Estudos literários | Fênix – Revista de História e Estudos Culturais | 2007

Apresentar aos nossos leitores o Dossiê “Estudos Literários” é uma tarefa que nos deixa muito honrados e nos dá grande alegria, visto que se trata de um conjunto diversificado e instigante de artigos, que, com certeza, demonstrará como foram ampliados entre nós os horizontes de trabalho com a literatura. E acompanhar mais de perto essa ampliação interessa a muitos pesquisadores de diferentes áreas, mas, sobretudo, àqueles que trabalham com História.

Com efeito, recentemente, as relações existentes entre História e Literatura ganharam novos impulsos com o fortalecimento da chamada História Cultural. E isso também contribuiu para a modificação de algumas propostas de trabalho com a literatura. Atualmente, não há mais como conferir legitimidade a pesquisas históricas que, além de desconsiderar as questões estético-formais, buscam na literatura apenas uma confirmação de dados de realidade conhecidos, antecipadamente, por meio de documentos considerados mais “confiáveis”. Pelo contrário, o que vemos em nossos dias é a crescente valorização e centralidade das obras literárias, sobretudo entre os historiadores da Cultura.

Preocupados, por exemplo, com as sensibilidades de uma época passada, esses profissionais há muito já perceberam que romances, contos ou poesias permitem recompor o modo como diversos agentes conceberam o mundo, de que maneira se autodefiniram, com que valores morais/éticos/políticos orientaram sua caminhada, como lidaram com seus temores/alegrias/preconceitos e, em meio ao turbilhão cotidiano, propuseram perspectivas futuras.

Ao longo dessa difícil jornada, esses pesquisadores, tateando veredas diversas, constataram que a literatura é um documento histórico privilegiado não só pelo seu conteúdo, mas, principalmente, pelas opções formais feitas por seus autores, pois essas escolhas estéticas, quando interrogadas com inteligência e perspicácia, podem igualmente trazer informações ricas acerca desses agentes e do tempo em que viveram. Por essa razão, também os trabalhos mais voltados para análises formais devem estar no foco de atenção dos historiadores que lidam com a História Cultural.

Com efeito, abrindo o Dossiê “Estudos Literários”, temos o interessantíssimo ensaio de Glória Braga Onelley, que se propõe a fazer um exame intertextual entre passagens de alguns Idílios de Teócrito e a Segunda Bucólica de Virgílio. Nessa complexa empreitada, ao desenvolver seu excelente ensaio, a estudiosa lança questões sobre algumas particularidades de composição dos poetas alexandrinos, em especial de Teócrito, que grande influência exerceu na formação literária de Virgílio, muito embora tenha a poesia pastoril recebido a marca, o timbre e o colorido do estilo pessoal do mantuano.

Por outro lado, o segundo artigo deste Dossiê tem particular interesse para os que se preocupam com as questões ligadas à chamada Estética da Recepção. Mais exatamente o que Adelaide Stooss-Herbertz propõe, a partir do livro Brasil, país do futuro, é um estudo da recepção da obra de Stefan Zweig, pelos leitores brasileiros, bem como da crítica e uma reflexão sobre a atualidade desta obra. Para analisar o papel do leitor na construção de sentidos para o texto, a autora parte da compreensão que o próprio Zweig tinha do leitor e da leitura e de conceitos desenvolvidos pela Estética da Recepção.

Não menos importantes e amadurecidas são as considerações de Márcia Maria de Medeiros. A autora demonstra, com acuidade e desenvoltura, a importância da obra de Geoffrey Chaucer para os estudiosos que se debruçam sobre a literatura inglesa do século XVI, particularmente para os que desejam resgatar a mentalidade, os usos e os costumes na Inglaterra daquele período.

Em seguida, o Dossiê “Estudos Literários” traz três trabalhos inovadores que se voltam para a problematização da noção de “Literatura do Terceiro Mundo”.

O primeiro, de Keila Carvalho e Janaína Cordeiro, analisa com competência a peça Adeus, Robinson, de Julio Cortázar. A preocupação principal das autoras é discutir os elementos a partir dos quais a literatura latino-americana resignifica e traduz a experiência imperialista, de forma a subverter o papel destinado ao mundo colonizado pelo discurso do dominador. Nesse sentido, pelo próprio contexto de produção dessa obra, elas dão especial ênfase para a conjuntura política dos anos 1970, mas, simultaneamente, recuperam o valor deste tipo de produção literária para a atual conjuntura, uma vez que, segundo a proposta apresentada no artigo, é possível resgatar o caráter de resistência cultural e política que a diferencia.

