Generations of feeling: a history of emotions, 600-1700 | Barbara Rosenwein

O plano das emoções e da subjetividade há muito não constitui um terreno estrangeiro para os historiadores. Basta evocar, por exemplo, a célebre obra de Johan Huizinga e sua imagem impactante de uma Idade Média tardia marcada pelo externar violento das emoções, de “uma devoção popular” ou coletiva inclinada às lágrimas e aos excessos piedosos, que exprimiam um “sentimento religioso” comum. Também Lucien Febvre e as gerações da Escola dos Annales – com nomes como Jean Delumeau e sua história do medo ou Philippe Ariès e a das atitudes perante a morte – haviam chamado a atenção para as chamadas “sensibilidades”, diluídas na noção mais ampla de “mentalidades”. No entanto, desde os anos 1980, tem sido possível demarcar a emergência de novos e promissores estudos sobre os “afetos” e “emoções”, que vieram dar forma à recente “história das emoções”, com propostas e abordagens que, decididamente, se distanciam daquelas traçadas pelos historiadores de outrora. Longe de tentar vislumbrar uma provável unidade que pudesse caracterizar um período ou sociedade no que se refere à experiência afetiva, ou de perscrutar um núcleo essencial e genuíno do sujeito – que se presume existir por detrás das normas sociais, ou como algo inefável e impossível de se historicizar –, esses estudos propõem desfazer a ideia de que as emoções e afetos são universais, de que pertencem estritamente à ordem da irracionalidade ou da intimidade, ou que foram alvo de um processo progressivo de domesticação, racional e civilizador, em relação ao qual o período medieval apareceria como tempo das paixões destemperadas – numa clara recusa da tese de Norbert Elias.

É em tal projeto de reorientação investigativa e teórica que se situa a obra de Barbara H. Rosenwein, uma das maiores responsáveis por abrir esse novo caminho, que desbrava desde finais da década de 1990 ao lado de outros estudiosos, como Piroska Nagy, Damien Boquet, Carla Casagrande, Silvana Vecchio, Simo Knuuttila, Thomas Dixon, dentre outros.1 Formada pela Universidade de Chicago, a professora Rosenwein leciona hoje na católica Loyola University of Chicago, tendo já passado, como convidada, pelas francesas École des Hautes Etudes en Sciences Sociales e École Normale Supérieure, bem como pelas universidades de Utrecht e Gotemburgo. É também membro do Centre for the History of the Emotions at Queen Mary University, em Londres, e da Medieval Academy of America. Em sua trajetória notável, constam obras de ampla divulgação como A Short History of the Middle Ages (University of Toronto Press, 2014), Reading the Middle Ages: Sources from Europe, Byzantium, and the Islamic World (University of Toronto Press, 2006), Debating the Middle Ages: Issues and Readings (Blackwell, 1998), The Making of the West: Peoples and Cultures (Martin’s Press, 2013). No âmbito da história das emoções, especificamente, cabe elencar o celebrado Emotional Communities in the Early Middle Ages, de 2006 (Cornell University).

Em Generations of Feeling: A History of Emotions 600-1700, um extenso volume publicado em 2016 pela Cambridge University Press, Barbara Rosenwein apresenta os resultados de uma pesquisa iniciada há cerca de dez anos, como ela própria destaca. A obra alinha-se à proposta de seu trabalho anterior ao fundamentar-se na ideia de emotional communities, que consagrou a historiadora. Com frequência referenciado e adotado por outros estudiosos, a designação “comunidades emocionais” tem-se mostrado uma ferramenta útil à autora em sua tentativa manifesta de se desviar de uma abordagem totalizante. Segundo Rosenwein, conquanto o potencial biológico “para sentir e expressar” o que hoje entendemos por “emoções” seja um atributo humano “universal”, um limite positivo, material, “o que essas emoções são, como são chamadas, como são avaliadas e sentidas e como são expressas (ou não), tudo isso é moldado pelas “comunidades emocionais’”. Tais comunidades são grupos com valores e modos particulares de sentir e exprimir suas emoções, segundo normas aceitas e partilhadas; podem ser variadas em um mesmo período, explica. Todavia, em que medida a autora se distanciará efetivamente da ideia de uma coerência subjacente à todas as expressões e experiências humanas em um dado momento e lugar – como implícito nas velhas noções de “mentalidades” ou “imaginário” –, é um questionamento que logo vem à mente do leitor mais cauteloso, diante daquilo que a autora promete já na introdução e que revela sua vívida preocupação teórica.

