Gênero e números: estudos sobre as mulheres em diferentes tempos e espaços / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2019

Em um país profundamente desigual como o Brasil, historicamente marcado pelas diferenças que separaram os distintos segmentos populacionais, é mais do que oportuna a publicação do Dossiê Gênero e Números. De fato, trata-se, mais do que nunca, de uma obrigação das historiadoras, dos historiadores, dos e das cientistas sociais refletir sobre a sociedade brasileira, do passado e do presente. Aliás, diga-se de passagem, estes pesquisadores e pesquisadoras, abraçaram com muita disposição, nestes tempos recentes e sombrios, o desafio de discutir questões candentesque atravessam e dividem o nosso país.

Especificamente, em relação ao tema do dossiê, pelo menos, desde a década de 1990, os estudos sobre as mulheres e as relações de gênero têm reveladosituações em que elas aparecemcomo sujeitos ativos, contrariando as imagens e as representações,teimosamente atreladas a elas,como a passividade, a ociosidade, o confinamento ao lar, sobretudo vinculadas ao nosso passado. Desde então, através do uso de conceitos caros à história e às ciências sociais em geral,as estudiosas e os estudiososvem debatendoa questão da diferença sexual, colocando em evidência as construções sociais sobre os papéis, que se esperava,fossemdesempenhados por homens e por mulheres.

A pertinência e a necessidade dessas análises mantêm-se, ainda no final da segunda década do século XXI, uma vez que os indicadores apontam que profundas diferenças persistem entre nós. Para ilustrar a recorrência das desigualdades que caracterizam a nossa sociedade, podemos trazer dados da Síntese dos Indicadores Sociais. Uma análise das condições de vida da população brasileira publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para o ano de 2019 (SIS) [1].

Alguns indicadores do SIS 2019 revelam o persistente quadro das desigualdades estruturais que marcam nossa sociedade, e que atingem mais duramenteos grupos populacionais considerados mais vulneráveis, como pretos ou pardos, mulheres e jovens. Através desses indicadores fica evidenciada a desigualdade, mostrando que ela podevariar muito (para pior, muitas vezes) dependendo da região brasileira a que se refere. Nesse quadro, as diferenças em relação às mulheres aparecem com muita intensidade, ainda nos tempos presentes.

Apesar disso, esses mesmos indicadores revelam que alguns avanços foram alcançados, especialmente no que diz respeito ao papel cada vez mais proeminente que as mulheres ocupam na atualidade, bastando lembrar, entre outros exemplos, sua inserção no mercado de trabalho, maior acesso à educação e, principalmente o fato de terem aumentado sua participação como “principais provedoras”, ao contribuírem com mais de 50% da renda familiar. Portanto, estudar o lugar das mulheres na sociedade brasileira, no presente e no passado, deve continuar a ser objeto de atenção dos estudiosos e das estudiosas.

Quando a chamada desse dossiê foi lançada, o objetivo era agregar estudos que tivessem como foco as relações de gênero e os novos (ou antigos) papéis assumidos pelas mulheres, em diferentes tempos e espaços, privilegiando a perspectiva quantitativa, por meio de análise de dados seriais no âmbito da história e das ciências sociais. A ideia central era dar uma contribuição para a discussão sobre a atuação e a inserção das mulheres na sociedade, explorando aportes teóricos, fontes e metodologias variadasque pudessem dar elementos para a discussão da temática. O desafio proposto era problematizar as tendências, as mudanças e, (por que não?), as permanências que os indicadores revelavam.

As expectativas das organizadoras foram contempladas. Os artigos que compõem o dossiê atingiram esses objetivos de maneira plena por diversas razões. Inicialmente, pela abrangência temporal e espacial dos trabalhos que integram o volume, acrescido do texto da sessão acadêmicos e pesquisa, que abordam distintas regiões, de norte a sul do país, no arco temporal que vai do século XVIII ao século XXI. De outra parte, a riqueza e diversidade dos temas e perspectivas teóricas para o estudo das mulheres e das relações de gênero no âmbito da política, da religião, da moda, debruçando-se sobre a participação das mulheres em partidos políticos, trajetórias e representações, mulheres que vivenciaram a prostituição, a escravidão e a liberdade, mulheres que no passado, como muitas que vivem no século XXI, estavam à cabeça e na chefia de seus domicílios. Valoriza ainda esse dossiê, o fato que muitos desses aportes foram trazidos por jovens investigadores / as, comprometidos / as com o uso de um aparato teórico-metodológico variado e que oferece evidências para uma estimulante reflexão.

