História & Cinema Cubano-soviético | ArtCultura | 2011

Em Cuba e na União Soviética o cinema ocupou lugar de destaque nas políticas culturais inauguradas pelas respectivas revoluções. Dentre as motivações que levaram esses regimes, distantes temporalmente, a privilegiarem em seus programas a produção e difusão da sétima arte, poderíamos citar seu destacado potencial de propaganda política (que atingia o público analfabeto), o grau incontestável de sedução exercido por essa linguagem, bem como a pretensão governamental de registrar e difundir a história de uma “nova era”1 .

O artigo de Emmanuel Vincenot explora a perspectiva fundacional que marca a história do cinema cubano pós-revolução ao focar o esquecimento a que foram relegadas algumas produções anteriores a 1959, caso do documentário Jocuma (1955). Vincenot contrapõe a trajetória desse documentário, uma denúncia aguda da miséria de um povoado cubano durante o governo de Fulgencio Batista, com a de outro realizado no mesmo ano, El mégano, mitificado como o único documentário comprometido realizado antes da Revolução. O artigo explora os diversos motivos que contribuíram para essa seleção, bem como para a exclusão de seu realizador do grupo de cineastas que integraria o Instituto estatal de cinema. Vincenot, professor de Língua Espanhola da Universidade François Rabelais, em Tours (França) e pesquisador vinculado ao Centre Interuniversitaire de Recherche sur l’Educationet la culture dans le Monde Ibérique et Ibéro-Américain, é autor de uma ampla pesquisa de doutorado sobre o cinema cubano, de sua origem à Revolução. Organizou, na França, em 2009, um importe colóquio sobre o tema (Colóquio Paradoxes du Cinema Cubain).

O segundo trabalho que integra o minidossiê, “O velho e o novo: tensão entre experimentação artística no cinema de Eisenstein e as demandas ideológicas soviéticas”, de Nanci de Freitas, aborda aspectos estéticos e políticos do filme originalmente chamado A linha geral (1929), demonstrando que Eisenstein conjugou as exigências partidárias às experimentações estéticas. A autora cruza, com maestria, os princípios e técnicas propostos por Eisenstein em seus textos teóricos com a análise fílmica dessa obra, desvelando sua construção dramatúrgica. Destaca ainda as reedições pelas quais o filme passou, fruto das exigências dos organismos censores, revelando algumas das tensões inerentes ao cinema soviético pós-revolucionário. Atriz e diretora teatral, Nanci é professora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UniRio. O cabo-de-guerra entre as demandas políticas governamentais e os projetos autorais desnudado por seu artigo resulta em uma equação nada estranha ao contexto cinematográfico cubano.

Em “Identidades sobrepostas: o caso do filme Soy Cuba”, analiso a história de um filme planejado por uma equipe cubano-soviética para ser um “monumento” cinematográfico à Revolução Cubana, mas que, ao final, foi considerado um grande fracasso pela crítica, pelo público e pelos governos envolvidos em sua produção, sendo condenado ao esquecimento até sua “redescoberto” por Copolla e Scorsese, em meados dos anos 1990. Objeto de um brilhante documentário de Vicente Ferraz, com o qual busco dialogar ao longo do artigo, a história do filme desnuda o desencontro entre os projetos de cinema cubano e soviético, bem como o impacto da crise dos mísseis e dos debates sobre o realismo socialista no processo de produção da obra. A memória construída em torno dessa experiência, bem como o lugar dessa produção na história “oficial” também constituem questões exploradas pelo artigo.

O artigo de Dean Luis Reyes, “Ostalgie caribeña: saudade pos-soviética en el audiovisual cubano contemporâneo” nos revela o peso exercido pela cultura soviética na formação de toda uma geração de cubanos nascidos após a Revolução. O autor nos apresenta diversos aspectos do imaginário coletivo alimentado pelo muñequitos rusos, os desenhos animados soviéticos largamente exibidos pela televisão, entre os anos 1960 e 1980. Focando algumas produções audiovisuais recentes que se valem de diferentes formas de diálogo com essa e outras referências soviéticas, Dean desnuda a ambígua relação de amor e ódio de sua geração com a URSS e com a própria utopia do socialismo cubano. O autor, professor da Escuela de Cine de San Antonio de los Baños, possui uma sólida trajetória de crítica e pesquisa sobre o cinema cubano, com ênfase na produção audiovisual contemporânea.

Por fim, cabe destacar que os trabalhos aqui publicados demonstram que a análise fílmica conjugada à análise histórica permite adentrar nos significados, ambigüidades e tensões nem sempre visíveis em outras documentações ou na memória histórica, principalmente se consideramos as vicissitudes das políticas culturais e o controle político exercido pelos regimes soviético e cubano, que não impediram filmografias repletas de ousadias ideológicas e experimentalismos estéticos.

Nota

1 Nesse sentido, os cinemas cubano e soviético pós-revolução carregaram as marcas do chamado “tempo da invenção” próprio das revoluções, tema problematizado, dentre outros autores, por ARENDT, Hannah. Da revolução. São Paulo: Ática, 1988.


Organizadora

Mariana Martins Villaça – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo/Guarulhos. Autora, entre outros livros, de Cinema cubano: revolução e política cultural. São Paulo: Alameda, 2010. E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

VILLAÇA, Mariana. Cinema, revolução e memória: múltiplas e pulsantes combinações. ArtCultura. Uberlândia, v. 13, n. 22, p. 7-8, jan./jun. 2011.  Acessar publicação original [DR]

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