Franco: la represión como sistema | Julio Aróstegui

Recentemente, a historiografia espanhola perdeu um de seus maiores expoentes. Em 28 de janeiro de 2013, faleceu o granadino Julio Aróstegui Sánchez, com 74 anos. A grande quantidade de manifestações publicadas na imprensa e na Internet, provenientes dos mais diversos lugares da Espanha e de vários outros países, dão uma ideia do amplo reconhecimento que possuía o catedrático emérito da Universidad Complutense de Madrid (UCM) e diretor da Cátedra Memoria Histórica del Siglo XX. No Brasil, sua obra mais conhecida é certamente La investigación histórica: teoría y método (Barcelona: Crítica, 1995), com uma tradução para o português publicada há alguns anos (Bauru: EDUSC, 2006).

A aposentadoria não afastou-o do trabalho. Na cátedra, em cujas atividades tive a satisfação de participar desde setembro de 2012, a presença de Aróstegui era constante. Com seu falecimento, os demais componentes do grupo viram-se diante de uma difícil questão: faria sentido dar continuidade às atividades da cátedra sem ele? Ao final, optaram pela criação do Seminario Complutense Historia, Cultura y Memoria, no âmbito do qual continuam desenvolvendo suas pesquisas e atividades acadêmicas.

Como investigador, Aróstegui estava no auge de sua carreira. Apenas duas semanas antes de falecer, publicara Largo Caballero: el tesón y la quimera (Madrid: Debate, 2013), monumental obra de quase mil páginas, nas quais o granadino disseca a trajetória de uma das figuras políticas de maior destaque na história da Espanha contemporânea. Menos de um ano antes, era publicado o livro Franco: la represión como sistema, objeto de análise nesta resenha. Apresentarei as principais características da obra e, ao final, assinalarei duas ideias que integram o cerne dos argumentos dos autores e que, a meu ver, estão entre os maiores méritos da publicação.

Organizado por Aróstegui, o livro foi elaborado em parceria com historiadores vinculados à cátedra e membros do projeto de pesquisa El régimen de Franco como sistema represivo: una ideología de exclusión y un aparato de control social, desenvolvido entre 2006 e 2009 sob coordenação do próprio Aróstegui.

A hipótese central da publicação é sugerida já na epígrafe, que cita uma afirmação feita em Barcelona, durante a Guerra Civil, por um dos principais líderes socialistas:

No vengo a negar ni a encubrirlo con mi silencio que en nuestras filas se han cometido desmanes, que se han realizado crímenes; lo que sí afirmo es que estos desmanes y esos crímenes se han producido bajo el espasmo que provoca en las muchedumbres la agresión alevosa e innoble, y lo que pretendo demonstrar es que los crímenes del otro lado son crímenes organizados previamente, preparados anticipadamente… (Indalecio Prieto, 28/08/1938).

De fato, a obra gira em torno dessa diferenciação entre a violência praticada pelos republicanos – violência caracterizada como essencialmente reativa, como defesa de si, dos seus e do regime democrático atacado pelos sublevados – e a promovida pelos sublevados de 1936, considerada como parte de uma estratégia golpista cuidadosamente planejada.

O livro possui uma organicidade rara em publicações coletivas, provavelmente uma consequência não apenas do fato de que a obra é síntese de anos de trabalho coletivo no âmbito do citado projeto de pesquisa, mas também da longa convivência dos autores na cátedra e, especialmente, da função aglutinadora e da liderança inquestionável de Aróstegui junto àqueles nove especialistas na história da Espanha contemporânea.

Os dez capítulos que compõem a obra foram organizados em três partes:

  1. I) El régimen: “derecho”, doctrina y lenguaje;
  2. II) La institucionalización de la represión;

III) Coerción, exclusión, reeducación.