Os artigos foram organizados considerando, inicialmente, o âmbito de cobertura espacial, secundado pelo recorte temporal. De fato, pode-se dizer que há dois conjuntos de trabalhos, que se organizaram em torno desses eixos. O primeiro conjunto integra textos que analisam o Brasil e / ou as regiões norte (Amazonas) e nordeste (Pernambuco). O segundo conjunto contempla os demais artigos que versam sobre o espaço meridional brasileiro, em momentos diferentes do tempo.

Assim, o primeiro conjunto composto por três trabalhos, dá uma ideia da amplitude das abordagens, da participação das mulheres na política, aos estudos relativos à prostituição, passando pela análise, através da religião, das relações de gênero. O primeiro texto, Notas sobre a participação partidária das comunistas no Brasil, de Theófilo Machado Rodrigues, discute as mulheres na política, através da inserção das mulheres no Partido Comunista do Brasil, que recentemente, segundo o autor tem sido identificado como o “partido das mulheres”. Enfocando a história do partido, dividida em quatro momentos, (dos anos 1920 à segunda década do século XXI), através de um conjunto muito rico e diverso de fontes, o autor analisa a participação das mulheres. Entre vários dados interessantes, revela que, desde o final da década de 1990 até o presente, o PC do B mantém uma bancada formada por mulheres que ultrapassa os 30%, se destacando assim de todo os demais partidos.

O texto seguinte, de Paulo Marreiro dos Santos Júnior, desloca o foco para o Amazonas, especificamente para a cidade de Manaus, nas duas primeiras décadas do século XX, analisando tema de grande interesse: a prostituição no período áureo da borracha. O artigo, intitulado, sugestivamente de Das ‘polacas’ e ‘francesinhas’ às ‘regateiras’ e ‘decantadas’. Crítica ao imaginário e historiografia da prostituição da Manaus da borracha, tem como fonte as ocorrências policiais, registradas no Jornal do Comércio, em um contexto de transformações várias na cidade, analisando a esquecida vida das prostitutas, no tempo em que a capital do Amazonas era conhecida como a „Paris dos Trópicos‟.

O terceiro estudo, que fecha que o conjunto inicial de textos que compõem o Dossiê, é da autoria de Rogério de Carvalho Veras e de Loyde Anne Carreiro Silva Veras. O artigo Castelos de Orquídeas: Rena Butler, as relações de gênero e a presença protestante no espaço público, analisa a trajetória de uma mulher, que viveu em Pernambuco, até meados do século XX. A experiência de vida de Mary Rena HumphreyButler, que foi empresária e missionária, casada com um médico e missionário protestante, coloca em evidência o papel desempenhado por ela no processo de consolidação do protestantismo no espaço público brasileiro. Sua trajetória lança luz sobre a, frequentemente, obscurecida participação de mulheres na missionação, abrindo perspectivas renovadas de interpretação para o campo de estudo das religiões no Brasil.

Os artigos que completam a segunda parte do dossiê têm como foco de estudo o Rio Grande do Sul e abrangem o arco temporal entre o período colonial e o século XXI. Formam um conjunto interessante, que reúne mulheres de condições muito variadas que viveram e vivem na região mais meridional do Brasil.

O artigo de Denize Terezinha Leal Freitas, Uma análise populacional dos domicílios no extremo sul da América portuguesa: mulheres chefes de fogos (Porto Alegre, século XVIII-XIX), analisa a atual capital gaúcha nos primeiros 50 anos de sua existência (1772-1822), quando a localidade ainda misturava elementos de caráter urbano e rural. A partir do uso de uma fonte muito preciosa, os Róis de Confessados e Comungados, elaborados pela Igreja Católica para controlar o sacramento da confissão / comunhão, a autora examina a presença das mulheres, colocando em evidência o protagonismo que elas tiveram, como chefes dos seus domicílios, posição desfrutada por não poucas mulheres, de várias „qualidades‟, desde as mulheres livres e brancas, passando pelas pardas e pretas, livres ou libertas, pelas ricas e pobres, em uma localidade em que havia mais homens que mulheres.

