Gênese da Saúde Global: a Fundação Rockefeller no Caribe e na América Latina | Steven Palmer

PALMER Steven Saúde Global
Steven Palmer | Foto: University of Windsor/DailyNews

PALMER Gense da Saude Saúde GlobalIntrodução

Em 1927, Roquette-Pinto, o antropólogo e então Diretor do Museu Nacional, dedicou um capítulo de seu livro Seixos rolados: estudos brasileiros a Carl Friedrich Philipp von Martius, o pesquisador e taxonomista alemão que, no século XIX, se debruçou sobre a região da Amazônia no Brasil e publicou, na Revista do IHGB, diversos artigos e monografias acerca da natureza, doenças e raças encontradas em suas etnografias. Roquette-Pinto destaca alguns desses títulos encontrados na Revista do Instituto entre 1828-1844, tais como “Contribuições para a Ethnographia”, “A Natureza, as Doenças, a Medicina e os Remédios dos Primitivos Habitantes do Brasil”, guias sobre história, hábitos, usos e costumes regionais, e “um programma rigorosamente scientifico para quem desejasse escrever a historia desta nacionalidade [4]”. Celebrando as contribuições e a simpatia de von Martius pelo Brasil, o antropólogo brasileiro ressalta que “Falando aos descendentes de portuguezes escravocratas do meiado do seculo XIX, [von Martius] ousou dizer aos senhores que a historia patria havia de levar em conta o esforço dos seus captivos como elemento civilizador do paiz [5]”.

Roquette-Pinto e von Martius nos apontam que, historicamente, temos na Revista do IHGB espaço para exposição de diferentes interpretações e releituras acerca de nossas matrizes essenciais, tais como ambiental, racial, cultural e a sanitária. A presente resenha se beneficia dessa trajetória e explora a matriz sanitária brasileira, propondo o olhar para a saúde internacional como referência analítica para nossa formação nacional. Ao encontro das evidências sistematizadas por von Martius, Roquette-Pinto e por sanitaristas como Arthur Neiva e Belisário Penna, o médico Miguel Pereira vocalizou, em 1916: “o Brasil é um grande hospital”. De 1916- 1920 tivemos o Movimento pela Reforma da Saúde Pública, de cunho político e intelectual que denunciou a doença como principal obstáculo à civilização, combateu o determinismo racial e climático, e empenhou esforços pela remoção das endemias rurais. Não obstante, foi também em 1916 que a Fundação Rockefeller criou no Brasil “um ambicioso programa de combate à ancilostomíase, concomitante ao trabalho de controle da febre amarela e de educação médica [6]”.

O Brasil não figura entre os casos focalizados por Steven Palmer na obra em questão, que traça a gênese da saúde global a partir de 1913, com a criação da Comissão de Saúde Internacional (CSI) da Fundação Rockefeller (FR) como um laboratório para “descobrir e testar elementos de um sistema de saúde global para o século XX [7]” a partir das campanhas de combate à ancilostomíase ocorridas precisamente na América Central e Caribe, abrangendo Costa Rica, Porto Rico, Cuba, Trinidad Tobago, Guiana Britânica, Panamá, Nicarágua e Guatemala. Palmer nos indica que essas campanhas foram o prelúdio para a subsequente grande incursão da FR no Brasil, “país que absorveu mais da metade de todos os gas tos da instituição com saúde pública na América Latina no decorrer das três décadas seguintes e cerca de 15% dos seus gastos em todo o mundo, tornando-se a dianteira do seu trabalho com saúde internacional [8]”.

Ao longo dos nove capítulos de intensa pesquisa documental e historiográfica aliada ao profundo conhecimento de atores e pesquisadores do período em estudo, a tese de Palmer é sistematicamente reforçada com base em múltiplas evidências empíricas, bem como desagregada e refraseada de forma a ensejar a imersão crítico-reflexiva do leitor. Tal tese desafia suposta e aparente simplicidade: a saúde global se constitui no local. Para desenvolvê-la, indicamos os três principais pilares argumentativos do autor; pontuamos subsídios relevantes oferecidos pela pesquisa; e concluímos com ideias acerca da contribuição da obra para o “redescobrimento do Brasil República” à luz dos diversos encontros no campo da saúde que conceberam nossa formação nacional.