Além da organicidade, outro aspecto notável é a qualidade da narrativa, clara, concisa e expressiva. Tratou-se de uma busca consciente e assumida por escrever de modo acessível a “un público amplio” (p. 11), mas sem diminuir a profundidade da análise. Não é de hoje que nós, historiadores, produzimos textos herméticos. Em contrapartida, não raro nos deparamos com textos que, embora bem escritos, carecem de profundidade analítica. Bloch já assinalara, na introdução de Apologie pour l’histoire, que a habilidade de comunicar-se com especialistas e leigos através de uma mesma narrativa é privilégio de poucos. Franco: la represión como sistema é um dos escassos exemplos que podemos utilizar como modelo, caso queiramos fazer parte desse seleto grupo.

O livro carece, contudo, de um maior aprofundamento em relação ao que, na historiografia espanhola, vem sendo designado como tardofranquismo. As menções à repressão naquele contexto do desarrollismo dos anos 1960 e da redemocratização dos 1970 são poucas e breves. Sem dúvida a obra ganharia qualitativamente se fosse incrementada com um reflexão específica sobre esse período. O já clássico estudo de Juan José del Águila (2001) sobre o “TOP” (Tribunal de Orden Público), assim como outras análises (p. e., Elorza, 2012; Ysàs, 2004), demonstram a importância do tema e o fato de que a diminuição quantitativa da repressão naquele contexto foi, na verdade, fruto de uma maior seletividade repressiva, efeito na política interna demandado por uma mudança na política externa, insatisfeita com as então crescentes críticas internacionais ao caráter antidemocrático do regime.

Evidentemente não se tratou de esquecimento ou desconhecimento, mas sim de uma opção, assumida já nas primeiras páginas: “(…) el presente libro intenta abordar algunas de las más significativas vertientes en las que la represión franquista vertió sus preocupaciones y somos perfectamente conscientes de que no agota su amplitud” (p. 14).

Os aspectos ideológicos daquele regime ditatorial são cuidadosamente dissecados ao longo da publicação. A ideologia é um crucial elemento aglutinador em qualquer sistema de controle social, um dos fatores que, direta ou indiretamente, vinculam diferentes agentes e órgãos e os motivam a cumprir determinadas funções. No franquismo não era diferente. Esse componente fundamental permeia toda a argumentação de Franco: la represión como sistema, constituindo uma das principais variáveis daquela análise. A despeito disso, é na primeira parte do livro que essa questão é analisada com mais detalhes. Nas outras duas partes, embora o ideológico permaneça como uma peça-chave, são enfocados outros aspectos daquele sistema repressivo. Trata-se, de fato, não apenas de destrinchar a formação, consolidação e funções de alguns dos principais fundamentos daquele regime ditatorial, mas sobretudo de esclarecer os vínculos e relações entre tais engrenagens repressivas.

O primeiro capítulo, escrito pelo próprio Aróstegui e intitulado “Coerción, violencia, exclusión: la dictadura de Franco como sistema represivo”, é a chave para compreensão da obra. Ali são estabelecidas as diretrizes analíticas do livro e delineados os vínculos lógicos e conceituais que conectam os capítulos subsequentes. Isso evidencia a importância de Aróstegui para a mencionada organicidade da publicação. Não se trata de uma “apresentação”, ao menos não no formato a que estamos acostumados. Além de situar o livro no âmbito da historiografia específica, Aróstegui estabelece os eixos da argumentação da obra, discorrendo sobre conceitos-chave para sua compreensão, como violência política, controle social, ideologia e, é claro, repressão. Essa é, segundo tal visão, constituída pelas “acciones de control emprendidas desde alguna forma de Poder (no necesariamente el estatal) carente de legitimidad para obligar a los que están sujetos a él a determinadas conductas bajo la acción real o la amenaza de la violencia explícita” (p. 49, grifo meu).