Do século XIX para o XXI. Esse é o salto temporal que o leitor fará, ao ler o artigo quetrata de tema atual e instigante, ligado ao estudo das indústrias criativas no segmento da moda. O foco é a região metropolitana de Porto Alegre, entre os anos de 2008 e 2017. Interessa ao trio de autores, Margarete PaneraiAraujo, Moisés Waismann e Judite Sanson de Bem, evidenciar a presença feminina nesse segmento profissional, analisando a pertinente questão das disparidades variadas que atravessam esse ramo de atividades, analisando o percentual de mulheres envolvidas, sua formação e escolaridade. Através do texto Indústria criativas no segmento da moda: distribuição dos vínculos por sexo e escolaridade na região metropolitana de Porto Alegre em 2008 e 2017, é interessante notar que, entre os resultados apresentados, embora as mulheres trabalhadoras sejam maioria no setor, são menos escolarizadas que os homens que dividem com elas esse segmento das indústrias criativas. Os dados utilizados são do Ministério da Economia, RAIS.

Também vinculado a esse dossiê, mas na sessão Acadêmicos e pesquisa o texto de Marina Haack, nos brinda com um estudo sobre Cachoeira do Sul, na segunda metade do século XIX, entre os anos de 1850 e 1888. A partir do aporte teórico da interseccionalidade, o artigoPensando mulheres escravizadas e libertas: um olhar interseccional para as cartas de Alforria de Cachoeira do Sul busca explorar as experiências femininas, privilegiando o segmento das escravizadas e libertas, que tinham sua vivência marcada não apenas pelo viés da cor, da idade e da naturalidade, mas, sobretudo por sua condição jurídica. A partir das fontes selecionadas, as cartas de liberdade, a autora adentra em temas fundamentais para essas mulheres, como o trabalho e a maternidade, lançando luzes sobre as diferenças que perpassam a experiência de escravidão que marcaram a vida daquelas mulheres.

O elenco dos textos que integram o dossiê, certamente, estimulará as leitoras e os leitores a desvendar e trilhar alguns dos instigantes caminhos de pesquisa que estão sendo explorados em nosso país e em nossas universidades. Trabalhos realizados com o esforço e a dedicação deinvestigadoras e investigadores, ainda que as condições de produção estejam prejudicadas com o contingenciamento / corte de verbas, e que esteja em causa o valor e a importância de suas contribuições, diante dos ataques perpetrados àqueles que dedicam sua vida e seu trabalho à produção de conhecimento de qualidade, a partir de bases científicas.

Boa leitura!

Nota

1. Essa publicação do IBGE foi lançada, pela primeira vez, em 1999, com o objetivo de traçar um quadro sintético das condições de vida da população brasileira e, desde então, dá subsídios para a construção de políticas públicas em todos os níveis do governo (SIS, 2019, p.9). Acesso em https: / / biblioteca.ibge.gov.br / visualizacao / livros / liv101678.pdf , janeiro de 2020

Ana Silvia Volpi Scott – Professora Doutora (UNICAMP)

Denize Terezinha Leal Freitas – Professora Doutora (UNIPAMPA / SEDUC-RS)

Organizadoras


SCOTT, Ana Silvia Volpi; FREITAS, Denize Terezinha Leal. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.11, n. 22, jul. / dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

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História e Gêneros / Embornal / 2016

O dossiê ora apresentado (História e Gênero) surge de um conjuto de preocupações com o tempo presente, haja vista a complexa conjutura sócio-política que vivenciamos no ano de 2016. Em um país cujo o histórico de relações democráticas foi sistematicamente atacado durante o século XX, a interrupção do governo da primeira presidenta mulher significa um golpe extremamente danoso e preocupante ao nosso Estado de direito, ameaçando se desdobrar de maneira perversa e diversa.

