Ética Prática | Peter Singer

Peter Singer é filósofo e professor em Princeton e Melbourne, seu livro, Ética Prática, é considerado um clássico no assunto. A primeira edição é de 1993 e desde então vem causando muita comoção devido às suas opiniões polêmicas. Para a quarta edição, o autor revisou todos os capítulos e adicionou um sobre as mudanças climáticas. Segundo o próprio Singer (2018, p. 38), “este livro pode ser entendido como uma tentativa de indicar de que maneira um utilitarista preferencial coerente lidaria com uma série de problemas polêmicos”. O objetivo, portanto, é o de ponderar filosoficamente desde questões cotidianas até assuntos mais polêmicos, como aborto, eutanásia, igualdade, estatuto moral dos animais, responsabilidade com os pobres e o meio ambiente, etc.

É importante entender a posição defendida pelo autor, que é a do utilitarismo preferencial, apesar de levar em consideração outras posições ao longo de suas argumentações. O utilitarismo é um tipo de consequencialismo, ou seja, “não partem de regras morais, mas de objetivos. Avaliam a qualidade das ações mediante uma verificação do quanto elas favorecem esses objetivos” (Ibid, p.21). A visão ainda se difere do utilitarismo clássico hedonista de Bentham e Mill, pois leva em conta uma igual consideração das preferências e interesses dos que são afetados por uma ação. O autor ressalta a distinção feita por R.M. Hare entre os planos de raciocínio moral (crítico) e o intuitivo, melhor adequado no uso cotidiano, onde “é melhor adotarmos alguns princípios éticos amplos e não nos desviarmos deles” (Ibid, p.128), princípios assegurados por experiências passadas, clássicos. Seguindo um conjunto de princípios intuitivos bem escolhidos, não é preciso tentar calcular consequências a cada decisão que fazemos.

O livro é dividido em 12 capítulos e um prefácio do autor, no qual discorre sobre a recepção da primeira edição e as mudanças que sofreu na quarta. Apesar das controvérsias causadas pelos assuntos mais polêmicos, como a eutanásia e o aborto, Singer não mudou de ideia em relação a essas questões, o que se deu foi uma atualização de dados factuais, por conta de novas descobertas científicas e esclarecimento de argumentos. A alteração filosófica mais importante de acordo com Singer foi com relação ao argumento da substituibilidade que pressupõe que é possível compensar a morte de um ser ao trazer a vida um novo semelhante, tanto em animais humanos quanto não humanos. A posição anterior baseada exclusivamente no utilitarismo preferencial mostrou-se incapaz de responder a dilemas que decorrem da substituibilidade, dilemas que o autor discute mas que agora não tem respostas tão certas.

No primeiro capítulo, Singer vai definir o que é ética, ou melhor, o que ela não é (não é boa apenas em teoria, não trata apenas sobre sexualidade, não se fundamenta na religião, não é relativa a sociedade em que se vive e não é só uma questão de predileções ou opiniões subjetivas), defendendo que a ética deve extrapolar o indivíduo, ser universal.

No segundo capítulo, investiga os fundamentos éticos do princípio de igualdade, e argumenta que a igualdade se encontra na igual consideração de interesses. Reconhece essa abordagem como um princípio mínimo de igualdade, que não impõe um tratamento igual, mas ainda que leve a um tratamento desigual, esse tratamento produz resultados mais igualitários.

A igual consideração de interesses é central na visão ética de Singer, que vai estendê-la para além da vida humana, para isso analisa a noção de senciência e os limites que isso impõe aos interesses. Comenta ainda sobre o conceito de pessoa, seres racionais, autoconscientes, reconhecendo-se como entidades distintas e que têm passado e um futuro, argumentando que animais não humanos poderiam então ser considerados pessoas. Já os seres sencientes, apesar de possuírem percepção das sensações, não são seres racionais ou autoconscientes, logo não podem ser considerados pessoas, no entanto, para o autor, isso não os exclui da igual consideração de interesses.

