Giotto e os oradores: as observações dos humanistas italianos sobre pintura e a descoberta da composição pictórica (1350- 1450) | Michael Baxandall

Dos materiais de que o historiador dispõe para realizar uma pesquisa no universo do dito “Renascimento”, não se pode deixar de levar em conta a quantidade massiva dos discursos, sejam eles verbais ou visuais, cujos usos e consumo atendiam a critérios que hoje desconhecemos. Um indício dessas diferentes correspondências é a evidência com que, hoje, os pintores e autores do período sejam considerados gênios criativos e originais, termos impensáveis nas práticas em que se inseriam ao menos até o século XVIII. Em seu lugar havia técnicas retóricas e dispositivos artísticos muito regrados que então regiam a produção dos discursos. Nessa perspectiva, as artes da escrita e da pintura estavam amparadas na tópica horaciana do ut pictura poesis, que propunha uma relação de homologia dos procedimentos retóricos ordenadores de decoro e conveniência em relação às partes internas do discurso.

É considerando as relações entre as artes e as práticas letradas que o livro Giotto e os oradores estabelece um problema de fundo que envolve as relações de homologia estabelecidas historicamente entre a pintura e a escrita nos séculos XIV e XV. Por mais que tenha sido publicado em 1971, o livro do historiador da arte Michael Baxandall, por meio de uma escrita clara e ao mesmo tempo aguda, apresenta argumentos que mantêm rendimento, capazes de mobilizar o entendimento e, em consequência, o estudo de tais assuntos. Uma prova disso é a sua recente tradução para o português.

Por ser um livro da década de 1970, ele inevitavelmente dialoga com problemas agora datados. Entre eles, observa-se, de saída, o uso amplo de categorias como “Renascimento” e “humanismo”, que, embora sejam entradas possíveis no sentido de organização de conteúdos a respeito dos temas que evocam, perderam função analítica, pois não dão conta da historicidade das práticas que englobam em sua alteridade. De um lado, o Renascimento tem sido apresentado como uma etiqueta dedutiva, evolutiva e idealista e, de outro, o termo “humanismo”, cuja expressão foi criada entre os séculos XIX e XX para transformar um amplo e variado conjunto de práticas letradas em uma espécie de “atitude” de redescoberta das letras antigas, com o objetivo de se opor ao “obscurantismo” da escolástica. Por esse viés, tais termos referem-se mais aos seus criadores do que aos tempos a que foram destinados.

Para exemplificar, como bem aponta Robert Black em The Renaissance and Humanism, essa visão de um período homogêneo e dicotômico se deu, principalmente, com A cultura do Renascimento na Itália, do suíço Jacob Burckhardt, que marcou por muito tempo a historiografia. Entretanto, com as ponderações realizadas por Paul Oskar Kristeller, verifica-se que o termo “humanista” era utilizado no fim do século XV para se referir ao studia humanitatis, ou seja, ao estudo de gramática e retórica. Ele foi incorporado pela historiografia com acepções “humanitárias” e de um “humanismo”, conotações que pouco se aplicam aos letrados citados. É, então, mais pertinente observar os processos de uma longa duração das práticas letradas de forma descontínua e heterogênea, em vez de se utilizar categorias que acabam por petrificar um período prematuramente.

Embora Baxandall lance mão das nomenclaturas citadas, sua metodologia desvia-se em grande medida das principais figuras de uma história evolutiva dos estilos, e acaba propondo uma articulação dos recursos retóricos com a arte que se produz para além de uma configuração visual pura, recuperando os topoi das regras da arte. Com isso, contribui para uma perspectiva verossímil do período e do objeto estudado, permitindo, de certa maneira, uma interlocução dos discursos, tanto visuais quanto textuais, não como idealismo humanístico do Renascimento, mas como resultado das relações empíricas ditadas por discursos pragmáticos. Centralizando a sua atenção não apenas nas relações que unem “hábitos linguísticos e atenção visual” (Baxandall, 2018, p. 19), mas também na “descoberta”, propriamente, do conceito de composição.