Entendemos que uma dessas ameaças diz respeito à questão de gênero, principalmente diante dos retrocessos materializados no avanço de segmentos conservadores da sociedade brasileira e (im)perfeitamente expresso na imagem do novo quadro ministerial composto exclusivamente por homens, e de idade elevada. Ainda que concordemos que os estudos de gênero tenham avançado no país nas últimas duas décadas, tanto pelo movimento das ruas como pelo trabalhos acadêmicos, entre outros, refletimos como este campo ainda se faz pertinente no sentido de entender e vivenciar a diversidade que se apresenta em nosso mundo, desconstruindo e dirimindo preconceitos tão arraigados em nossa formação social, cultural e histórica.

Trata-se, portanto, de um dossiê de estudos acadêmicos, sem dúvida. Contudo, uma reunião de trabalhos cujo propósito foi o de sublinhar as desigualdades de gênero. Aliás, dada a diversidade dos trabalhos recebidos, tanto no que diz respeito às temporalidades e espacialidades, como no que trata dos enfoques e temáticas, percebemos uma ligação não combinada, mas implícita entre as autoras e os autores que sistematicamente operaram descontruções de certezas, valores e parâmetros que historicamente tentaram abalizar as relações entre os sujeitos.

O trabalho de Tatiana Lima, por exemplo, é um convite aberto para repensarmos as relações estabelecidas no âmbito do espaço doméstico recifense, durante o século XIX. Percorrendo aquela cidade, a autora nos traz uma incessante movimentação a partir das experiências de vida dos indivíduos que executam o trabalho doméstico e transitam entre o público e o privado. Aliás, a própria noção de trabalho doméstico é posta em destaque para análise pormenorizada, além da observância de que a manutenção do serviço doméstico por escravos nas casas ricas e nas de famílias menos abastadas teve relação com a passagem para o trabalho livre, pois a alforria de cativas ocorreu não por humanidade, mas para garantir dependentes e aliados às mulheres em situação de apuros.

Também com foco nas experiências sociais de trabalhadoras domésticas e partindo das categorias de classe e de gênero, Michelle Arantes Costa Pascoa nos apresenta um texto ensaístico em que traz problematizações bastante pertinentes acerca de possíveis continuidades das relações de servidão provenientes do sistema escravocrata no Brasil.

Tomando questões relativas ao tempo presente, a autora assinala a importância do estudo das táticas de sobrevivência e resistência articuladas pelas criadas/empregadas domésticas, dentro e fora do recinto privado, na cidade de Fortaleza, durante o início do século XX.

Saindo da região Nordeste e em uma abordagem desafiadora e instigante, Ana Rita Fonteles problematiza os escritos dos alunos do principal centro formador de lideranças para o regime ditatorial estabelecido no Brasil, pós-1964: a Escola Superior de Guer ra. Perscruta os cursos destinados a civis e militares para analisar questões concernentes à formação de uma censura adaptada ao país daquele contexto em que os meios de comunicação de massa se expandiam, atingindo novos públicos e faixas etárias. A autora nos convida a refletir sobre as formas como a censura era pensada, tendo em vista a preocupação com a moral e a defesa do que seriam os “bons costumes”, dentro de um projeto marcado pela ideia de segurança nacional expressa, entre outros, no delineamento dos inimigos e dos comportamentos perigosos aos “bons costumes”. De fato, o artigo evidencia um projeto maior para o país, com ações efetivas no campo das políticas públicas e da produção cultural, para além da constatação simplória e abstrata de uma censura política e outra moral.

De forma dialógica, o trabalho de Thiago de Sales nos projeta para o contexto de ditadura civil-militar brasileira pós-64, e especifica um debate acerca do controle da rede televisiva, analisando os processos de censura nas telenovelas. Pacientemente, o autor descortina o universo dos censores conferindo centralidade aos pareceres emitidos por eles que são tratados como importantes fontes de análise. Projeta-nos assim para dentro da dinâmica da Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP) com o intuito de analisar as questões relativas ao gênero, mediante a problematização de comportamentos e identidades tratados pela DCDP. As narrativas de telenovelas da década de 1970 são pensadas então para além da comoção do público. São observadas no trabalho de antessala, de operação e acompanhamento, a partir das justificativas no corte de cenas consideradas “impróprias à moral”.