A legitimidade é, portanto, um aspecto essencial em tal argumentação, a ponto de caracterizar-se a repressão como “una perversión del control social” (p. 48, grifo meu). É o mesmo argumento de Indalecio Prieto: antes de negar os excessos cometidos por alguns republicanos, trata-se de entender as causas de tal violência, essencialmente distinta daquela praticada pelos sublevados e, depois de 1939, pelo regime franquista. Em processos históricos altamente complexos como o que o livro analisa, entender as diferentes e múltiplas relações de causalidade envolvidas é algo indispensável se a intenção é evitar as explicações fáceis, calcadas no senso comum.

Além do texto assinado por Aróstegui, compõem a primeira parte do livro outros dois capítulos. O cap. 2, “Delitos políticos, pecados democráticos”, foi elaborado por Manuel Álvaro Dueñas, professor de História Contemporânea na Universidad Autónoma de Madrid. Já o cap. 3, intitulado “Las fuentes doctrinales: pensamiento y lenguaje de la represión sistémica (1936-1948)”, foi escrito por Matilde Eiroa San Francisco, professora de História da Comunicação na Universidad Carlos III de Madrid. Em ambos, a questão central é a formação e imposição de uma ideologia, com a qual o grupo no poder buscava consolidar a crença na legitimidade de um regime marcado por sua “ilegitimidad de origen” (p. 58).

A institucionalização da repressão é o assunto principal da segunda parte da obra. O cap. 4, “La represión universal: un aparato estructurado y jerarquizado”, foi elaborado por Santiago Vega Sombría, professor de História no Instituto de Educación Secundariade Alcorcón (Madrid). Nele são analisados alguns dos principais métodos de repressão: fuzilamentos, “sacas” (assassinatos clandestinos produzidos durante translado de prisioneiros), expropriação de bens e expurgos, dentre outros.

O cap. 5, “‘Debemos condenar y condenamos’… Justicia militar y represión en España (1936-1948)”, foi escrito por Jorge Marco, professor de História Contemporânea da UCM. Marco concentra-se na constituição, após 1936, de um novo marco jurídico, calcado no ethos da justiça militar, e seu papel crucial naquele sistema repressivo.

Por fim, Gutmaro Gómez Bravo, que também é professor de História Contemporânea na UCM, assina o cap. 6, intitulado“Teología penitenciaria: las cárceles del régimen”. O sistema penitenciário franquista é analisado em sua processualidade, tendo em conta tanto as continuidades herdadas dos sistemas prisionais anteriores quanto suas especificidades, com ênfase para os diversos métodos repressivos adotados nas prisões, assim como para o uso retórico de concepções militares e religiosas na tentativa de legitimar as atividades repressivas promovidas pelo regime.

A terceira parte do livro trata da relação entre coerção, exclusão e reedução, elementos fundamentais daquele “sistema de represión”. Intitulado “Forzados y forzosos: el trabajo de los prisioneros al servicio de la victoria franquista”, o cap. 7 foi escrito por Mirta Núñez Díaz-Balart, professora de História do Jornalismo na UCM. Trata do uso de prisioneiros do regime como “mano de obra semiesclava” (p. 269), exploração que os ideólogos do regime tentavam justificar afirmando que era promovida “‘con el noble afán de hacerles útiles’” (p. 279).

O cap. 8, “Los confusos caminos del perdón: de la pena de muerte a la conmutación”, foi elaborado por Matilde Eiroa – que, como mencionado anteriormente, também assina o cap. 3 – em parceria com Ángeles Egido, catedrática de História Contemporânea da Universidad Nacional de Educación a Distancia. Ambas demonstram como o mecanismo das “conmutaciones de penas” foi parte importante da estratégia de controle social promovida por aquele regime ditatorial, fosse como uma válvula de escape para situações de superlotação carcerária (como ao final da Segunda Guerra), fosse como uma tentativa de construir, no país e fora dele, uma imagem positiva do regime. O grande número de“conmutadas” proporciona uma interessante reflexão sobre questões de gênero no âmbito da repressão à resistência republicana e antifranquista.

