História & Biografia | ArtCultura | 2011

Pode causar estranheza a um leitor menos familiarizado com os debates de Clio o fato de a biografia ter sido vista, por muito tempo e por muitos estudiosos, com declaradas reservas e mesmo com olhos implacavelmente censores. Tomando-se em conta a máxima de Marc Bloch de que a história não passa de uma “ciência dos homens no tempo”, narrar vidas deve soar quase como um truísmo. Haveria possibilidade de se escrever história abstraindo-se dos homens e de seus feitos?

Porém, é forçoso reconhecer que as várias querelas entre os historiadores a respeito da legitimidade da narrativa biográfica quase sempre ignoravam a aparente simplicidade da pergunta feita linhas acima. Chegava-se mesmo a cristalizar a idéia da pouca importância dos indivíduos no curso do processo histórico. Apenas os sujeitos coletivos eram capazes de agir sobre as estruturas e conjunturas. Aos homens e mulheres, tomados em suas singularidades, restavam os acontecimentos, estas “perturbações superficiais, espumas de ondas que a maré da história carrega em suas fortes espáduas”.1

Mas as ondas do mar, como sabemos, podem trazer à tona aquilo que luta para respirar, a força que persegue a sobrevivência, o corpo que não quer deixar se afogar. A partir de meados da década de sessenta, o descontentamento com os grandes paradigmas de explicação histórica promoveu um deslocamento do olhar para as estratégias individuais, para as experiências e projetos de vida em sua relação com os sistemas normativos. As trajetórias e biografias, não obstante certa tentativa dos Annales de inseri-las em investigações que tinham como fim o esclarecimento de questões mais amplas, recuperaram o seu lugar entre os objetos de estudo dos historiadores, ao mesmo tempo em que avançavam as discussões a respeito da narrativa, dos limites científicos da produção historiadora e dos recursos literários utilizados na escrita da história. Atualmente, as produções biográficas não mais rejeitam as configurações híbridas de sua escritura e admitem a multiplicidade de identidades e de fragmentos dos personagens relatados. Essa idade hermenêutica, da qual nos fala Dosse2 , não nos livra das incertezas epistemológicas que sempre acompanharam a biografia, por excelência atravessada pela ficção e pela ambição de contar a verdade.

Este minidossiê se insere nessa perspectiva de renovação da biografia histórica e traz contribuições significativas para o alargamento do debate sobre importantes questões que sempre acompanharam os historiadoresbiógrafos em suas aventuras por esse gênero eivado de incertezas e fragmentos. Discutindo a noção de “biografia moderna”, Márcia Gonçalves demonstra como as aproximações entre texto historiográfico e literário – tema de acaloradas discussões recentes – já ocupavam escritores e pensadores ingleses do início do século passado, na configuração do que acreditavam ser uma escrita capaz de romper com a biografia vitoriana tradicional e panegírica. As reflexões daí resultantes se estenderam para autores franceses e chegaram a penetrar na intelectualidade brasileira, sempre permeável às influências externas.

O artigo de Alexandre de Sá Avelar analisa os caminhos e descaminhos da biografia, percorrendo um extenso leque de problemas teóricoconceituais com os quais se defrontaram os historiadores interessados nas narrativas de vida. Ao longo do texto, vislumbram-se os contornos de uma forma de escrita da história marcada por desconfianças e incertezas quanto às possibilidades de inscrever uma existência em um texto. Ainda assim, chama a atenção para a permanente aposta biográfica, o que confere sentido à inescapável necessidade humana de compreensão do outro.

Benjamin Constant, uma das grandes lideranças do movimento republicano do final do século XIX, recebe um cuidadoso retrato da pena de Renato Lemos. O texto, em que o autor não se furta em elaborar uma narrativa que revela o seu contato intelectual com o personagem, estabelece o que poderíamos qualificar de “bastidores de uma pesquisa biográfica”. Procurando ir além dos marcos historiográficos tradicionais de enquadramento de Constant, Lemos nos descortina o Benjamin, “uma pessoa com quem eu jantaria de boa vontade”.

O minidossiê se encerra com o artigo de Aline Pereira Andrade a respeito do escritor Rubem Fonseca. A complexidade da biografia de Fonseca é pensada pela autora, de modo provocativo e corajoso, através das relações entre obra e autor. Empreitada arriscada, decerto, em que não faltam deslizamentos, deslocamentos, zonas de sombra. Temos, então, uma lenta e tortuosa “escrita de si”, na qual a personalidade literária do autor é construída a partir dos seus personagens ou da “ficcionalização de si próprio”. Para sustentar sua hipótese, Andrade leva a cabo uma minuciosa análise do romance Bufo & Spallanzani.

Os textos aqui reunidos configuram esforços para que avancem, entre nós, as reflexões acerca dos limites e possibilidades da biografia como escrita da história.3 Se parece ser cada vez mais inacessível a restituição textual da integralidade de uma existência individual, escrever biografias continua sendo um dos sinais de nossa insuperável necessidade de narrar e compreender.

Notas

1 BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 96.

2 DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009.

3 Ver GUIMARÃES, Manoel Salgado. Prefácio: a biografia como escrita da história. In: SOUZA, Adriana Barreto de. Duque de Caxias: o homem por trás do monumento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.


Organizador

Alexandre de Sá Avelar – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Autor de Os desafios do ensino de História: problemas, teorias e métodos (no prelo). Curitiba: IBPEX.  E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

AVELAR, Alexandre de Sá. Narrar vidas, escrever história. ArtCultura. Uberlândia, v. 13, n. 22, p. 117-118, jan./jun. 2011.  Acessar publicação original [DR}

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