Ainda sobre a década de 1970, o artigo escrito por Rosemeri Moreira e Renata Virgínia Costa apresenta um conjunto de análises das relações de gênero em Guarapuava, Paraná, mas com foco na constituição de masculinidades. O caminho traçado pelas autoras joga luz nas edições do Jornal Esquema Oeste para investigar a relação entre masculinidade(s) e violência homicida/ criminalizada. A partir de uma minuciosa sistematização dos dados encontrados nas reportagens é possível visualizar neste trabalho um grande painel analítico que auxilia na demonstração da construção de um silenciamento das violências praticada por homens. Da construção narrativa jornalística, as autoras observam de maneira bastante pertinente como a “desrazão” é majorada para explicar os atos dos homens, quase sempre afastados da cidade modernizada e imersos em uma masculinidade própria da roça, do mundo rural, que não corresponde ao mundo urbano.

Quem perscruta essa urbanidade em sua intimidade é Jadson Stevan que nos convida a entrar em algumas casas, acessarmos algumas memórias e visitarmos a experiência de vida de cinco mulheres trabalhadoras domésticas. Ao lançar mão da História Oral como metodologia, amparado em entrevistas temáticas, e ao se apropriar da categoria gênero como ferramenta de análise, Jadson desvela os processos de invisibilidade a que as mulheres são submetidas na contemporaneidade, instigando-nos a pensar sobre os problemas específicos concernentes a essa classe trabalhadora, sobre as subjetividades e afetividades construídas por essas mulheres e muitas outras que transitam nas entrelinhas do seu texto, nas residências de Guarapuava e nas infinitas casas espalhadas pelo país. Através das memórias das trabalhadoras é possível visualizar e entender as estratégias que elas dispunham e operavam no campo do afeto para dirimir os seus problemas cotidianos.

Por fim, o artigo de Patrícia Rosalba Salvador Mouta Costa nos transporta para o outro lado do Atlântico. Em Espanha, a autora desvela como a temática educacional foi trabalhada pela Lei Orgânica 01/2004, principalmente no que diz respeito às medidas de proteção integral contra a violência de gênero naquele país. O trabalho toma como central a análise dos discurso produzidos no âmbito legislativo, pondo em reflexão a relação da referida lei com os tratados internacionais para a elaboração de normativas de violência de gênero, especificamente no que diz respeito a violência que tem como vítimas as mulheres, e como autor o homem. O texto de Patrícia trata ainda de como a questão educacional é abordada no âmbito da prevenção prevista pela Lei, percebendo formas distintas de (des)qualificar e discorrer sobre des(igualdades) que afetam homens e mulheres, o educando em si, em níveis educacionais diferentes.

De fato, um conjunto plural e diverso de textos, mas que se conectam entre si, mostrando como os estudos das relações de gênero não são apenas atuais, mas extremamente necessários e desafiadores. É a partir desses trabalhos, e de muitos outros que certamente virão, que acreditamos ser possível manter vivo e latente o debate sobre as questões de gênero.

Trabalhos resultados de pesquisas autônomas e que não se enquadram nos parâmetros ditados a partir de cima, ditados, por exemplo, pelos homens que tomaram o governo e lhe deram um novo (talvez velho) formato, igualmente ameaçadores do nosso Estado de direito.

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Gênero e Subjetividades / Projeto História / 2012

A categoria / perspectiva gênero despontou frente às criticas ao conceito / teoria do patriarcado e em face da insuficiência dos corpos explicativos da persistência das desigualdades entre mulheres e homens.

O termo gênero é polissêmico e seu delineamento encontra-se envolto em polêmicas, apesar disso, observa-se certa unanimidade em aspectos que caracterizam a categoria como: reconhecimento do caráter relacional, constituição histórica, social e cultural, presença de instâncias de poder, além de identificar que os valores e características atribuídos a homens e mulheres são internalizados através de processos de subjetivação.

Apesar de a categoria gênero ser utilizada como sinônimo de mulher, ela é essencialmente relacional, subentendendo que a compreensão do feminino e do masculino não se viabiliza em separado e que estas relações são constituintes das culturas, encontrando-se marcadas por relações de poder, hierarquias e assimetrias que permeiam a trama social.

