Rebeldia disciplinada? Introdução à ‘História como (in)disciplina’ | História da Historiografia | 2021

Clio Musa da Historia Johannes Moreelse2 História da historiografia
“Clio – Musa da História” | Pintura de  Johannes Moreelse (antes de 1634)

À guisa de advertência

O dossiê que aqui apresentamos instaura, de imediato, uma situação curiosa, e não menos paradoxal: pretendemos trazer aos nossos leitores um panorama razoavelmente expressivo dos debates em torno da (in)disciplinarização da história, justamente em uma revista acadêmica, a qual integra sistemas de produção, avaliação e publicação altamente especializados e construídos dentro de uma lógica disciplinar que metrifica carreiras, desempenhos e programas de pós-graduação. Pode haver estranheza maior do que falar de indisciplina em um espaço tão profundamente disciplinado?

Talvez a resposta nos obrigue a considerar o peso que a cultura disciplinar ainda impõe sobre o trabalho intelectual especializado. História, Filosofia, Sociologia, Psicologia, Literatura, Antropologia, Economia, Geografia e outras designam “disciplinas” científicas. Platitude afirmá-lo, porém necessário. Há, pelo menos, dois modos elementares de compreender a gênese das disciplinas, sua sedimentação em domínios distintos circunscritos por fronteiras e as modalidades de intercâmbio entre elas – usualmente designadas de inter e/ou transdisciplinaridade. Leia Mais

Negacionismos e usos da história | Revista Brasileira de História | 2021

Bolsonaro Negacionismos História da historiografia
Negacionismos | Fotomontagem: Jornal da USP

Como certos passados, sistematicamente escrutinados pelos historiadores, amplamente debatidos e largamente documentados, podem ser simplesmente negados ou apresentados como invenções motivadas por interesses escusos? O que leva grupos e indivíduos a duvidarem da existência do Holocausto, da ditadura militar brasileira, dos incontáveis genocídios ao redor do mundo ou da escravidão que, ao longo de mais de três séculos, moldou as formas sociais do capitalismo moderno? Quais são as operações intelectuais, afetivas, políticas e ideológicas que envolvem e inscrevem os desafios e interrogações lançados pelos negacionismos à história, como conhecimento organizado do passado, aos seus usos políticos, apropriações e condições de produção da verdade?

Estas questões estiveram nas origens deste dossiê e agora são aprofundadas pelos artigos que o compõem. Eles apresentam um arco diversificado de reflexões acerca das variadas formas de visibilidade do negacionismo e do revisionismo ideológico no espaço público, bem como se propõem a pensar o papel da escrita da história e dos historiadores em seu enfrentamento. Evidentemente, explorar todas as respostas possíveis para as perguntas anteriores nos levaria a perscrutar um domínio inalcançável de análises produzidas por áreas que, ao longo das últimas décadas, procuraram decifrar a complexidade do fenômeno negacionista. Nossos objetivos são outros. Leia Mais

História & anacronismo – I – Parte internacional | ArtCultura | 2021

Ao longo das últimas três ou quatro décadas, os historiadores vêm demonstrando uma preocupação sensível com o tema da multiplicidade temporal. Ao tempo linear e homogêneo, característico de um regime disciplinar cada vez mais questionado, eles contrapõem “novas formas, múltiplas, variadas, policrônicas”.1 Essa pluralização expressa também questões políticas candentes, como aquelas relacionadas aos nossos tantos passados traumáticos, nos quais diversas modalidades de horror e de violência estatal indicam a persistência incontornável de experiências ainda sentidas como contemporâneas.2

Por outro lado, há uma abertura menor à reflexão sobre o tema do anacronismo, o que pode constituir, em certa medida, aquela situação na qual, de acordo com Christophe Charle, os debates e as polêmicas teóricas são eclipsados por uma atitude de apaziguamento, de conformação e de esvaziamento discursivo em função do peso de determinados vetos epistemológicos.3 Esse parece ser o caso da noção de anacronismo, cuja força persuasiva sobre a operação historiográfica não é novidade já há algumas gerações. Afinal, qual estudante não aprende a repudiar, desde os primeiros momentos de sua formação em História, o “pecado mortal” dos historiadores? Leia Mais

