História Cultural da Imprensa – Brasil 1800-1900 | Marialva Barbosa

Marialva Barbosa faz um passeio investigativo minucioso e criterioso, em sua obra “História Cultural da Imprensa – 1800-1900”(2010), partindo da chegada da família real em território nacional, que em fuga à eminente invasão de Napoleão de Portugal, inaugura no Brasil a imprensa, com mais de trezentos anos de atraso, já que Gutenberg criou a prensa de tipos móveis, em meados do século XV, na Mogúncia, Alemanha, sendo rapidamente expandida por toda Europa e chegando, inclusive, ao México poucos anos depois. (GIOVANINNI, 1987).

Com a fundação da Impressão Régia em terras brasileiras, é também criado o primeiro jornal oficial brasileiro “Gazeta do Rio”, em 10 de setembro de 1808, ressaltando que a imprensa no Brasil chega em meio à polêmica, uma vez que dois meses antes já circulava em terras brasileiras um jornal, clandestino e opositor à Coroa, produzido em Londres por Hipólito da Costa chamado Gazeta Braziliense.

A trajetória investigativa de Marialva Barbosa encerra-se no início do século 20, nas primeiras décadas de 1900, quando surge um leitor ávido por notícias sensacionais, especialmente relacionadas a crimes, uma característica ainda mais marcante na imprensa contemporânea.

O que salta aos olhos logo na introdução é a metodologia adotada pela autora, que está implícita na linguagem adotada em todo o percurso da obra. Barbosa já no primeiro parágrafo convida o leitor: “A história só existe no presente porque o passado deixou inscritos, no nosso aqui e agora, vestígios múltiplos que indicam a existência desse passado” (BARBOSA, 2010, p.11). A autora ainda reforça a necessidade dessa busca investigativa ao convidar o leitor a “seguir essas pistas para reinterpretar os tempos de outrora tentando captar o espírito de outras épocas”. Logo em seguida ressalta: “Cabe ao historiador seguir rastros deixados no presente, caminhando por esses traços em direção às imagens do passado”. Para ela, a imprensa também é pródiga em autorreferenciação:

Produz textos que falam de seu cotidiano e outros que deixam pistas sobre suas relações com as instâncias do poder. Por trás das letras impressas, das fotos e das ilustrações publicadas, é possível remontar todo o circuito da comunicação: o que eram essas publicações, quem escrevia nesses jornais, para quem se escrevia e, sobretudo, que interpretações fazia esse leitor anônimo, que gradativamente, pelos indícios que um olhar mais detido poderá seguir, se transforma num ilustre conhecido. (BARBOSA, 2010, p. 11)

Márcia Rodrigues (2006, p.5), na obra “Exercícios de Indiciarismo”, esclarece que pensadores consagrados como Michel Foucault, Walter Benjamin, Gilberto Freyre, Lucien Febvre, Fernand Braudel, Mikail Bakhtin, Robert Darnton, Peter Burke, Carlo Ginzburg, entre outros, escreveram obras marcadas pelo apreço aos pormenores e à conciliação entre racionalidade e sensibilidade, e que realizaram, em suas obras, pesquisa minuciosa, detalhada e exaustiva, revelando caráter detetivesco:

O fio condutor destas diferentes obras é a pesquisa indiciária baseada na investigação de microestruturas políticas, econômicas e sociais, de aspectos corriqueiros do cotidiano e da intimidade social, de acontecimentos pequenos na história. (RODRIGUES, 2006, p.5).

Da mesma forma que Marialva Barbosa realizou em sua obra, Rodrigues (Ibidem) reforça que a pesquisa indiciária resulta da articulação de princípios e de procedimentos heurísticos centrados nos “detalhes, nos dados marginais, nos resíduos tomados enquanto pistas, indícios, sinais, vestígios, sintomas – segundo a terminologia psicanalítica”. Rodrigues (2006, p. 5) define que indícios seriam documentos oficiais e extraoficiais, as fontes secundárias e voluntárias, ou seja, aquelas buscadas intencionalmente pelo pesquisador, que, se submetidas à análise do discurso, semiótica ou sintomal, podem revelar muito mais do que o testemunho tomado apenas como um dado. Ela esclarece ainda que outras fontes podem ajudar nesse processo, aquelas que não foram convidadas a testemunhar na construção das narrativas históricas, as fontes involuntárias, achadas por acaso, não intencionalmente e que, às vezes:

teimam, insistem e se intrometem na pesquisa. Nesse caso, o pesquisador terá que lançar mão da conjugação razão e sensibilidade para que as fontes sejam ouvidas e arguídas com criatividade, inteligência e consistência, considerando os atos falhos, as metáforas, as metonímias, os deslocamentos na análise documental. (RODRIGUES, 2006, p.6)