A expansão da incorporação da categoria / perspectiva de gênero gerou novas indagações, renovação temática, metodológica possibilitando a descoberta de temas, testemunhos, documentos, temporalidades e estratégias metodológicas. Ampliaram-se os questionamentos sobre a naturalização biológica e os universalismos, reconhecendo as diferenças como históricas, sociais e culturais, demonstrando que os comportamentos, sensibilidades e valores aceitos numa certa sociedade, local e momento, podem ser rejeitados em outras formas de organização e / ou em outros períodos.

Nesse sentido a perspectiva de gênero – relacional, posicional e situacional –, desestabiliza certezas e amplia as possibilidades de críticas sobre a noção de natureza humana, permitindo o questionamento de clivagens e a descoberta de subjetividades até então pouco visíveis e insondadas. Os questionamentos dos universalismos contribuíram para tornar os sujeitos mais plurais, desfazendo noções abstratas de “mulher” ou “homem” enquanto identidades únicas e a-históricas, para pensa-las como múltiplas, mutantes e diferenciadas no plano das configurações de práticas, prescrições, representações, apropriações e subjetivações.

As críticas às noções de identidade e papéis de gênero permitem observar subjetividades plurais, com suas contradições, migrações e fluidez, colocando-se como um desafio para a historiografia: problematizar a noção de sujeito universal e unitário.[1]

A subjetividade carrega a noção de “sujeição”, marcada pela imposição coercitiva de modelos culturais hegemônicos, através dos quais objetiva-se moldar, regular e controlar. Todavia, o processo de subjetivação não é um destino inexorável de serialização de indivíduos, comporta possibilidades de apropriação e reapropriação, subentendendo sujeitos agentes que recusam, selecionam e escolhem. Escolhas estas que, embora não sejam ilimitadas, abrem possibilidades para construção e reconstrução, permitindo a autonomia criativa.

A produção de subjetividades envolve instâncias individuais, coletivas e institucionais, circunstâncias histórico-sócio-culturais e biográficas (trajetória de vida e de trabalho) que atingem instituições, percepções e articulações. Num processo em que elementos são captados e reproduzidos, também rejeitados, adaptados, trocados, selecionados e eleitos, envolvendo contradições e tensões através das quais sujeitos reformulam suas propostas, práticas, representações e sentimentos.[2]

Dessa forma, brotam antagonismos e reconciliações entre as normas que se desejam impor e as práticas criadas e recriadas, mantendo-se as manifestações autônomas, vigorosas e inventivas, produzidas e experienciadas num processo histórico dinâmico e infindável, gerando subjetividades multifacetadas e multidimensionais que contém o gênero na sua transversalidade.

Este dossiê encontra-se permeado destes debates e discussões, o que demonstra a vitalidade da temática e o avanço das pesquisas. Reúne investigadores de diversas regiões do Brasil, contando com participações internacionais, um artigo inédito de Joan Scott, “Usos e abusos do gênero”,[3] apresentando reflexões sobre os debates dos últimos 30 anos.

Isto não deveria surpreender, pois as palavras têm histórias e múltiplos usos. Elas não só são elaboradas para expressar certas concepções, mas elas também têm diferentes efeitos retóricos. Embora minha primeira reação à controvérsia francesa sobre gênero tenha sido rejeitar a confusão da crítica católica, eu me percebi atraída pela reflexão sobre os múltiplos e conflituosos significados que gênero foi adquirindo no curso de sua adaptação relativamente recente numa referência gramatical a um termo que denota a relação social dos sexos. Em vez de (como eu equivocadamente pensei) tornar-se mais claro ao longo do tempo, gênero se tornou mais impreciso; o lugar de contestação, um conceito disputado na arena da política.

Dentre tantas possibilidades de análises sobre gênero e subjetividade percebe-se que corpo, desejos, emoções, representações, masculinidades, feminilidades, feminismos, memória e envelhecimento, cotidiano, sensibilidades, família e violência permeiam os artigos do presente dossiê.