Pilares argumentativos do livro

1. Precedência Periférica: questionamento à correlação entre trópicos e atraso de forma a desafiar a afirmação de uma epistemologia linear e teleológica sobre saúde / doença construída no Norte Ocidental a partir da precedência de cosmologias locais – médicas, genéticas, biológicas, ambientais e metodológicas; 2. Tropicalização das Doenças: exposição do percurso iniciado pela colonização e escravidão enquanto empreendimentos de conquista e exploração de corpos, e do subsequente sistema atlântico-mediterrâneo de trabalho e exportação agrícola enquanto contexto que promoveu a multiplicação de doenças entre a população local dos trópicos. Visando a expansão da fronteira do desenvolvimento com o advento da Revolução Industrial, tal sistema se apoiava na imigração, na precarização laboral, na ruptura ecológico-social e na capitalização da agricultura – um convite à transmissão de parasitas, vírus e bactérias sem nacionalidade que, contudo, encontraram nos saberes locais, descalços e vulneráveis, eficientes métodos de tratamento; 3. O Mito da Filantropia Redentora: com base nas interlocuções entre os diretores norte-americanos e os protocolos científicos locais, Palmer engaja criticamente com a percepção da FR como dispositivo puramente imperialista dos EUA. Tais interlocuções, por sua vez, eram condições para a própria presença da fundação e para a realização de seu objetivo central nos países, qual seja, a continuidade do trabalho em saúde pública sob estrutura político-administrativa consolidada.

Precedência periférica

Nesse livro, Palmer observa atentamente o nascimento da saúde global e demarca a direção de sua evolução: da periferia para o centro do sistema capitalista mundial. A diferença que a FR fez nos trópicos se deu essencialmente devido ao seu poder financeiro e à sua presença transnacional.

Esses elementos foram capazes de fortalecer não só o aparato local de saúde pública onde a fundação se inseria, como também métodos e protocolos de comparação, coordenação e colaboração até então inexistentes e que muito contribuíram para o controle de epidemias e endemias nesses locais. Com isso, alicerçado naquilo que atraiu os médicos da FR à América Central e Caribe, Palmer desestabiliza epistemologias engessadas pela historiografia e literatura produzidas no Norte Ocidental tal como o caráter teleológico da ciência, destacando a heterogeneidade eficaz dos saberes médicos locais e seu potencial transformador, não só dos doentes em sadios, mas principalmente “de concepções racistas e preconceitos biomédicos dos supervisores de saúde dos EUA em um comprometimento etnográfico com culturas populares de saúde [9]”.

Tal vertente argumentativa perpassa o livro sob distintos prismas, como por exemplo as relações políticas e sociais entre os diretores da FR e os coordenadores e agentes locais; e entre os agentes da FR e as populações locais. Sobre o primeiro prisma, Palmer demonstra que, diferente de um projeto uniforme pensado em Nova York e transportado para a América Latina e Caribe, a saúde internacional tal como demarcada pela presença da FR foi um projeto duplamente híbrido, entre os EUA e os países hóspedes, e entre cada experiência dessa presença para a própria FR. Com isso queremos dizer que, desde o princípio, os efeitos e resultados da saúde internacional são dialógicos, limitando e reconstituindo as subjetividades de cada agente envolvido nos programas e processos de implementação. E que tais programas não teriam sequer acontecido sem a participação dos “aliados” locais, profundamente multiétnicos e conscientes de serem o elo do qual dependia a FR para exercer o trabalho de saúde internacional em meio a tantas e distintas matrizes culturais.

Sobre o segundo prisma, encontramos na “teoria do verme” propagada pela FR – que consistia na disseminação do conhecimento sobre a existência de micro-organismos com poderes patógenos que poderiam ser controlados por meio de práticas de higiene – um foco de rejeição ao controle biopolítico que se apoiava nos rituais de curandeiros. Saberes locais contestavam a universalidade representada pelos conceitos da microbiologia, de forma que “a teoria do verme ensinou a necessidade de respostas participativas e populistas [10]”.

Tropicalização Das Doenças

Palmer inicia o livro discutindo como o Império Britânico transformou a ancilostomíase em um problema “colonial” e “dos trópicos”, bem como os Estados independentes latino-americanos e caribenhos reagiram a isso, desenvolvendo um “nacionalismo científico” que reificava soluções abrangentes nas suas fundações recém-construídas – onde se entendia a sobreposição entre a fronteira clínica e a nacional. Palmer pontua que, contrário ao que se admitia nas metrópoles, não existia a “tropicalização” das doenças, isto é, a doença como fenômeno eminentemente ecossistêmico realizado em percurso que começava e terminava nos trópicos. O percurso da contaminação coincide com a expansão da fronteira do desenvolvimento, no momento da Revolução Industrial, e das subsequentes aglomerações de trabalhadores sujeitos a longas jornadas em condições insalubres, sem saneamento e socioeconomicamente vulneráveis.