Assim, o livro de Baxandall e, principalmente, o primeiro capítulo, demonstra como os dispositivos que cada letrado tinha em mãos foram fundamentais para a relação com os objetos empíricos, tendo em vista que toda relação com a empiria é mediada pela linguagem. No caso do livro, retratando como a língua limita a experiência e a classifica. Para elucidar o argumento, o autor utiliza as ponderações sobre a pintura de Pisanello, em latim, por Guarino de Verona, e em vernáculo por Angelo Galli, que dispunha dos termos mesura, aere, manieira como referencial linguístico, terminologias que Guarino não possuía. Em outros termos, cada um dos letrados privilegiou categorias diferentes ao analisar a pintura de Pisanello com base nos arquétipos discursivos que mobilizaram (Baxandall,2018, p. 30). Além disso, pode-se observar que a relação entre os letrados com a pintura é estruturada por meio de lugares-comuns da língua estabelecida coletivamente, e não um simples gosto individual. Assim, a maneira como se relacionavam com a imagem era condicionada pelo gênero pictórico e suas autoridades.

No segundo capítulo, o autor exemplifica o argumento proposto no primeiro, realizando o levantamento de alguns letrados e de comentários a respeito da pintura. Para tanto, Baxandall empreende uma genealogia das observações pictóricas a partir de Petrarca. Este, por sua vez, restituiu uma forma de “referência generalizada à pintura e à escultura, um tipo de discurso que se caracteriza pelo martelar incessante de alguns poucos conceitos” (Baxandall, 2018, p. 68). Petrarca emulou com eficácia auctoritates antigas ao se referir à escultura e à pintura, considerando necessário, para uma boa comparação, duas qualidades: a concretude e a visibilidade.

Logo em seguida, é mencionado Filippo Villani, que escreveu um volume sobre pintores, De origine Civitatis Florentiae et Eiusdem Famosis Civibus, no qual, emula um esquema de Dante descrevendo que o pintor Cimabue teria aberto caminho para Giotto, e este seria preferido aos pintores antigos formando-se o esquema profeta-salvador-apóstolos. Essa sequência acabaria por estabelecer certo tipo de categorização, além de projetar em Giotto a posição histórica de Dante. Baxandall considera essa estrutura de Filippo característica dos fenômenos que examina, pela forma concisa como dispõe diferenciações variadas – prioridade, qualidade, estatura e tipo.

À medida que as interações entre letrados se ampliaram, o arcabouço linguístico se expandiu. Manuel Chysoloras, por exemplo, é apresentado no livro como um difusor do grego. Por mais que ele tenha deixado poucos registros, seu método de escrever cartas, amparado nas categorias aristotélicas – tais como detalhamento, vividez, variedade e intensidade – teve uma significativa recepção entre os letrados. É nesse momento que aparece no livro o procedimento retórico da écfrase, ligado à personificação do discurso. A associação do meio visual com a linguagem verbal norteia o princípio da evidência e da enargeia, em razão da força atribuída ao sentido da visão. Além disso, o discurso se assemelharia a um quadro porque permitiria pôr diante dos olhos um modelo pictórico, estabelecendo, assim, a homologia entre écfrase e pintura.

A écfrase apelava à vivacidade visual e à clareza expositiva. Utilizar os olhos ao dirigirse aos ouvidos, lançar mão de uma linguagem que esteja de acordo com o objeto descrito eram formas de expressar desenvoltura na descrição, conduzindo, assim, o espectador diante de um quadro que se apresentava. O procedimento retórico da écfrase compete com a pintura, não porque reproduza plasticamente, como pintura, algo que o autor tenha visto na natureza ou numa obra de arte efetiva, mas porque mimetiza os modos técnicos, perfeitamente regrados, do “ver” da pintura, segundo o verossímil e o decoro do seu discurso.

Um dos responsáveis por cultivar os valores da écfrase e expandir os seus usos entre os letrados nesse período foi Guarino da Verona, quer por meio de suas viagens a cidades italianas, quer por intermédio de seus pupilos. Apesar de ter difundido tais categorias, exalta as letras em detrimento da pintura e da escultura e ainda indica a impossibilidade de a pintura representar qualidades morais. Ao comparar as letras com a pintura, Baxandall evidencia que Guarino aponta para os “limites da pintura”, uma vez que ele considerava a escultura e a pintura Sine litteris, pois não possuíam legendas e nem eram facilmente transportadas, sendo, portanto, para Guarino, veículos inadequados para estabelecer a fama que tanto privilegiava. Apesar do aspecto um tanto negativo que ele expressava por essas artes, elas eram apropriadas, muitas vezes, com um viés positivo (Baxandall, 2018, p.103).