O cap. 9, “La represión cultural: libros destruidos, bibliotecas depuradas y lecturas vigiladas”, foi escrito por Ana Martínez Rus, professora de História Contemporânea da UCM. Trata da relação entre vigilância e ideologia, analisando o modo como eram reprimidas certas ideias consideradas perigosas pelo regime.

Encerra o livro o cap. 10, denominado “Vuelta atrás: la contrarreforma agraria”. Elaborado por Sergio Riesco, professor de História no Instituto de Educación Secundariade La Cabrera (Madrid), o capítulo aborda a atuação do sistema repressivo no campo, detalhando como as medidas de reforma agrária implementadas durante a II República foram destruídas pelo franquismo. Isso se deu através da expulsão de dezenas de milhares de famílias para devolução de terras, de expurgos de engenheiros agrônomos e outros profissionais que haviam feito parte do Instituto de Reforma Agraria, da “recomposición absolutamente conservadora de los poderes locales bajo control de los gobiernos civiles”, do “control de la mano de obra campesina a través de la Guardia Civil”, da “aniquilación de todo vestigio de paridad laboral entre patronos y obreros” e, ainda, por meio do “recurso a la jurisdicción civil para condenar al desahucio a todos aquellos campesinos no propietarios que no se atuvieran a las reglas, no tan nuevas, de sumisión por parte del Nuevo Estado” (p. 435).

Essa breve descrição do conteúdo de cada capítulo tem o único objetivo de proporcionar uma ideia geral a respeito da contribuição de cada autor. Muito mais poderia ser dito a respeito de cada tema e de cada texto. Prefiro, contudo, deixar que o leitor confira os detalhes por conta própria. Assim, encerrarei a resenha sublinhando duas importantes conclusões suportadas pela argumentação apresentada em Franco: la represión como sistema. Considerações que são, a meu ver, alguns dos maiores méritos do livro, dentre os vários que acredito terem sido evidenciados ao longo deste texto.

Destaco, primeiramente, a sustentação da especificidade do franquismo como regime político e como sistema de controle social, tanto em relação aos fascismos de que foi coetâneo em seus primórdios quanto em comparação com outros tipos de regimes de exceção. Como observou Aróstegui, se “en algunas de sus manifestaciones, el régimen de Franco no se distingue especialmente de cualquier otra especie de dictadura”, por outro lado “el modelo de legitimación que el régimen de Franco utiliza es enteramente distinto del que emplean los regímenes fascistas típicos, es decir, el italiano y alemán”(p. 58, grifos no original).

Outro importante mérito do livro tem a ver com a abordagem do franquismo como sistema repressivo. Trata-se de um enfoque que confere igual importância às partes e à relação entre as partes. Em tempos em que, na Espanha, no Brasil e em vários outros países, a tendência vertiginosa à especialização leva muitos historiadores a esquecer – consciente ou inconscientemente – das relações de seus objetos de análise com outros componentes dos contextos históricos nos quais estiveram inscritos, um livro como Franco: la represión como sistema não poderia ser mais oportuno.

Referências

ÁGUILA, Juan José del. El TOP: la represión de la libertad (1963-1977). Barcelona: Planeta, 2001.

ELORZA, Antonio. Los felices años sesenta: la etapa del “desarrollismo”. In: VIÑAS, Ángel (Ed.). En el combate por la historia: la República, la guerra civil, el franquismo. Barcelona: Pasado & Presente, 2012. p. 691-704.

YSÀS, Pere. Disidencia y subversión: la lucha del régimen franquista por su supervivencia


Resenhista

Jaime Valim Mansan – Doutorando em História na PUCRS. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

ARÓSTEGUI, Julio (Coord.). Franco: la represión como sistema. Barcelona: Flor de Viento Ediciones, 2012.Resenha de: MANSAN, Jaime Valim. O franquismo como sistema repressivo: alguns aspectos de uma das últimas obras de Julio Aróstegui. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 195-201, jan./jun. 2014. Acessar publicação original [DR]

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