História & Literatura | ArtCultura | 2017

A constituição disciplinar da história foi marcada, ao longo do século XIX, pelo distanciamento de certos campos intelectuais, vistos como outros em relação aos quais era mister demarcar fronteiras. A veracidade dos relatos dos historiadores enunciava uma interdição, o da sedução da ficção literária, e as novas gerações deveriam inverter a máxima aristotélica que, lembremos, postulava a superioridade da poesia sobre a história, considerada o reino do particular, enquanto a primeira poderia se gabar de aceder ao universal. Sob a modernidade, impregnada de progresso e de futurismo, o século XIX era o da história. Reconhecida como uma especialização, a prática historiadora poderia até valer-se da literatura como fonte para o conhecimento do mundo real, mas sem confundir-se com ela. A história-ciência, com sua temporalidade homogênea e irreversível, tinha pouco a aprender com os modos literários de figuração do tempo, caracterizados, sobretudo, pela convivência entre passado e presente sob a forma da memória ou dos “passados que não passam”.

Do outro lado da trincheira, os literatos reagiam ao que viam como uma ciência pouco atenta ao presente e cheia de insignificâncias. Uma das maneiras de expressão dessa reação era a representação nada honrosa dos historiadores em diversos romances. Nestes textos, eles eram mostrados como indivíduos desprovidos de vida, alheios ao que se passava ao seu redor. A história também era acusada de ferir a universalidade da literatura, uma vez que, para os historiadores, um objeto só poderia ser corretamente explicado se localizado no tempo. O diálogo se reduzia e apenas as apropriações instrumentais eram aceitas: aos ficcionistas interessavam as observações particulares dos historiadores; para estes, os romances poderiam ser registros de representações dos passados que desejavam compreender. Leia Mais

História e biografia / História Social / 2013

O que significa uma existência? O que supõe o ato de narrar uma vida descrevendo seus contornos, iluminando aspectos que, em um primeiro-olhar, poderiam parecer desinteressantes e fornecendo sentido ao que parece se esvair com o tempo? Tais questões receberam distints respostas ao longo do tempo, ligadas a modalidades escriturárias diversas e a diferentes regimes de verdade e historicidade. (HARTOG, 2003). Como em outros momentos, nosso gosto pela biografia ancora-se num extenso leque de interesses pelo “outro”, por suas experiências de vida, sua exemplaridade, curiosidade essa não isenta de voyeurismo. O vivo interesse por trabalhos biográficos – refletindo-se numa pluralidade de públicos, leitores e audiência – talvez exceda a simples lógica de mercado ou os apelos que sempre parecem exercer os personagens notáveis. A multiplicação de relatos autobiográficos, entrevistas, perfis e escritas de vidas de personagens ilustres ou não pode ser indicativa de uma “tonalidade particular da subjetividade contemporânea” (ARFUCH, 2010). O mercado editorial de obras biográficas atesta a vitalidade do gênero em nossos dias.

Entretanto, podem nos causar alguma estranheza as reivindicações de um retorno da biografia, pois ela nunca deixou de ter o seu lugar entre um público leitor ávido por conhecer os caminhos e descaminhos de trajetórias singulares. Ainda que adicionemos o adjetivo histórica a essa escrita biográfica que parece retornar triunfante, poderíamos chegar à curiosa indagação: existe algo como uma biografia não histórica, ou seja, há a possibilidade de narrar uma vida abstraindo-se de alguma modalidade de ordenamento cronológico que nos situe, ainda que perifericamente, no interior de um conjunto de experiências históricas?

