Gênero e Subjetividades / Projeto História / 2012

A categoria / perspectiva gênero despontou frente às criticas ao conceito / teoria do patriarcado e em face da insuficiência dos corpos explicativos da persistência das desigualdades entre mulheres e homens.

O termo gênero é polissêmico e seu delineamento encontra-se envolto em polêmicas, apesar disso, observa-se certa unanimidade em aspectos que caracterizam a categoria como: reconhecimento do caráter relacional, constituição histórica, social e cultural, presença de instâncias de poder, além de identificar que os valores e características atribuídos a homens e mulheres são internalizados através de processos de subjetivação.

Apesar de a categoria gênero ser utilizada como sinônimo de mulher, ela é essencialmente relacional, subentendendo que a compreensão do feminino e do masculino não se viabiliza em separado e que estas relações são constituintes das culturas, encontrando-se marcadas por relações de poder, hierarquias e assimetrias que permeiam a trama social.

A expansão da incorporação da categoria / perspectiva de gênero gerou novas indagações, renovação temática, metodológica possibilitando a descoberta de temas, testemunhos, documentos, temporalidades e estratégias metodológicas. Ampliaram-se os questionamentos sobre a naturalização biológica e os universalismos, reconhecendo as diferenças como históricas, sociais e culturais, demonstrando que os comportamentos, sensibilidades e valores aceitos numa certa sociedade, local e momento, podem ser rejeitados em outras formas de organização e / ou em outros períodos.

Nesse sentido a perspectiva de gênero – relacional, posicional e situacional –, desestabiliza certezas e amplia as possibilidades de críticas sobre a noção de natureza humana, permitindo o questionamento de clivagens e a descoberta de subjetividades até então pouco visíveis e insondadas. Os questionamentos dos universalismos contribuíram para tornar os sujeitos mais plurais, desfazendo noções abstratas de “mulher” ou “homem” enquanto identidades únicas e a-históricas, para pensa-las como múltiplas, mutantes e diferenciadas no plano das configurações de práticas, prescrições, representações, apropriações e subjetivações.

As críticas às noções de identidade e papéis de gênero permitem observar subjetividades plurais, com suas contradições, migrações e fluidez, colocando-se como um desafio para a historiografia: problematizar a noção de sujeito universal e unitário.[1]

A subjetividade carrega a noção de “sujeição”, marcada pela imposição coercitiva de modelos culturais hegemônicos, através dos quais objetiva-se moldar, regular e controlar. Todavia, o processo de subjetivação não é um destino inexorável de serialização de indivíduos, comporta possibilidades de apropriação e reapropriação, subentendendo sujeitos agentes que recusam, selecionam e escolhem. Escolhas estas que, embora não sejam ilimitadas, abrem possibilidades para construção e reconstrução, permitindo a autonomia criativa.

A produção de subjetividades envolve instâncias individuais, coletivas e institucionais, circunstâncias histórico-sócio-culturais e biográficas (trajetória de vida e de trabalho) que atingem instituições, percepções e articulações. Num processo em que elementos são captados e reproduzidos, também rejeitados, adaptados, trocados, selecionados e eleitos, envolvendo contradições e tensões através das quais sujeitos reformulam suas propostas, práticas, representações e sentimentos.[2]

Dessa forma, brotam antagonismos e reconciliações entre as normas que se desejam impor e as práticas criadas e recriadas, mantendo-se as manifestações autônomas, vigorosas e inventivas, produzidas e experienciadas num processo histórico dinâmico e infindável, gerando subjetividades multifacetadas e multidimensionais que contém o gênero na sua transversalidade.

Este dossiê encontra-se permeado destes debates e discussões, o que demonstra a vitalidade da temática e o avanço das pesquisas. Reúne investigadores de diversas regiões do Brasil, contando com participações internacionais, um artigo inédito de Joan Scott, “Usos e abusos do gênero”,[3] apresentando reflexões sobre os debates dos últimos 30 anos.

Isto não deveria surpreender, pois as palavras têm histórias e múltiplos usos. Elas não só são elaboradas para expressar certas concepções, mas elas também têm diferentes efeitos retóricos. Embora minha primeira reação à controvérsia francesa sobre gênero tenha sido rejeitar a confusão da crítica católica, eu me percebi atraída pela reflexão sobre os múltiplos e conflituosos significados que gênero foi adquirindo no curso de sua adaptação relativamente recente numa referência gramatical a um termo que denota a relação social dos sexos. Em vez de (como eu equivocadamente pensei) tornar-se mais claro ao longo do tempo, gênero se tornou mais impreciso; o lugar de contestação, um conceito disputado na arena da política.