Singer embasa uma defesa pelos direitos dos animais, já que demonstra que alguns animais não humanos são pessoas, e mesmo aqueles que não o são, sua capacidade de percepção de sensações requer que sejam tratados eticamente. O argumento demonstra como as modernas fazendas industriais, e a maior parte da produção de origem animal nas sociedades industrializadas, são injustificáveis, pois aceitam os maus tratos em favor de custos mais baixos, quando existem outras formas mais eficientes de se conseguir uma dieta nutricional completa. Defende que dar continuidade a um sistema cruel de produção quando se tem outras opções é errado e especista. Isso também ocorre nas experiências com animais não humanos, já que nem todas aliviam mais sofrimentos do que provocam e os cientistas não aceitariam desenvolver as mesmas experiências em humanos na mesma posição ética dessas outras espécies, como órfãos portadores de lesões cerebrais graves e irreversíveis, demonstrando portanto um preconceito em favor de sua própria espécie. Outras formas de especismo citadas pelo autor são “o comércio de peles, a caça em todas as suas diversas modalidades, os circos, os rodeios, os zoológicos e os negócios que envolvem animais de estimação” (Ibid, p.100). Para Singer, esse especismo se dá principalmente por conta da doutrina da santidade da vida humana: “a concepção de que a vida humana tem um valor único está profundamente enraizada em nossa sociedade e é cultuada pelo direito” (Ibid, p.118).

O princípio da igual consideração de interesses é também aplicado à vida humana em situações polêmicas como o aborto e a eutanásia. Singer expressa a dificuldade em se delimitar uma linha divisória moralmente significativa para mostrar onde começa a vida, que normalmente se estabelece no nascimento, mas que pode ser estendida a estágios anteriores ou mesmo transferida para além, dependendo do argumento. Reconhece a plausibilidade legal de que o nascimento delimita a linha para o que se considera homicídio, ou seja, sua argumentação se aplica em termos de moralidade crítica, mas não para a tomada de decisões cotidianas. Define três tipos de eutanásia, a voluntária, involuntária e a não voluntária, na discussão levanta a questão de pessoas em estado vegetativo, bebês e pessoas com doenças debilitantes incuráveis, centralizando as questões da autoconsciência e autonomia. Trata ainda da eutanásia passiva e ativa, que seria a diferença entre permitir a morte e matar.

Nos capítulos 8 e 9, respectivamente sobre a obrigação de os ricos ajudarem os pobres e sobre as mudanças climáticas, o autor levanta a questão da doutrina de atos e das omissões, expandido o que foi apresentado quando discutida a eutanásia passiva e ativa, se existiria uma diferença moral entre “praticar um ato que tem determinadas consequências (…) e deixar de fazer algo que terá as mesmas consequências” (Ibid, p.273). Afirma que é a falta de vontade ou interesse que impede que mortes, fome e doenças sejam evitadas pois: “os ricos têm dinheiro que poderiam, sem colocar em risco seu bem-estar fundamental, transferir para os absolutamente pobres” (Ibid, p.290). Comenta sobre a relação que estabelecemos com o outro, com o diferente e como levamos em consideração seus interesses.

Na questão das mudanças climáticas, afirma que os cidadãos dos países industrializados ricos estão fazendo mal a bilhões de pessoas no planeta, por conta do estilo de vida que esses países levam e, apesar de não estarem atacando deliberadamente outro país, as ações causam efeitos piores do que uma guerra direta. Na tentativa de encontrar soluções, está a proposta das quotas equitativas, um princípio de resultado final, que não leva em consideração o passado e dá a todos uma quota da atmosfera de agora em diante, mais ou menos de duas toneladas de gás carbônico anual por pessoa, abrindo a possibilidade de um mercado internacional de carbono, já que vários países pobres consomem muito menos que a quota e poderiam vender para países industrializados. O problema na tomada de atitudes diante do problema da mudança climática está na difusão do mal que é feito, não se estabelece uma relação direta, porém, para o autor, é absurdo ignorar males diminutos, “mesmo que cada um de nós não faça uma diferença perceptível, somos individualmente responsáveis por uma parte do prejuízo total que provocamos coletivamente” (Ibid, p. 349). Relacionado a isso estaria também uma falta de compreensão das consequências das emissões de gases de efeito estufa por parte da maioria das pessoas. Singer defende a necessidade de acordos internacionais e de uma ética global para fundamentá-los.

No capítulo 10, o autor vai discutir e definir essa ética global, falando sobre uma expansão, além dos limites dos seres sencientes, pois quando se encara um problema ambiental há de se levar em conta conjuntos muito diferentes de valores. A tradição ocidental é a mistura das atitudes defendidas nos textos bíblicos e da filosofia da Grécia Antiga, que fazem da humanidade o centro do universo moral. De acordo com esse pensamento, a natureza não tem nenhum valor intrínseco, mas depende dos interesses humanos. Afirma que “a posição ética defendida neste livro amplia a ética da tradição ocidental dominante, mas, em alguns aspectos, é visivelmente do mesmo tipo” (Ibid, p.366). Um exemplo de expansão ética para além dos seres sencientes é a Ética da Terra de Aldo Leopold1, base para uma noção de Ecologia Profunda, desenvolvida em 1970 por Arne Nass², ao distinguir tendências superficiais e profundas no movimento ecológico, a segunda buscando uma preservação integral da biosfera, independente dos benefícios para os seres humanos, incluindo o solo, a água, as plantas e os animais.