O problema, desse modo, pode ser mais bem situado se pretendermos considerar as mudanças pelas quais as biografias escritas por historiadores têm passado ao longo dos últimos anos. A cisão da história e da biografia em regimes discursivos distintos operada pelos gregos foi um marco importante para os rumos futuros dos dois gêneros que, desde então, mantiveram relações de afastamento / aproximação, ao passo que os relatos de experiências individuais foram se tornando cada vez mais populares, sobretudo pela sua imersão na ideia de exempla. São bem conhecidas as palavras de Plutarco, quando, no prefácio de “Vidas de Alexandre”, parte de sua conhecida obra Vidas Paralelas, afirma que “não escrevemos histórias, mas vidas”. Ao contrário dos historiadores, não era dever dos biógrafos a exatidão documental, a clareza do detalhe ou a precisão empírica. Sua escritura dever-se-ia concentrar na produção de narrativas exemplares – ainda que desafiando as evidências – que pudessem instruir os homens do presente. Ao longo do período medieval, a biografia como repositório de virtudes pedagógicas não perdeu sua função, e os relatos hagiográficos, nos lembra François Dosse, inscreviam-se em um discurso distante daquilo que se esperava do historiador, ou seja, do pacto de verdade instaurado pela obra de história. As vidas dos santos, portanto, deveriam edificar o leitor e não revelar a veracidade do passado. (DOSSE, 2009, pp. 137-138).

A constituição da história como um campo cientifico não trouxe bons ventos ao gênero biográfico, ainda que diversos tenham sido os autores que se dedicaram a perscrutar a dimensão individual do conhecimento histórico. (LORIGA, 2011). Vemos em Carlyle o lamento de que, no século XIX, a experiência heroica tenha sido vista com reservas pelos intelectuais daquele tempo. “Nossa época”, afirmava, “parece negar a existência dos grandes homens e negar até mesmo que sua existência seja desejável”. Talvez Carlyle estivesse se referindo ao tipo de pensamento professado por Buckley que, sem grandes temores, afirmava que os homens não deveriam deixar a escrita da história a cargo de “biógrafos, genealogistas, contadores de anedotas, cronistas de corte, esses bons divulgadores de mundanidades”. De modo oposto, os experimentos literários do romance moderno já promoviam os questionamentos sobre a identidade do sujeito que marcariam a new biography do final do século XIX e início do século XX. (LEVI In: AMADO; FERREIRA, 1996) Sob um ponto de vista mais estritamente historiográfico, contudo, os avanços da disciplinarização não tiveram “na biografia um dos seus eixos principais, preferindo investir em entidades despersonalizadas e / ou coletivas ao indicar os sujeitos e formular os nexos causais de suas narrativas: a nação, o Estado, a civilização, o povo, o meio geográfico, a raça” (SCHMIDT In: CARDOSO; VAINFAS, 2012, p. 191). A pouca relevância da biografia histórica resistiria mesmo aos ataques mais virulentos dos Annales contra a historiografia do século XIX. (GUIMARÃES In: SOUZA, 2008).

Crise e retorno são palavras que, não raramente, aparecem associadas ao debate recente sobre as transformações ocorridas no campo da historiografia nas últimas quatro ou cinco décadas. Viveríamos uma crise dos grandes modelos de explicação histórica, com o descrédito do marxismo, dos Annales e dos estruturalismos de diversos tipos, cada vez menos capazes de darem respostas à diversificação das perguntas feitas pelos historiadores contemporâneos. (CHARTIER, 1994). Por outro lado, assistiríamos à proliferação de abordagens de escala reduzida com maior apelo às ações humanas e às estratégias de grupos ou indivíduos em meio a sistemas norma” vos mais ou menos totalizantes. A biografia situar-se-ia na confluência desses dois movimentos: ela seria um dos sinais mais evidentes da desconfiança dos pra” cantes do campo historiográfico a respeito da vitalidade dos grandes esquemas interpreta” vos fundados na longa duração e, simultaneamente, atestaria a emergência de uma nova conjuntura intelectual definida pela crescente presença de uma guinada subjetiva (SARLO, 2005), fomentadora de uma miríade de gêneros discursivos caracterizados pela presença proeminente da primeira pessoa.