Dentre tantas possibilidades de análises sobre gênero e subjetividade percebe-se que corpo, desejos, emoções, representações, masculinidades, feminilidades, feminismos, memória e envelhecimento, cotidiano, sensibilidades, família e violência permeiam os artigos do presente dossiê.

Gabriela Cano focaliza as ansiedades de gênero a partir do processo de ingresso de mulheres em profissões classicamente pensadas como masculinas, tais como medicina e direito. As questões do feminismo foram problematizadas por Rachel Soihet, no artigo “Mulheres moldando esteticamente suas existências: feminismo como alavanca para uma sociedade mais justa”.

Ana Carolina Eiras Coelho Soares tece reflexões a respeito das representações da masculinidade heteronormativa a partir do romance inacabado de José de Alencar “Ex-homem”. Este escritor é foco de outro artigo intitulado “Gênero e mercado matrimonial em Senhora de José de Alencar” de Valdeci Rezende Borges, cuja análise centrou-se nas representações masculinas e femininas criadas no romance em questão. Ana Maria Marques apresenta uma análise da produção discursiva sobre envelhecimento e gênero nos anos 1980, através da leitura da revista Manchete. Enquanto Raquel de Barros Miguel discute o corpo na publicidade no artigo “Os cuidados de si e os cuidados do outro: lugares de gênero na publicidade da revista Capricho (décadas de 1950-1960)”.

As relações de gênero e a importância da família é a temática dos escritos de Antonio Otaviano Vieira Junior, “Família, violência e gênero: cotidiano familiar no Ceará (1780-1850)”. Do mesmo modo, Cristina Donza Cancela, da Universidade Federal do Pará, analisa as trajetórias amorosas e as dinâmicas da conjugalidade, no período da borracha na Amazônia.

A preocupação com a memória se destaca em outros artigos como: “O sentido da Memória e das relações de gênero na história da migração de mulheres camponesas brasiguaias” de Losandro Antonio Tedeschi; “Entre a História e a Memória: Práticas masculinas no Piauí oitocentista” de Pedro Vilarinho Castelo Branco. As masculinidades são analisadas também em “Viril, produtivo e honrado: a construção da identidade masculina em colégios católicos”, de Roseli Terezinha Boschilia.

Em “Desenvolvimento regional na perspectiva de gênero”, Temis Gomes Parente deu enfoque nas relações de gênero das falas das populações impactadas pela construção do reservatório da Usina Luís Eduardo Magalhães, no Tocantins.

Denise Bernuzzi de Santanna nos brinda com uma entrevista inédita com Anne Cova, investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, colocando a História das mulheres em debate.

Este dossiê também apresenta comunicações de pesquisa recentemente desenvolvidas, como as experiências das mulheres em Aragarças e Barra do Garças (1970 A 1990). Já priorizando as questões do corpo e da sexualidade, destacam-se “Despindo corpos: sexualidade, emoções e os novos significados do corpo feminino no Brasil entre 1961 e 1985” e “A moral dos Corpos: desejos, dispositivos e subjetividades em Fortaleza (1910-1950)”. As representações do feminino aparecem na literatura de Erico Veríssimo em “Gota de orvalho, na coroa dum lírio: Jóia do tempo” e no “Jornal das Senhoras: um projeto pedagógico: mulher, educação, maternidade e corpo (Rio de Janeiro a segunda metade do século XIX)”.

Compõe o volume, resenhas sobre obras lançadas recentemente “A nova História das Mulheres no Brasil”, publicação organizada por Carla Bassanezi Pinsk e Joana Maria Pedro; “Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz: Relações de gênero e História em José de Alencar” de Ana Carolina Eiras Coelho Soares e a análise de gênero de Tatiana Luiza Souza Coelho sobre “Só dói quando eu rio: o risível sob os traços de Ziraldo no Pasquim”.

Recomendaria aos leitores deixarem-se levar numa viagem através dos tempos, desvendando os segredos destas múltiplas histórias, observando experiências femininas e masculinas no passado através das análises argutas e dos questionamentos destes investigadores.

Notas

1. BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Nova York-Londres, Routledge, Chapman & Hall, 1990.

2. GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolítica – Cartografia do desejo. Petrópolis, Vozes, 1986.

3. Texto gentilmente traduzido por uma das organizadoras: Ana Carolina Eiras Coelho Soares.

Maria izilda Santos de Matos

Ana Carolina Eiras Coelho Soares


MATOS, Maria Izilda Santos de; SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 45, 2012. Acessar publicação original [DR]

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