O capítulo 11 busca responder se temos a obrigação moral de obedecer à lei, quando ela protege coisas que consideramos erradas. Utiliza exemplos reais de pessoas que transgrediram a lei para fazer o que acreditavam ser correto, como o caso de Oskar Schindler3, e defende que a transgressão pode ser justificada, a partir do respeito ao princípio da igualdade da consideração de interesse de si e do outro e que “não existe um preceito moral único que determine quando a desobediência é justificável, cada caso é único, e essas questões não podem ser resolvidas genericamente” (Ibid, p.400).

Por fim, no último capítulo, o autor pergunta: por que agir moralmente? Viver eticamente traz a felicidade, a auto realização? Singer diz que é enganadora a noção de que uma atitude ética será tomada apenas por ser correta, sem outros motivos; como humanos é inerente que levemos em consideração nossos próprios interesses, mas que o questionamento sobre o que é ser ético e o porquê disso é o caminho para uma conduta ética. Termina afirmando que:

Não se pode provar que temos todos a obrigação racional de reduzir a dor e o sofrimento e fazer deste mundo um lugar melhor para as pessoas. O comportamento eticamente indefensável nem sempre é irracional. É provável que sempre venhamos a precisar que as sanções legais e a pressão social nos deem razões adicionais para não cometermos infrações éticas graves (SINGER, 2018, p.436).

A comoção que Ética Prática causou, e ainda causa, mostra a relevância da obra de Peter Singer, ao ir contra tabus e pensamentos arraigados na cultura ocidental, leva o leitor a pensar os padrões éticos e a necessidade de, como diz o próprio autor (Ibid, p.30), “defender o modo como se vive, de dar-lhe uma razão de ser, de justifica-lo”.

Singer contribui muito para os estudos e desenvolvimento de uma ética ambiental, ao aplicar um princípio que englobe os animais não humanos, incentivando a consideração dos interesses de todas criaturas sencientes e questionando a santidade da vida humana. Mesmo com uma ética centrada no ser humano, defende que o fato de alguns seres pertencerem à nossa espécie não nos dá o direito de desconsiderar os interesses de outros animais, desenvolvendo argumentos de defesa aos direitos dos não humanos e também da preservação da natureza, ao considerar os interesses das gerações futuras. A partir do momento que se passa a pensar eticamente, extrapola-se as premissas mundanas e a razão ultrapassa os interesses pessoais.

Notas

1 LEOPOLD, Aldo. Pensar como uma montanha: A Sand County Almanac. Águas Santas, Portugal: Edições Sempre-em-pé, 2008.

2 NAESS, Arne. The shallow and the deep, long-range ecology movement. A summary. Inquiry. 16, 1, p. 95-100, 1973. DOI: 10.1080/00201747308601682  Disponível em: https://ecology.ethz.ch/. Acesso em 25/04/2019.

3 Oskar Schindler foi um industrial que na Alemanha nazista salvou cerca de 1200 judeus empregandoos em sua fábrica e recorrendo a várias ilegalidades para isso.

Referências

LEOPOLD, Aldo. Pensar como uma montanha: A Sand County Almanac. Águas Santas, Portugal: Edições Sempre-em-pé, 2008.

NAESS, Arne. The shallow and the deep, long-range ecology movement. A summary. Inquiry. 16, 1, p. 95-100, 1973. DOI: 10.1080/00201747308601682 Disponível em: https://ecology.ethz.ch/education/Readings_stuff. Acesso em 25/04/2019.

SINGER, Peter. Ética Prática. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2018.


Resenhistas

Sara Rocha Fritz – Graduanda em História na UFSC. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq. E-mail: [email protected]

Elenita Malta Pereira – Doutora em História na UFRGS. Professora de História na Universidade Federal de Rondonópolis (UFR). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SINGER, Peter. Ética Prática. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2018. Resenha de: FRITZ, Sara Rocha; PEREIRA, Elenita Malta. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 15, n. 29, p. 250- 253, Jan./Jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

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