A importância e vitalidade do gênero biográfico tornaram-se uma evidência nas últimas décadas, e certamente a questão colocada por Revel (2010) a respeito da possibilidade de a biografia se tornar um problema historiográfico deverá ser respondida de modo afirmativo. Poucos historiadores, hoje, parecem reiterar as posições de Knecht, para quem os parâmetros da biografia são evidentes e, portanto, é inútil imaginar uma intriga ou estrutura narrativa biográfica. (KNETCH, 2000, pp. 172-173). Para além das recorrentes aporias que opõem indivíduo / meio e ação / contingência, podemos nos indagar a respeito dos sentidos de enfrentar a perenidade da experiência humana delimitada no espaço de uma vida. Recuperar do passado os traços, mais ou menos visíveis, de uma existência requer do historiador o exame de um amplo conjunto de evidências. Os desafios lançados pelas fontes reveladoras dos enigmas de um indivíduo são o tema das importantes reflexões de Ana Carolina Maciel. A interface entre a finitude da vida e a manutenção – historicamente constituída – dos seus vestígios materiais forma o cerne das indagações do texto que, de forma sintética, poderiam ser articuladas a uma pergunta, enunciada pela própria autora: seriam as “ilusões de eternidade” que determinam a preservação da vida individual por meio de seus objetos?

A preservação dos objetos de alguém que se foi passa a constituir uma espécie de biografia material que pretende, ao contrário da existência humana, conservar-se indefinidamente, alimentando a ilusão de resistência ao tempo e adquirindo uma trajetória particular. A cultura material deve, deste modo, fornecer o atestado da prova da presença dos indivíduos, a evidência da trajetória de homens e mulheres do passado. Lembra-nos Maciel, entretanto, que, paradoxalmente, esses vestígios remetem à obsolescência, e o que se coloca em jogo é a possibilidade de o historiador extrapolar os limites do papel e da pena sem que, com isso, as histórias dos seus personagens se tornem menos fiáveis. Essas preocupações ganham forma na pesquisa de pós-doutoramento da autora, na qual determinados sujeitos testemunham não apenas sobre fatos de suas próprias vidas, mas também acerca de seu legado material. O conjunto de fontes reunidas, de documentais a audiovisuais, permite a construção de narrativas sobre o passado acolhido e preservado.

O percurso biográfico como possibilidade de acesso a contextos sociais ampliados em diferentes tempos e espaços é o fio condutor do texto de Katani Maria Nascimento Monteiro. O personagem enfocado, o político e professor Celeste Gobato, que fez carreira no estado do Rio Grande do Sul, permitiu à autora escapar de um dos usos mais comuns da biografia: aquele cujo valor do biografado está na possibilidade de sintetizar várias outras trajetórias, iluminando, desse modo, aspectos mais gerais da formação social. Para evidenciar o caráter não só individual como também social de uma vida, Katani Monteiro recorre à noção de rede de funções, de Norbert Elias, pela qual as ações humanas são relacionadas aos instrumentos de poder dentro de uma rede caracterizada pelo funcionamento de funções interdependentes, na qual as margens de intervenção individual são sempre limitadas pela própria rede, mas que podem ser muito variáveis em sua natureza e extensão.

