para a realização de interculturalidades críticas, a ocupação de espaços acadêmicos por intelectuais indígenas para que, assim, possam trazer, divulgar e afirmar seus posicionamentos científicos. Portanto, é com esse objetivo que apresentamos a edição n. 26:

A arte da capa “Kanhgág fág” foi realizada por Anna Sant, estudante de Artes Visuais na Universidade Paulista (UNIP), especialmente para essa edição da RLAH. A araucária ou fág é um importante kanhkã (parente) na história e na vida dos kanhgág, representando várias gerações e espaços-tempos.

O primeiro artigo “Kanhgág Jykre Kar – Filosofia, educação kanhgág e a oralidade uma abertura de caminhos” tem como origem o texto da dissertação realizada pelo professor Dorvalino Refej Cardoso no Programa de Pós Graduação em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), defendida no ano de 2017. Professor Dorvalino é grande referência intelectual entre os kanhgág e também entre os acadêmicos não indígenas de diversas disciplinas que o consultam e o entrevistam para realização de seus trabalhos. Nesse artigo, Dorvalino traz um panorama sobre a organização kanhgág no Rio Grande do Sul e algumas memórias registradas pela oralidade, dando ênfase para a importância do pensamento indígena para uma abertura à interculturalidade.

Em Ponto de cultura Kanhgág Jãre caminho para implementação da Lei 11.645/2008, Susana Andréa Inácio Belfort, uma das sócias fundadoras da Organização Kanhgág “Instituto Kaingáng” (INKA), sediado na Terra Indígena (TI) Serrinha, Estado do Rio Grande do Sul e Magali Mendes de Menezes, professora do Programa de Pós Graduação em Educação na UFRGS, apresentam nesse artigo, iniciativas vivenciadas através do Ponto de Cultura “Kanhgág Jãre”, projeto do âmbito do INKA, demonstrando a contribuição destes para a implementação da Lei 11.645/2008 de forma decolonial, já que o INKA é uma organização Kanhgág que traz, desde 2002, o ponto de vista compromissado com os contextos kanhgág, fortalecendo também a interculturalidade de forma crítica.

O artigo “Trançado entre culturas, entre línguas: reflexões sobre a autoria e a coautoria” assinado coletivamente por Onorio Isaías de Moura, Mestre em Educação na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC); Sueli Krengre Candido, professora na Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Bento Pi Góg,situada na Terra indígena do Guarita e Graduada em Licenciatura Intercultural na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Ana Luisa Teixeira de Menezes, professora no departamento de psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Educação e de Psicologia Profissional da UNISC e Maria Cristina Graeff Wernz, doutora em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e secretária executiva na Coordenadoria de Educação a Distância, na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), apresentam importantes reflexões sobre as relações interculturais envolvidas nos processos de escrita acadêmica a partir de suas experiências de autoria e coautoria junto a metodologia “Vãfy”, aproximando, segundo os autores, mundos indígenas e não indígenas na busca de encontro e reciprocidade em pensamentos, no estar junto em ação e coatuação, ultrapassando os espaços universitários e mundos diversos, potencializando ações-reflexões de decolonialidade acadêmica.

Em “Um olhar sobre os impactos da pandemia de covid-19 na educação infantil em uma escola indígena”, Suzana Kagmu Mineiro, professora dos anos iniciais; Mestra em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Ciências Aplicadas de Cascavel e licenciada em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), apresenta pesquisa realizada na Terra Indígena Rio das Cobras, Estado do Paraná, onde acompanhou o processo de constituição e aplicação das leis sanitárias originadas pela pandemia de Covid-19 ao ensino pré-escolar kanhgág. Buscando verificar quais as estratégias foram utilizadas, Suzana verifica dificuldades e alguns resultados, evidenciando a necessidade de desenvolver metodologias e práticas individualizadas devido a complexidade das aulas não presenciais na educação infantil e realidade de cada família.

O artigo “Porque eu nasci dentro da história e agora eu tenho que continuar”: etnografia de projetos-de-vida kanhgág (kaingang)” de Gabriel Chaves Amorim, Mestre em Políticas e Práticas Sociais pelo Programa de Pós Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), é parte revisada e atualizada do seu trabalho de conclusão de curso (TCC) em História: “Narrativas e representações de trajetórias na formação da Terra Indígena Kanhgág Emã Por Fi Ga, São Leopoldo/RS” (2019). Nesse artigo, o autor apresenta a trajetória do importante kofã da etnia Kanhgág Kasú Kanheró, ligada ao seu projeto-de-vida no contexto de saída de Nonoai indo para o espaço urbano em Porto Alegre. Através das falas do próprio Kasú, as narrativas são delineadas por indexação desses discursos captados e transcritos buscando sistematizar suas memórias para as novas gerações.

Em “Civilização e progresso no oeste paulista: companhias de colonização, estrada de ferro e o genocídio dos índios kaingang”, Rubens Arantes Correa, professor do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e Doutor em História pela Univrsidade Estadual Paulista (UNESP), apresenta, através de revisão bibliográfica e fontes jornalísticas, breve panorama sobre o processo histórico de ocupação e colonização do oeste de São Paulo e sua relação com as companhias de colonização, expansão cafeeira e das estradas de ferro com as consequentes violências realizadas visando o extermínio dos grupos kanhgág que habitavam esses espaços. O autor conclui que a história do genocídio kanhgág confunde-se com a própria história do capitalismo implantado no Brasil e especialmente em São Paulo, evidenciando a relação entre os discursos de progresso e a possibilidade do Brasil fazer parte da modernidade.