O segundo artigo é o de Donizeth Aparecido dos Santos. Neste artigo, o autor apresenta uma abordagem do sentimento de solidariedade entre os negros de todo o mundo, presente na poesia dos escritores africanos de língua portuguesa: Francisco José Tenreiro, Agostinho Neto, Viriato da Cruz e Noémia de Sousa, bem como dos afrobrasileiros Solano Trindade e Oliveira Silveira. De acordo com o autor do artigo, a solidariedade negra, oriunda do Pan-africanismo e difundida pelos movimentos culturais negros surgidos a partir dele, foi uma das maiores recorrências literárias na poesia africana de língua portuguesa dos anos 1940 e 1950 e na afro-brasileira da década de 1960 à de 1980.

Arrematando esse bloco de ensaios, temos a contribuição de Marcelo José Caetano. Inicialmente, o autor constata que muitas são as “Áfricas” e diversas são as literaturas africanas em língua portuguesa. Em seguida, tendo a obra literária de Agostinho Neto e Pepetela como norte reflexivo, Caetano se questiona a respeito dos lugares e não-lugares da África e sobre a possibilidade de uma mentalidade pós-colonial nos países africanos colonizados por Portugal. Em suas considerações finais, Marcelo José Caetano propõe uma reflexão por meio da qual os processos independentistas são considerados como necessários, mas, ao mesmo tempo, como insuficientes à emergência de uma mentalidade pós-colonial

No fechamento do Dossiê “Estudos Literários”, o leitor entrará em contato com dois instigantes estudos acerca da literatura brasileira.

O primeiro, escrito por Edwar de Alencar Castelo Branco, propõe uma provocativa abordagem histórica do legado literário de Torquato Neto, dando especial ênfase para a importância de textos como Arte e cultura popular, que não só permanecem inéditos, mas, sobretudo, são ofuscados pela intensidade do foco que se projeta sobre o “Torquato tropicalista”.

No segundo artigo que aborda o contexto literário brasileiro, Pedro Amaral, corajosamente, enfrenta as obras A carne, de Júlio Ribeiro, e Submundo da sociedade, de Adelaide Carraro, ambas representativas de dois momentos do Naturalismo brasileiro. O objetivo do autor é examinar se as obras em tela serviriam para corroborar o ponto de vista segundo o qual o Naturalismo, em suas diversas fases, seria fundamentalmente conservador, isto é, diluidor de conflitos que marcam a sociedade brasileira, ou se, diferentemente – esta é a hipótese de Pedro Amaral –, as obras de Ribeiro e Carraro seriam exemplos privilegiados de posturas contraditórias, hesitantes em relação a questões como o lugar da mulher e do negro na sociedade. Neste sentido, segundo o autor, refletiriam contradições e hesitações que, ontem como hoje, marcam o enfrentamento dessas questões no Brasil.

Como se vê, trata-se de uma amostragem muito representativa do alargamento de horizontes que, hoje em dia, os “Estudos Literários” experimentam. O resultado aqui apresentado, com certeza, incentivará os “historiadores de ofício” a não deixarem escapar as muitas oportunidades de trabalho oferecidas pelas obras literárias.

Com muita satisfação e contentamento, desejamos boa leitura a todos!


Organizadores

Alcides Freire Ramos – Membro da Linha de Pesquisa “Linguagens, Estética e Hermenêutica”, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia e integra o Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC) da mesma instituição. E-mail: [email protected]

Rosangela Patriota – Membro da Linha de Pesquisa “Linguagens, Estética e Hermenêutica”, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia e integra o Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC) da mesma instituição. E-mail:  [email protected]

Pedro Spinola Pereira – Membro da Linha de Pesquisa “Linguagens, Estética e Hermenêutica”, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia e integra o Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC) da mesma instituição. E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

RAMOS, Alcides Freire; PATRIOTA, Rosangela; CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Apresentação. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v.4, n.2, abr./jun. 2007. Acessar publicação original [DR]

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