Gabriela Cano focaliza as ansiedades de gênero a partir do processo de ingresso de mulheres em profissões classicamente pensadas como masculinas, tais como medicina e direito. As questões do feminismo foram problematizadas por Rachel Soihet, no artigo “Mulheres moldando esteticamente suas existências: feminismo como alavanca para uma sociedade mais justa”.

Ana Carolina Eiras Coelho Soares tece reflexões a respeito das representações da masculinidade heteronormativa a partir do romance inacabado de José de Alencar “Ex-homem”. Este escritor é foco de outro artigo intitulado “Gênero e mercado matrimonial em Senhora de José de Alencar” de Valdeci Rezende Borges, cuja análise centrou-se nas representações masculinas e femininas criadas no romance em questão. Ana Maria Marques apresenta uma análise da produção discursiva sobre envelhecimento e gênero nos anos 1980, através da leitura da revista Manchete. Enquanto Raquel de Barros Miguel discute o corpo na publicidade no artigo “Os cuidados de si e os cuidados do outro: lugares de gênero na publicidade da revista Capricho (décadas de 1950-1960)”.

As relações de gênero e a importância da família é a temática dos escritos de Antonio Otaviano Vieira Junior, “Família, violência e gênero: cotidiano familiar no Ceará (1780-1850)”. Do mesmo modo, Cristina Donza Cancela, da Universidade Federal do Pará, analisa as trajetórias amorosas e as dinâmicas da conjugalidade, no período da borracha na Amazônia.

A preocupação com a memória se destaca em outros artigos como: “O sentido da Memória e das relações de gênero na história da migração de mulheres camponesas brasiguaias” de Losandro Antonio Tedeschi; “Entre a História e a Memória: Práticas masculinas no Piauí oitocentista” de Pedro Vilarinho Castelo Branco. As masculinidades são analisadas também em “Viril, produtivo e honrado: a construção da identidade masculina em colégios católicos”, de Roseli Terezinha Boschilia.

Em “Desenvolvimento regional na perspectiva de gênero”, Temis Gomes Parente deu enfoque nas relações de gênero das falas das populações impactadas pela construção do reservatório da Usina Luís Eduardo Magalhães, no Tocantins.

Denise Bernuzzi de Santanna nos brinda com uma entrevista inédita com Anne Cova, investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, colocando a História das mulheres em debate.

Este dossiê também apresenta comunicações de pesquisa recentemente desenvolvidas, como as experiências das mulheres em Aragarças e Barra do Garças (1970 A 1990). Já priorizando as questões do corpo e da sexualidade, destacam-se “Despindo corpos: sexualidade, emoções e os novos significados do corpo feminino no Brasil entre 1961 e 1985” e “A moral dos Corpos: desejos, dispositivos e subjetividades em Fortaleza (1910-1950)”. As representações do feminino aparecem na literatura de Erico Veríssimo em “Gota de orvalho, na coroa dum lírio: Jóia do tempo” e no “Jornal das Senhoras: um projeto pedagógico: mulher, educação, maternidade e corpo (Rio de Janeiro a segunda metade do século XIX)”.

Compõe o volume, resenhas sobre obras lançadas recentemente “A nova História das Mulheres no Brasil”, publicação organizada por Carla Bassanezi Pinsk e Joana Maria Pedro; “Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz: Relações de gênero e História em José de Alencar” de Ana Carolina Eiras Coelho Soares e a análise de gênero de Tatiana Luiza Souza Coelho sobre “Só dói quando eu rio: o risível sob os traços de Ziraldo no Pasquim”.

Recomendaria aos leitores deixarem-se levar numa viagem através dos tempos, desvendando os segredos destas múltiplas histórias, observando experiências femininas e masculinas no passado através das análises argutas e dos questionamentos destes investigadores.

Notas

1. BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Nova York-Londres, Routledge, Chapman & Hall, 1990.

2. GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolítica – Cartografia do desejo. Petrópolis, Vozes, 1986.

3. Texto gentilmente traduzido por uma das organizadoras: Ana Carolina Eiras Coelho Soares.

Maria izilda Santos de Matos

Ana Carolina Eiras Coelho Soares


MATOS, Maria Izilda Santos de; SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 45, 2012. Acessar publicação original [DR]

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