O artigo “O papel da mulher na manutenção da língua Kaingang na terra indígena (TI) – Apucaraninha” da autora de Gislaine Domingues, Graduada em Letras Vernáculas e Clássicas; Especialista em Língua Portuguesa ; Mestra em Estudos da Linguagem; todos pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), trata de pesquisa realizada na Terra Indígena de Apucaraninha, Estado do Paraná buscando perceber qual a percepção de duas interlocutoras sobre falar a língua kanhgág, evidenciando a grande valorização feminina quanto à língua materna e sua reprodução como um pertencimento.

“O serviço de proteção aos índios na história da escolarização do povo kaingang (1940-1967)” de autoria de Juliana Schneider Medeiros, doutora em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Maria Aparecida Bergamaschi, professora na Faculdade de Educação da UFRGS, onde atua como professora e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Educação. Nesse artigo, que resulta da tese de Juliana com orientação de Maria Aparecida, é abordada a implementação, pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), da instituição escolar no interior das Terras Indígenas de Nonoai e Guarita, localizadas ao norte do Estado do Rio Grande do Sul, entre os anos de 1940 e 1967. Através de pesquisa documental no arquivo do Museu do Índio (RJ) e registro dos relatos orais dos kófa Kanhgág é evidenciado que o fracasso do SPI na implementação das escolas se deve ao foco agrícola que o órgão possuía, aliado à falta de investimentos em qualificação adequada, utilizando, para isso, parcerias com igrejas, Estados e municípios. As autoras ainda apontam que há indícios de que a FUNAI, órgão que substitui o SPI, aprofunda suas táticas entre os anos de 1970 e 1980, porém, informam ser necessário mais estudos sobre a atuação da FUNAI, bem como sobre a época posterior, a partir dos anos de 1990, em relação à re-ação Kanhgág, centrada na valorização cultural e linguística.

Finalizando os artigos da edição número 26, “Memórias de um professor indígena”, derivado do Trabalho de Conclusão de Curso em Pedagogia, no ano de 2019, do professor Josme Konhko Fortes (in memoriam). Orientado pelo professor Dr. Rodrigo Manoel Dias da Silva, esse texto é um memorial autobiográfico onde o autor apresenta suas lembranças de infância na Terra Indígena Nonoai, perpassando por todos os contextos históricos relacionados à sua trajetória e planos de vida até chegar ao momento de escrita do TCC, morando e dando aula para o 4º e 5º ano na comunidade Por Fi Ga em São Leopoldo. Em suas palavras “O que eu quero é passar a minha história” (KONHKO-FORTES, 2019, p. 57), essa publicação, portanto, vai cumprir o papel de repassar a história que ele viveu e escreveu, assim como ele gostaria. Segundo Josme dizia, foi um desafio escrever esse trabalho em português, pois, sua língua materna era o Kanhgág. Portanto, os “erros” de grafia em português foram mantidos do original e nos lembram que, apesar de ser a língua oficial e aceita academicamente junto do inglês e do espanhol, existem mais de 150 línguas não oficializadas no Brasil, fato geralmente desconsiderado ao exigir-se a escrita “correta” da língua portuguesa ou correção de trabalhos para adequa-los as regras editoriais, acabando por mascarar a realidade multi línguas do país e ainda, excluindo muitos intelectuais indígenas que não falam ou escrevem a língua do colonizador de maneira considerada “correta” para a academia. Desse modo, é preciso que as línguas indígenas sejam valorizadas em suas práticas e em respeito à memória e história do Josme não editamos seu texto. Dedicamos, assim como Josme o fez em seu TCC, essa publicação à sua família e em especial ao Bruno, Fred, Raiane, Ághata, Letícia Reféj e Dionara (in memoriam), seus filhos e esposa; ao professor Rodrigo, aos professores da pedagogia, em especial Sabrina e Janira, Laércio e Regina; aos seus alunos do 4º e 5º anos da Por Fi Ga; às colegas de curso e amigas Jaqueline, Graziela e Daniane.

A seção “Entrevistas” contém 3 títulos. O primeiro, “Refej e Konhko: ecologia dos saberes” traz duas breves entrevistas realizadas nos anos de 2018 e 2019 por Gabriel Chaves Amorim com Josme Konhko Fortes (in memoriam) e Dorvalino Refej Cardoso. A publicação dessas reflexões, segundo os autores, auxilia para a formação da ecologia de saberes interculturais.

A segunda entrevista, intitulada: “A história de uma liderança nas memórias de Andila Kaingáng”, foi realizada por Susana Andréa Inácio Belfort com Andila Kaingáng no contexto do doutorado em Educação de Susana. Traz as memórias de Andila, referência cultural kanhgág sobre seu pai e também liderança entre 1930 e 1965 na Terra Indígena Carreteiro, Rio Grande do Sul.

Finalizando essa edição, temos o texto: “Apresentando a trajetória de Bruno Ferreira”, contendo resumo da trajetória intelectual do coordenador dessa edição: Bruno Ferreira, bem como, memorial acadêmico de suas publicações e algumas reflexões acerca o ensino da história e importância da oralidade para o pensamento do estudante Kanhgág.

Há tỹ vĩ!


Organizador

Bruno Ferreira – Professor e formador kaingang, historiador. Doutor e Mestre em Educação – FACED/UFRGS.


Referências desta apresentação

FERREIRA, Bruno; DAMASCENO, Maira; DIAS, Paula Regina Pereira dos Santos Marques. Apresentação/editorial. Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.10, n.26, p. 05-07, ago./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.