História, Arqueologia e Literatura entre Celtas e Germanos / Brathair / 2014

História – Arqueologia – Literatura entre Celtas e Germanos / Brathair / 2014

Este volume se dedica aos estudos do diálogo entre História, Arqueologia e Literatura. De acordo com Schiffer (2010), a Arqueologia estuda o comportamento humano no tempo e no espaço através da cultura material, ou da relação das pessoas com a cultura material (SCHIFFER apud BARRETO, 2013, p. 272). Segundo Vítor Oliveira Jorge (1990, p. 24) a Arqueologia é uma forma própria de estudar o mundo material, as relações do homem com a realidade física que o rodeia e da qual ele mesmo faz parte. Diversas são as abordagens que hoje analisam os artefatos como vestígios do comportamento social e humano. Em particular, os estudos de Arqueologia da Paisagem (nas suas mais diversas vertentes) têm procurado aprofundar a análise desses vestígios, entendendo as modificações feitas pelo homem na paisagem. Os trabalhos desenvolvidos neste campo procuram dar conta dos assentamentos, das estruturas e artefatos, tendo em mente a relação entre cultura e ambiente. Analisam, assim, de forma holística a relação entre o homem, o que ele necessita, os artefatos e estruturas por ele produzidos e o espaço onde viveu (ROBRAHN-GONZÁLEZ, 1999-2000, p. 18).

Nesta edição duas resenhas discutem a relação entre História e Arqueologia. A primeira, de Ana Carolina Moliterno Lopes de Oliveira (PPGH-UFF) discute o livro de Richard Bradley, professor de Arqueologia da Universidade de Reading, sobre o arquétipo circular nos antigos monumentos europeus desde o neolítico em estudo comparativo com as sociedades europeias atlânticas. O livro é dividido em 10 capítulos. O trabalho se insere na Arqueologia da Paisagem, integrando o estudo de monumentos e assentamentos aos espaços, partindo a análise do aspecto socioeconômico para o cultural.

A segunda resenha, de Benito Márquez Castro, da Universidade de Vigo apresenta o livro escrito em galego em 2013 por Adolfo Fernández Fernández, fruto de sua tese de doutorado, sobre o comércio no noroeste peninsular – Galícia Sueva e Visigoda, com base em registros arqueológicos. Fernández Fernández analisa as relações comerciais entre galo-romanos e povos germânicos nessa região, mostrando a riqueza dessas relações, não apenas violentas, mas também pacíficas, através do comércio. A análise vai do século IV ao século VII, constituindo uma importante contribuição aos estudos sobre essa região europeia.

Quanto aos artigos do dossiê, discutem a relação entre História e fontes literárias. Proeminentes historiadores tem destacado a importância dos estudos dessas obras para a compreensão do imaginário de uma determinada época. De acordo com Patlagean (1993, p. 201), o imaginário abrange todo o campo da experiência humana e nos auxilia a decifrar elementos simbólicos de outros momentos históricos. Para Pesavento o imaginário pode ser entendido como um “sistema de imagens e ideias de representação coletiva que os homens, em todas as épocas construíram, dando um sentido para si e para o mundo” (PESAVENTO, 2004, p. 43). Esse imaginário é construído e deve ser lido historicamente.

As fontes literárias e todos os registros históricos produzidos pelos humanos não são neutros, motivo pelo qual devemos ter um olhar questionador sobre qual o motivo da produção de um documento numa determinada época, por quem foi encomendado, a quem ele era destinado e com qual finalidade.

No caso do período Antigo e Medieval também temos a riqueza de perceber que as relações entre produção, circulação e recepção de muitos documentos estão associadas à inter-relação entre as culturas erudita e popular e também à oralidade, uma vez que muitos registros circulavam oralmente e demonstravam absorver elementos de uma cultura não letrada.

Neste sentido, a Profª. Marie Anne Polo, da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e do Groupe d’Anthropologie Historique de l’Occident Médiéval (GAHOM) analisa os exempla, narrativas curtas com o objetivo da evangelização da população e o papel dos pregadores, como Jacques de Vitry, Cesário de Heisterbach e Bernardino de Siena que, através da oralidade, buscavam estratégias para atingir o seu público. Desta forma, absorviam narrativas da cultura popular, misturando o vernáculo com o latim e fazendo uso do apelo teatral para passar a mensagem cristã ao público. Vale destacar que como forma de convencimento da sua mensagem era muito importante a performance dos pregadores e a empatia que conseguiam causar nos seus ouvintes. O GAHOM possui em sua homepage vários exempla disponíveis para auxiliar e ampliar os estudos deste tipo de narrativa.

O Prof. Ruy Oliveira Andrade Filho e o Doutorando Germano Favaro Esteves (UNESP-Assis) investigam os sentidos da Vita Desiderii, obra do século VII, escrita pelo monarca Sisebuto, através da análise crítica do discurso. O documento constitui-se na única hagiografia escrita por um rei visigodo e os autores buscam identificar os motivos disso, identificando através do estudo da obra, as relações de poder que são construídas entre rei e seus súditos. Destaque para os elementos negativos dos reis burgúndios que aparecem no relato de Sisebuto.

Ainda enfocando a Hispânia Visigótica, precisamente na transição entre os séculos VI e VII, sob o prisma de uma História do imaginário político, o artigo da Profª Pâmela Torres Michelette (UFPI / UNESP) trata da gesta do conceito de realeza cristã nos escritos de um clérigo destacado da Patrística Primeira Idade Média, Isidoro de Sevilha (560-636). Com efeito, como os leitores poderão perceber ao longo da exposição, este pensador clerical foi um verdadeiro ideólogo orgânico da legitimação cristológica e agregadora entre hispano-romanos católicos e visigodos arianos, quando da conversão do Regnum ao Catolicismo, no III Concílio de Toledo (589), sob o reinado de Recaredo (587- 601).