Mais precisamente, Barbara Rosenwein assinala, logo de partida, o intuito de mapear o conjunto de sentimentos, relações e valores que estão implícitos na expressão de uma determinada emoção. Um dos pontos fundamentais dessa abordagem que pretende se despir dos essencialismos, a autora ressalta não querer distinguir entre as supostas emoções “reais”, sentidas, e as emoções expressas, ou seja, entre o sincero e o dissimulado, já que o historiador das emoções apenas lida com os “sinais socias” destas, captáveis pelos gestos e palavras, não sendo possível avançar para além disso, em busca de um conteúdo oculto e supostamente mais verdadeiro – como sugerem alguns estudos, por exemplo, sobre o indivíduo.2 Uma vez que se trata, para ela, de compreender os valores que regem a vivência afetiva de uma dada comunidade, considerando a contingência da própria ideia de verdade contida na emoção, o fingimento também nos diz sobre as normas emocionais de um grupo. Da mesma maneira, os lugares-comuns, as expressões impensadas e formulaicas não são menos importantes e vazios de significado para o historiador, pois constituem as “heranças emocionais” disponíveis em um tempo.

Aprofundando seu raciocínio, Rosenwein reitera a recusa da ideia de oposição entre emoção e razão, ou afeto e cognição, como uma dicotomia invariante ou essencial da constituição humana,3 assim como a lógica teleológica que identifica o triunfo progressivo da racionalidade. Voltando-se para as diversas teorias sobre os “afetos” ou “paixões da alma”, da filosofia estoica aos teólogos e letrados cristãos, Agostinho, Gregório Magno, Alcuíno, Tomás de Aquino ou, mais tarde, Jean Gerson, o presente livro desmonta como as emoções foram codificadas, ordenadas, racionalizadas, de modos circunstanciais e contingentes, tendo em vista a efetivação de um determinado parâmetro de vida virtuosa num dado momento. O livro identifica as quebras nas configurações teóricas a partir de uma perspectiva diacrônica. Com uma orientação oposta à do ideial estóico da apatheia, da não perturbação emotiva, a autora avalia, por exemplo, como Cícero admitia a existência de bons e maus afetos e o papel fundamental dos primeiros na busca da virtude, já que, para tal, seria preciso, antes de tudo, “amar” a virtude e odiar o vício. As noções de amizade verdadeira, que para o filósofo amparavase na benevolência, na concordânica e no amor, são redefinidas mais tarde por Agostinho como sendo obra de Deus, sustentada na fé comum, cristã. A reorientação trazida pelo bispo de Hipona colocou, assim, o critério de distinção dos bons ou maus afetos ou paixões na aproximação ou afastamento em relação às coisas divinas e às virtudes. Nesse sentido, sendo as emoções um ato da vontade, seu valor, desde então, passou a depender do seu uso, e não delas em si mesmas, como pensavam os estóicos e o próprio Cícero.

No entanto, para além das sucessões temporais e de uma história das ideias, Rosenwein apresenta nesta obra o contributo de uma análise sincrônica que adentra o espaço das vivências sociais, completando seu esforço de captar as variâncias. É então que fica mais nítida a noção de “comunidades emocionais”. O livro mostra como as concepções de amor e amizade foram muito centrais para determinados grupos sociais. No primeiro momento de consolidação do poder merovíngio sob Clóvis, por exemplo, afirmava-se entre os nobres a superioridade dos laços familiares e maternais; o amor era o afeto entre irmãos, pais e filhos. Já em comunidades como a dos monges letrados vindos das famílias merovíngias, desvalorizaram-se os laços de sangue em defesa do ideal de desapego e o abandono da vida familiar; ali, o amor referia-se estritamente a Deus. Mais tarde, no século VII, novas normas emocionais conduziram a vida cortesã: quando os nobres alcançam maior independência perante os reis francos, o amor associou-se mais à amizade e à fidelidade do que aos vínculos sanguíneos. Voltando-se em seguida para os séculos XII e XIII, vemos como duas comunidades contemporâneas preocuparam-se com esses sentimentos. Entre os cistercienses ingleses de Rievaulx, o monge Aelred colocou sua ênfase no amor e na compaixão como vias para Deus, bem como na diferenciação entre amor e caritas, um mundano, e o outro mais nobre, espiritual. No mesmo período, para a comunidade guerreira dos condes de Toulouse, a afirmação das fidelidades não sanguíneas foi ainda mais decisiva e aparente nas manifestações de afeto. Enquanto para os condes o amor estava na fidelidade entre os pares, para os trovadores dessa mesma corte – transpondo as ansiedades sobre a traição do campo político para o das relações amorosas e sexuais –, referia-se à relação homem e mulher e se apresentava como fonte de desapontamento.