Tal vulnerabilidade tampouco era aleatória: se dava espacialmente no campo (áreas de plantations) e, em termos identitários, entre indígenas, ex-escravizados e imigrantes de raças não brancas do sul da Ásia.

Eram milhões de corpos de trabalhadores doentes postos em “projetos de agroexportação, de mineração e de transportes que estavam criando um novo mercado mundial [11]”. A disseminação de epidemias correspondia aos espaços de expansão agrícola, aumento populacional e desmatamento. Ao mesmo tempo, como exemplificado na Costa Rica, foram os médicos que atuavam nesses locais os que primeiro elaboraram planos e campanhas nacionais de saúde pública.

Temos, portanto, evidências de que a área da saúde pública foi parte da constituição das nações da América Latina e Caribe. Médicos, cientistas e sanitaristas locais, em interação com doentes e trabalhadores, forjaram identidades nacionais calcadas em saberes que muito impactaram sobre as concepções de nacionalismo, racismo e desenvolvimento de cada país. Adverso ao método coercitivo britânico, a CSI da FR encontrou nesses processos de formação nacional a justificativa para o método intensivo americano: o tratamento com o timol contra o parasita viabilizado pela persuasão em contextos cívicos e menos disciplinares onde havia probabilidade de cooperação popular. Ou seja, apesar de sua aparência técnica, na realidade, para se aproximar da erradicação, o método intensivo precisava alinhar a campanha com os padrões culturais dos vilarejos e centros urbanos – “é digno de nota que, sendo a comunicação e a sedução o objetivo último, tenha sido a cultura, e não a raça, que se tornou o princípio de organização desses esforços [12]”.

O mito da filantropia redentora

Já na apresentação do livro, Palmer chama de modus operandi desenvolvido pela CSI na América Central e Caribe a inserção da missão da FR “em uma rede de medicina tropical e sanitarismo rural que havia sido criada pelos seus anfitriões nacionais bem antes do interesse da FR em conduzir o trabalho de saúde internacional no Brasil [13]”. Portanto, se podemos falar em redenção, Palmer desconstrói a agência da FR nesse aspecto e reforça, concomitantemente, a indispensabilidade da colaboração com médicos e cientistas locais com a finalidade da “medicalização de áreas rurais para a redenção da população para a civilização [14]”.

Indo contra a corrente historiográfica que enfatiza a verticalização dos programas da FR “no sentido de que o alvo era as doenças individuais, sem levar em consideração o contexto socioeconômico e político dos doentes [15]”, o principal objetivo de Palmer é evidenciar a participação do doente e das equipes de saúde constituídas localmente, por cientistas, sanitaristas, médicos, líderes comunitários e ativistas pela saúde pública.

No sentido de apontar um resultado da confluência entre o internacional, representado pela fundação filantrópica norte-americana, e o local, verificamos a adaptação do primeiro ao segundo. Isto é, os objetivos do programa da CSI eram constantemente redefinidos para melhor se acomodar tanto às prioridades locais quanto às culturas médicas pré-existentes.

O estigma de representar a “cultura do imperialismo dos EUA” se construiu em relação dialética às narrativas da FR. As duas metas principais da FR ilustram bem essa reflexão, qual sejam, a erradicação de parasitas e a educação da população. Para a erradicação (também identificada como método intensivo [16]), a FR implementava o método biomédico que, naturalmente, colidia com a ampla variedade de sistemas médicos locais como de povos indígenas, de tradições pré-colombianas, de africanos descendentes de escravizados, de indianos e de mestiços hispânicos. Para a educação, a FR gradualmente introduzia “uma nova cultura de vida e morte – a cultura de higiene, saúde pública, teoria do germe e medicina laboratorial [17]” que, não obstante as divergências com as cosmologias populares sobre o cuidado e controle dos corpos, encontrou apoio de sanitaristas e higienistas locais.

A dialética se dá precisamente porque, apesar de serem apontadas como evidências do imperialismo norte-americano, as metas da FR não eram apresentadas e implementadas localmente pela fundação através de tecnologias disciplinares e de domínio colonial – a utopia biopolítica coexistiu com negociações constantes pela limitação do poder da FR. Como é marca da hegemonia global dos EUA, a FR evitava a aparência formal de império por meio de adaptações metodológicas, descentralização institucional e compartilhamento de responsabilidades com a comunidade médica anfitriã.