Os espaços de atuação de Celeste Gobato, nas tribunas políticas e nas salas de aula, configuram determinadas redes de sociabilidade que foram importantes no acúmulo de “capital simbólico” por parte do personagem e que o levaram a ser indicado para a intendência da cidade de Caxias do Sul, em 1924, ainda que nunca lá ” vesse residido. A autora demonstra como o domínio de um saber específico – Gobato era conhecido agrônomo – significava a aquisição de uma consagração simbólica legitimadora de determinadas posições sociais em um processo no qual o personagem construía sua trajetória pública em meio às idiossincrasias e tensões dos campos pelos quais transitava. O recurso à obra de Bourdieu é passo indispensável na análise, pois fundamenta as incursões de Katani Monteiro pelo jogo dos “capitais” acumulados e reconvertidos por Gobato.

Em anos recentes, a produção biográfica alimentou-se do alargamento dos interesses de pesquisa dos historiadores, num diálogo que se estendeu por diversos campos do conhecimento. O caráter transversal do gênero biográfico é o objeto do artigo de Lilia Moritz Schwarcz. O tom quase confessional do texto é assumido pela revelação dos impasses com os quais a autora se deparou ao longo de suas pesquisas sobre personalidades tão controversas quanto distintas, como Lima Barreto, Pedro II ou o pintor Nicolas-Antoine Taunay. Em primeiro lugar, a velha tentação de produzir uma narrativa unificadora e contínua para a trajetória dos indivíduos estudados que, por muitas vezes, insistem em não se comportar como gostaríamos de imaginar. Em segundo, a tendência de selecionarmos indivíduos proeminentes ou de buscarmos “conferir evidências a sujeitos que em seu contexto possuíram pouco destaque”, transformando-os, deste modo, em figuras de proa. E, em terceiro lugar, na preocupação de defendermos nossas obras, lembra a autora, acabamos criando heróis, “paladinos em sua coerência”, ignorando, muitas vezes, as ambivalências tão caras aos nossos personagens e também a nós.

Esses impasses caracterizam todo empreendimento biográfico que, por excelência, constitui uma complexa relação entre o autor e seu personagem. Não raramente, a identificação do biógrafo com seu biografado assume contornos quase próximos de uma relação familiar. Esperamos de nossos sujeitos que eles se enquadrem em nossos modos de ver e sentir o mundo e, como quase sempre isso não ocorre, não ocultamos nossas decepções. Schwarcz não esconde suas angústias de pesquisadora no cotidiano de suas incursões biográficas, mas também oferece modelos para aqueles que decidem conviver com um determinado passado: “um personagem que passa, com o tempo, a se comportar como amigo (ou inimigo íntimo) ”. Tais modelos, inspirados em autores diversos como Bourdieu e Carl Schorske, por exemplo, não são esquemas interpreta” vos excludentes, mas que, em conjunto, podem ser úteis para o enfretamento dos impasses de uma modalidade de escrita biográfica que viu no voluntarismo individualista o seu foco central, sem desviar para um contextualismo mecânico e excessivo que explica qualquer ação humana e seus resultados.

O artigo de Regina Célia Lima Xavier vem ao encontro dessas preocupações com base no exame da trajetória de Mestre Tito, um escravo que, depois de liberto, tornou-se bastante conhecido em Campinas, no século XIX, por seus dotes de curandeiro. A questão premente é: o que a trajetória de um indivíduo comum, como o estudado por Xavier, poderia dizer sobre a história? O relato pormenorizado, e muitas vezes linear, de uma vida fora alvo de inúmeras desconfianças em função, em tese, da sua incapacidade de oferecer respostas para problemas historiográficos de mais longo alcance. Essa incerteza agravar-se-ia ainda mais no caso particular de Tito de Camargo, personagem sobre o qual a documentação disponível era bastante escassa e indireta. Seus passos foram sendo reconstruídos por meio dos papéis encontrados em acervos judiciários, em registros municipais, em notícias de jornal e em fontes da Igreja. O trabalho de investigação, deste modo, não poderia partir de uma “escrita de si” ou de alguma outra forma de narrativa essencializadora do personagem. Suas configurações identitárias comportavam significados múltiplos que foram sendo atribuídos e agregados à sua existência ao longo dos anos. O seu próprio nome já assinalava um processo complexo e delicado de construção de sua individualidade, distante da constância nominal sobre a qual se poderia suspeitar de algum indício de coerência ou organicidade.