O atrativo de Generations of Feelings não está apenas em seu conteúdo, ou melhor, em sua elucidação de configurações históricas particulares, mas também em suas escolhas teóricas e metodológicas. Barbara Rosenwein escapa à fixidez da noção de “mentalidade” com sua proposta das “comunidades” ou “regimes emocionais”, que em seu livro não se assemelham a conceitos fixos e apriorismos, mas apresentam-se mais como formas de descrever uma dinâmica histórica que envolva a diversidade, a convivência e as sobreposições de padrões ou regimes diferentes. As comunidades emocionais não são isoladas nem homogêneas, nos termos da própria historiadora, “nenhuma sociedade fala a partir de uma única voz”; por isso, opta por explorar os grupos que considera mais representativos, a partir de um método de amostragem. Além disso, essas comunidades também são explicadas e criadas por teorias que as antecedem. Assim, sem pensar a partir de um fio trans-histórico, Rosenwein concilia sincronia e diacronia ao chamar a atenção para a disponibilidade e a potencialidade tanto das tradições mais antigas como das mais atuais, como a estoica e a cristã, que vão sendo sedimentadas em “gerações de sentimento”. Por outro lado, a autora esclarece que as persistências não excluem o fato de certas comunidades emocionais de mesmo um período não adotarem essas heranças da mesma maneira. O livro tem, portanto, o mérito de explanar as teorias sobre os afetos a partir dos parâmetros e critérios elaborados em seus tempos próprios, e não dos critérios prévios e externos do historiador, como feito por correntes historiográficas anteriores. Em outras palavras, quando fala em amor, medo ou compaixão, Rosenwein não pressupõe uma ideia sobre estes afetos, mas desdobra o que significou para um grupo específico, dentro de um enunciado específico, que relações estabelece com outros sentimentos, que carga de sentido carregam naquele contexto, relações estas que são casuais e não necessárias.

Todavia, ao explorar a subjetividade nas relações públicas e de poder, em documentos formais, como escrituras e contratos, a autora, apesar de cumprir o seu intento de abdicar da ideia de que as emoções se circunscrevem ao âmbito privado, envereda, com isso, por uma questão que já muito foi muito explorada – por exemplo, por Paul Veyne.4 A quebra do livro em capítulos que ora tratam de uma sociedade, ora descrevem longamente a teoria de um pensador, também podem constituir um ponto negativo, porque torna a obra um tanto desigual. Outro aspecto da análise que pode ser problemático, é que, embora a autora se preocupe em minimizar o peso anacrônico do termo “emoções”, inexistente até a modernidade – quando elenca, por exemplo, os termos usados na antiguidade e na Idade Média como “perturbações”, “afetos”, “afeições”, “paixões”, “movimentos da alma”, salientando que se “aproximam” do que nós hoje chamamos de “emoções” –, a insistência em falar “emoções” pode por vezes supor um conceito trans-temporal. Por outro lado, com o cuidado de evitar o anacronismo e de se desviar da impressão de que os valores e demais componentes das emoções são invariantes, o exame cuidadoso do vocabulário apresenta-se como um aspecto louvável do trabalho de Rosenwein. A historiadora oferece uma minuciosa listagem das palavras em língua latina e vernácula (inglês e francês) empregadas com mais frequência em enunciados de um grupo social, para referir a certas emoções, e elenca seus sentidos aproximados em cada situação. Assim, mesmo que as palavras sejam as mesmas, vemos como são preenchidas com significados muito diversos em cada caso.

Sendo assim, estamos diante de uma publicação importante onde se podem perscrutar os rumos da historiografia mais recente, os problemas que enfrenta e as soluções que encontra. Como definiu a autora, trata-se de uma “uma narrativa de continuidade e mudança”, sobre as maneiras nunca perenes com que se pensou a composição humana e suas disposições interiores, a psicologia e a antropologia. Qualquer que seja o seu campo de interesse, todo historiador pode se ver diante de descrições e expressões de afetos ou sentimentos, que de modo algum são irrelevantes para a compreensão de outros aspectos da sociedade que investiga; não apenas o historiador das emoções deve estar disposto a considerar os sentidos contingentes delas.

Notas

1 Destaco as publicações: BOQUET, Damien; NAGY, Piroska. Les sujets des émotions au Moyen Âge. Paris: Beauchesne, 2008; BOQUET, Damien; NAGY, Piroska. Sensible Moyen Âge: une histoire des émotions dans l´occident médieval. Paris: Seuil, 2015; KNUUTTILA, Simo. Emotions in ancient and medieval philosophy. Oxford/New York: Oxford University, 2004; DIXON, Thomas. From passions to emotions: the creation of a secular psychological category. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

2 Como é possível notar em alguns textos de Aron Gurevitch, como La naissance de l´individu dans l´Europe médiévale.

3 Como já apontado por outros estudiosos como Thomas Dixon, essa oposição é uma especificidade ocidental moderna. A ideia das emoções como algo não cognitivo, voluntário e corporal, oposto à racionalidade, é muito recente e resulta de um processo em que a tipologia dos afetos, apetites ou paixões foi condensada na categoria mais ampla das “emoções”, a partir do século XIX, com a secularização da psicologia.

4 Ver VEYNE, P.; VERNANT, J.-P; DUMONT, L.; RICOEUR, P.; DOLTO, F. VARELA, F.; PERCHERON, G. Indivíduo e Poder. Lisboa: edições 70, 1988.

Letícia Gonçalves Alfeu de Almeida – Universidade Estadual Paulista (UNESP). E-mail: [email protected]


ROSENWEIN, Barbara H. Generations of feeling: a history of emotions, 600-1700. Cambridge: Cambridge University Press, 2016. Resenha de: ALMEIDA, Letícia Gonçalves Alfeu de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.18, n.1, p. 253- 259, 2018. Acessar publicação original [DR]

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