Valendo-se dessas características, os benefícios oferecidos pela FR se situaram no escopo financeiro e metodológico – fornecer estabilidade, organização e pessoal qualificado, elevando assim os padrões dos sistemas de saúde pública que já se encontravam presentes. Esse é também um aspecto fundamental da vertente argumentativa de Palmer que refuta o mito da filantropia redentora: como o autor aponta na Conclusão, “o livro apresenta evidências de que são populações livres, alfabetizadas e politicamente engajadas que respondem bem, participam e se beneficiam de programas internacionais de saúde pública [18]”, transformando-os em inovações autossustentáveis. Os lugares onde a FR se inseriu foram escolhidos a partir da existência prévia de conhecimento e rede de especialistas próprios, de forma que tanto os médicos da FR pudessem incorporar os programas de pesquisa e padrões de tratamento em seus protocolos, quanto que o sistema de saúde pública local pudesse crescer após a retirada dos recursos financeiros da FR.

Conclusão

Como Palmer conclui acerca dos países estudados no livro, também podemos dizer que, no Brasil, as equipes multiétnicas junto a médicos como Belisário Penna – que coordenou os programas de saneamento entre 1920-1932 nas localidades rurais mais distantes e empobrecidas – estavam em sintonia com a história nacionalista do país. O saneamento, a higiene e a defesa da mestiçagem – através da superação do racismo científico e climático pela doença como elemento definidor daquela promissora nação – foram características presentes na configuração da identidade nacional durante os anos da Primeira República (1889-1930).

Podemos observar os debates políticos em torno dessas características, por exemplo, nos quatro números da Revista Saúde, o periódico oficial da Liga Pró-Saneamento liderada por Belisário Penna, publicados entre 1918-19 e hoje localizados no Arquivo Nacional.

Não obstante as especificidades de cada localidade, o momento é oportuno para repensarmos acerca das resultantes híbridas dos encontros internacionais no campo da saúde. Mediante a emergência de diversos atores – parcerias público-privadas, organizações não governamentais, fundações filantrópicas, organizações internacionais – nos cabe relembrar que “os programas internacionais de saúde pública não podem ser bem- -sucedidos se impostos a uma sociedade ou a uma ordem institucional que esteja despreparada para neles se engajar19”. Palmer nos propõe o foco nos processos e condições locais ao invés de “olhar de cima” o modo como distintos modelos, métodos e campanhas são conduzidos por esses atores. Em relação à história do Brasil, tal direcionamento também nos conduz às raízes do debate político sobre racismo, identidade e nacionalismo protagonizado por cientistas, sanitaristas e médicos que, por sua vez, conceberam a formação da nossa saúde pública como um dos pilares da formação nacional com vistas a inserção do país no concerto de nações modernas e civilizadas.

Notas

4. ROQUETTE-PINTO, Edgard. Seixos rolados: estudos brasileiros. Rio de Janeiro: Mendonça, Machado & Cia, 1927, p. 257.

5. Ibid., p. 258.

6. PALMER, Steven. Gênese da Saúde Global: a Fundação Rockefeller no Caribe e na

América Latina. Tradução de Annabella Blyth. 1a edição. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,

2015, p. 19. Coleção História e Saúde.

7. Ibid., p. 20.

8. Ibid., p. 20.

9. Ibid., p. 28.

10. Ibid., p. 206.

11. Ibid., p. 52.

12. Ibid., p. 178.

13. Ibid., p. 21.

14. Ibid., p. 22.

15. Ibid., p. 25.

16. Ibid., p. 158.

17. Ibid., p. 30.

18. Ibid., p. 300.


Resenhistas

Carolina Salgado – Professora no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e pós-doc no PPG em História das Ciências e da Saúde da COC-Fiocruz. E-mail: [email protected].

Ana Carolina Lacerda – Doutoranda no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e Coordenadora de Programa da KIYO Brasil. E-mail: [email protected].

Miguel Herman – Graduando no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e estagiário no Setor de Comunicação do IRI/PUC-Rio. E-mail: [email protected].


Referências desta resenha

PALMER, Steven. Gênese da Saúde Global: a Fundação Rockefeller no Caribe e na América Latina. Tradução de Annabella Blyth. 1a edição. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015, 421 p. Coleção História e Saúde. Resenha de: SALGADO, Carolina; LACERDA, Ana Carolina; HERMAN, Miguel. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, a.182 n.486, p.407-412, mai./ago. 2021. Acessar publicação originalv. [IF]

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