João Paulo Charrone, docente da UFPI, analisa a figura de um erudito, Venâncio Fortunato, proveniente de Ravena, na Itália, que viveu no século VI, fez estudos voltados para a área do Direito e de Letras e dedicou-se a produzir poesia latina, fazendo referência aos autores clássicos em suas obras. Em virtude de seus poemas, alcançou grande reputação na Gália Merovíngia. Ele estaria entre os dois mundos, segundo o autor, em virtude de ser um representante da época clássica tardia e de uma nova era que se iniciava, a Idade Média. De acordo com esse estudo, é importante um maior aprofundamento de suas obras para o entendimento da cultura erudita nesse momento de passagem entre Antiguidade e Idade Média.

Nossa atual edição conta ainda com um provocante estudo poético-identitário acerca do hino nacional alemão (Deutschlandlied), efetuado por uma pesquisadora alemã, Profª. Andrea Grafetstätter, que desenvolve hoje seus trabalhos na França, na Université du littoral côte d’opale. Longe de se constituir em um manifesto nacionalista ou insistente na originalidade da letra do ilustrado filólogo e poeta romântico alemão August Heinrich Hoffmann von Fallersleben (1798-1874), a autora investiga as origens dos versos nas disputas retóricas entre trovadores franceses e alemães dos séculos XII e XIII. Eis mais um brilhante exercício presente-passado-presente, que confronta e desnaturaliza – como deve ser, efetivamente, o intuito da História – as construções nacionalistas do Romantismo oitocentista e seus corolários no século XX.

A contribuição dos emergentes estudos da Germanística medieval brasileira vem complementar o ensaio anterior, no presente volume, sob a pena de um de seus mais destacados pesquisadores, o Prof. Álvaro Bragança Júnior (UFRJ). A partir de um exercício não menos instigante passado-passado, o artigo apresenta os (des)caminhos ideológicos e os circuitos de apropriação e ressignificação político-ideológica do ideal de cavaleiro (o Ritter) das narrativas alemãs centro e tardo-medievais pelo discurso e, sobretudo, pela indústria de propaganda e doutrinação do III Reich, sob o totalitarismo nacional-socialista.

Já o texto da promisora doutoranda Maria de Nazareth Corrêa Accioli Lobato (UFRJ), valendo-se da análise comparativa entre a História da Cultura e a Teoria Literária, problematiza os aspectos ideológico e político das relações feudo-vassálicas presentes em uma narrativa inglesa do século XII, intitulada Esope. Conjunto de apólogos cujos enredos mimetizam as relações sociais estruturantes do contrato feudal, Esope ainda importa para a análise medievalística, como se evidencia ao longo deste alentado estudo, por denotar outro processo social. Trata-se aqui de um expediente retórico tipológico nos escritos medievais: a atribuição da composição do texto à auctoritas de um autor ou rhetor clásico, neste caso Esopo, como forma de atrair fortuna crítica e capilaridade social ao escrito.

No mesmo escopo e nas mesmas Ilhas Britânicas, mas a oeste da antiga Albion, finalizamos este Volume da Revista Brathair com um precioso ensaio filológico da Profª. Luciana Cordo Russo (IMHICIHU-CONICET / UBA), recordando-nos de que também é tarefa dos historiadores capturar as permanências e mudanças nos campos semântico e morfológico dos idiomas. São aqui tratadas, em cotejo com as narrativas celtas arturianas contidas nos Mabinogion, as venturas da adaptação galesa – mais que mera “tradução” – da Chanson de Roland (a Canção de Rolando), comumente associada à data aproximada de 1084. Além do interesse despertado pela análise filológica, este artigo aborda o exemplo inaugural do primeiro gênero retórico-poético propriamente medieval, a canção de gesta, sucessora das grandes epopeias do Mundo Clássico e lugar da memória estilizada dos feitos de cavalaria do Ciclo Carolíngio, que tanto influenciou a prtodução escrita popular no Brasil, com destaque para a região nordeste.

Convidamos nossos leitores a apreciar este conjunto de textos instrutivos, cativantes e que unem, com singular habilidade, um amplo recorte temático e preleções de método literário e historiográfico.

Boa leitura!

Referências

BARRETO, Bruno de Souza. Historiografia e Interfaces: um diálogo entre História, Antropologia e Arqueologia, Revista de Teoria da História (UFG). Ano 5, nº 9, jul 2013, p. 247-279.

JORGE, Vítor Oliveira. Arqueologia e História: algumas reflexões prévias. Homenagem ao Prof. Dr. Jorge Borges de Macedo, 1990. Disponível em: http: / / ler.letras.up.pt / uploads / ficheiros / 2210.pdf . Acesso em 20 / 05 / 2015.

PATLAGEAN, Evelyne. História do Imaginário. In: LE GOFF (Dir.). A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 291-318.

PESAVENTO, Sandra. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

ROBRAHN-GONZÁLEZ, Erika Marion. Arqueologia em Perspectiva: 150 anos de prática e reflexão no estudo de nosso passado, Revista USP, São Paulo, n. 44, dez-fev 1999-2000, p. 10-31.

Adriana Zierer – UEMA. École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2013-2014. E-mail: [email protected]

Marcus Baccega – UFMA. Pós-Doutorado Université Paris I, 2013. E-mail: [email protected]


ZIERER, Adriana; BACCEGA, Marcus. Editorial. Brathair, São Luís, v.14, n.2, 2014. Acessar publicação original [DR]

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