As nominações atribuídas ao escravo sem pátria, Tito, Mestre Tito, Tito de Camargo Andrade, revelam elementos constitutivos de sua personalidade que são tecidos em distintos momentos de sua trajetória. Do escravo “sem nação” ao reconhecimento de suas habilidades de curandeiro, o personagem forjou a singularidade de suas experiências em meio aos limites e possibilidades advindos da relação com o seu tempo. Ao final, a individualidade de Tito, constituída de múltiplas formas, revela a possibilidade de uma reflexão historiográfica mais atenta ao entrelaçamento dos temas e não simplesmente à sua fragmentação ou ênfase monográfica. A operação narrativa aqui é modelada em função de uma relação dialógica e recíproca entre indivíduo e contexto, escapando tanto às abordagens que tentam compreender o sujeito nas distintas manifestações de sua performance singular quanto àquelas que concedem às formas sociais e culturais a capacidade de moldar as ações humanas.

Os textos integrantes do dossiê fornecem uma significativa variedade de abordagens e questões que, ademais, traduzem alguns dos problemas mais comuns encontrados no debate teórico recente sobre a biografia histórica, bem como nos estudos de corte biográfico realizados por historiadores ao longo das últimas décadas. Ao leitor resta, portanto, o convite para envolver-se nos dilemas e possibilidades de algo demasiadamente humano: a esperança de narrar e compreender o outro.

Referências

ARFUCH, Leonor. El espacio biográfico: dilemas de la subjetividad contemporáena. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2010.

CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 100-113, 1994.

DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009.

GUIMARÃES, Manoel Salgado. Prefácio: a biografia como escrita da história. In: SOUZA, Adriana Barreto de. Duque de Caxias: o homem por trás do monumento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

HARTOG, François. Régimes d´historicité: présentisme expériences du temps. Paris: Le Seuil, 2003.

KNECHT, Robert J. La biographie et l´historien. Cahiers de l´Association international des etudes françaises. Paris, n. 52, p. 169-181, 2000.

LEVI. Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996.

LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (org). Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998.

_______. O pequeno X: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

REVEL, Jacques. A biografia como problema historiográfico. In: História e historiografia: exercícios críticos. Curitiba; Editora da UFPR, 2010.

SARLO, Beatriz. Tiempo pasado: cultura de la memória y giro subjetivo. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argen” na, 2005.

SCHMIDT, Benito Bisso. História e biografia. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS. Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

Alexandre de Sá Avelar – Professor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia.



AVELAR, Alexandre de Sá. Apresentação. História Social. Campinas, n.24, 2013. Acessar publicação original [DR]

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História & Biografia | ArtCultura | 2011

Pode causar estranheza a um leitor menos familiarizado com os debates de Clio o fato de a biografia ter sido vista, por muito tempo e por muitos estudiosos, com declaradas reservas e mesmo com olhos implacavelmente censores. Tomando-se em conta a máxima de Marc Bloch de que a história não passa de uma “ciência dos homens no tempo”, narrar vidas deve soar quase como um truísmo. Haveria possibilidade de se escrever história abstraindo-se dos homens e de seus feitos?

Porém, é forçoso reconhecer que as várias querelas entre os historiadores a respeito da legitimidade da narrativa biográfica quase sempre ignoravam a aparente simplicidade da pergunta feita linhas acima. Chegava-se mesmo a cristalizar a idéia da pouca importância dos indivíduos no curso do processo histórico. Apenas os sujeitos coletivos eram capazes de agir sobre as estruturas e conjunturas. Aos homens e mulheres, tomados em suas singularidades, restavam os acontecimentos, estas “perturbações superficiais, espumas de ondas que a maré da história carrega em suas fortes espáduas”.1 Leia Mais