Um dos pupilos de Guarino, Bartolomeu Fazio, ao realizar comparações entre pintura e poesia, partia da premissa de que a pintura é um poema mudo, aprofundando o sentido de explorar a expressão da emoção e do caráter para que se compreenda que as artes consideradas irmãs têm em comum essas duas funções expressivas. Baxandall de certa forma valoriza os escritos de Fazio ao postular que seu De pictoribus seria até então o mais completo a respeito da crítica sobre pintura, que não era encontrada em nenhum outro texto. Entretanto, ao mesmo tempo, aponta para o que estava por vir, o que implicitamente remete à posterior fortuna de Alberti e o De pictura. Nesse meio tempo, Lorenzo Valla, destaca-se ao propor um método menos rígido e unilinear (Baxandall, 2018, p.137), tendo como ponto de partida o diálogo entre as artes e a emulação de auctoritates.

Apesar de ser relativamente breve, o terceiro capítulo tem uma importância particular para Baxandall. Nele, é como se todo o livro, até o terceiro capítulo, estivesse fornecendo de forma progressiva um território propício para a escrita do De pictura. Afinal, para Baxandall, o escrito de Alberti lançou um marco inaugural de uma nova posição para as artes. Tendo em vista que os escritos anteriores a ele haviam se dedicado a muitas questões de caráter prático, em Alberti notam-se pela “primeira vez” especulações acerca do desenvolvimento de uma teoria da pintura, como diz Baxandall: “o livro de Alberti é não apenas maior e melhor que qualquer outro texto sobre pintura composto por um humanista, mas também foi escrito com base em um íntimo contato com a arte, e a partir do interesse de desenvolver um método” (Baxandall, 2018, p.141).

No entanto, não se pode deixar de observar certa relevância do escrito de Alberti ao se considerar, em linhas gerais, que determinados dispositivos se comunicam entre gêneros pictóricos e discursivos. Seu tratado é exatamente uma tentativa de provar como dispositivos retórico-poéticos se expressam na arte. A partir da exposição de Baxandall, compreende-se como Alberti move a écfrase de um lugar para o outro e isso tem consequências não apenas retóricas, mas também sociais, e elas decorrem de mudanças no ponto de vista da percepção e da confecção da pintura. A noção de composição proposta por Alberti é bastante precisa; ao dividir a pintura em três partes – circunscrição, composição e recepção de luz –, transfere à pintura um modelo organizacional proveniente da retórica. Assim, em vez da analogia partir da pintura para chegar à escrita, Alberti propôs uma saída da escrita para tratar da pintura, sendo este o ponto central de sua contribuição.

Ademais, pode-se observar, de modo geral, que Baxandall se atenta em articular bem pesquisa e escrita. Por ora, é de se destacar a última parte do livro, dedicada a apresentar ao leitor os textos citados em sua versão latina, “proposto como uma breve antologia” (Baxandall, 2018, p.19). E, ao levar em consideração a premissa do livro, reafirma que as traduções realizadas nos demais capítulos devem ser vistas como versões e não se dispõem a substituir os escritos latinos.

De todo modo, as questões indicadas em seu estudo não tratam de nenhum passo efetivo em direção à dissociação teórica entre pintura e poesia, tal como ocorre a partir do século XVIII. Por outro lado, se podemos assim dizer, a pesquisa minuciosa de Baxandal poderia ser considerada, de certa forma, uma écfrase, com enargeia e evidentia, do que seriam as práticas letradas de uma primeira época moderna, enquanto coloca diante dos olhos do leitor o modo como os letrados, pintores e o público em geral prestavam uma atenção específica a experiências visuais e verbais e, ainda, como a qualidade de tal atenção veio integrar os modelos pictural e linguístico da época, para além da ordenação de um “olhar renascente”.


Referência

BLACK, Robert. The Renaissance and Humanism: Definitions and Origins. In: WOOLFSON, Jonathan (org.). Renaissance Historiography (Palgrave advances). New York: Palgrave Macmillan, 2005, p. 97-117.


Resenhista

Janaina Silva Santana – Graduanda em História pela Universidade de Brasília e integrante do Ateliê de Estudos de Retórica da mesma Universidade. Atualmente está em desenvolvimento de uma pesquisa voltada para História e controvérsia na época moderna, com financiamento da FAP-DF. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

BAXANDALL, Michael. Giotto e os oradores: as observações dos humanistas italianos sobre pintura e a descoberta da composição pictórica (1350- 1450). Trad. Fábio Larsson. São Paulo: EdUSP, 2018. Resenha de: SANTANA, Janaina Silva. A imagem escrita: entre artes visuais e técnicas retóricas. Cantareira. Niterói, v.34, p. 684- 688, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

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