Esse método que une razão e sensibilidade esteve presente ao longo da pesquisa investigativa de Marialva Barbosa (2010,p.43-55), quando reconstrói as histórias do impresso de 1821,”Conciliador” do Maranhão, especialmente no capítulo “Uma história pelas margens…”, observando-se as anotações manuscritas de leitores anônimos deixadas em edições do jornal em microfilmes consultados pela autora na Biblioteca Nacional. Depois Barbosa (2010, p.79-116), no capítulo “Os jornais e o mundo dos escravos”, consegue pela sensibilidade e análise minuciosa de matérias publicadas e gravuras captar o sentido desse período pré-abolicionista, quando os escravos começam a se constituírem como leitores e participantes anônimos da vida política brasileira. Para a autora:

Falar da relação da imprensa e mundo dos escravos é mostrar não apenas a forma como os periódicos se referem a eles ou realçar os discursos mais ou menos favoráveis à abolição. Também não é somente reconhecer que, sendo objetos discursivos dessa imprensa, tem suas vidas influenciadas por essas falas. Essa relação enseja que se pense nas marcas que eles, como atores e sujeitos da história, também deixam nos jornais. Suas marcas e feridas que ficam expostas nas descrições de anúncios que procuram pelos que reiteradamente se rebelam e fogem do cativeiro, estão contidas nesses periódicos, que se dividem com mais ou menos fervor em favor de sua causa. (BARBOSA, 2010, p.80)

Para Barbosa (Ibidem), há indícios também que muitos escravos sabem ler ou pelo menos “escutam aquelas notícias que ecoam pelas ruas, praças e casas-grandes”.

Por esses motivos, a pesquisa se utiliza, entre outras técnicas, o método indiciário desenvolvido pelo teórico italiano Carlo Ginzburg com base nos estudos realizados no final do século XIX por Giovanni Morelli. O objetivo de Morelli era identificar as falsificações de pinturas famosas utilizando-se de pormenores mais negligenciáveis e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia, tais como: os lóbulos de orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés. (GINZBURG, 1989, p.143-144).

Segundo Ginzburg, os livros de Morelli são insólitos em relação aos outros historiadores de arte porque possuem ilustrações de dedos e orelhas e características minuciosas que identificam um determinado artista como um criminoso é identificado pelas suas digitais. “[…] qualquer museu de arte estudado por Morelli adquire imediatamente o aspecto de um museu criminal […].” (Ibidem). Castelnuovo apud Ginzburg (Ibidem) aproximou o método indiciário de Morelli ao que era atribuído a Sherlock Holmes pelo seu criador Arthur Conan Doyle. “O conhecedor de arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis para a maioria”.

Para Ginzburg (1989), a psicologia moderna estaria ao lado de Morelli porque os nossos pequenos gestos inconscientes revelam o nosso caráter mais do que qualquer atitude formal. Segundo ele, Freud em seu ensaio “O Moisés de Michelângelo” (1914) se referiu ao método usado por Morelli, que na época se identificava com um especialista em arte russo, Ivan Lermolieff. Freud apud Ginzburg (1989), afirma:

Creio que o seu método está estreitamente aparentado à técnica da psicanálise médica. Essa também tem por hábito penetrar em coisas concretas e ocultas através de elementos pouco notados ou despercebidos, dos detritos ou “refugos” da nossa observação. Ginzburg (Ibidem) resume que “pode-se falar de paradigma indiciário ou divinatório, dirigido, segundo as formas de saber, para o passado, o presente ou o futuro […] e tinha-se a semiótica médica na dupla face, diagnóstica e prognóstica”.

Ele destaca ainda que esse é o método, não só utilizado e aceito pela sociedade pelos médicos ao identificar a doença através dos sintomas, mas também num dos gestos mais antigos da história intelectual do gênero humano pelo caçador “[…] agachado na lama, que escruta as pistas da presa”. (GINZBURG, 1989, p.154).

Da mesma forma, Barbosa (2010, p.253) encerra afirmando de forma indiciária que “o leitor é parte fundamental na construção desse texto. Procuramos seguir suas pegadas, em traços que deixam registrados e que o tempo vai apagando paulatinamente”. A autora não fica por aí, ainda reforça essa ideia, acrescentando:

Recuperar a face dos leitores do passado, também, não é tarefa fácil. Mas eles deixaram inúmeras marcas que podem remeter às formas como se relacionavam com os textos e, sobretudo, ao entendimento que faziam e produziam a partir daqueles textos. (2010, p.253-254).

De acordo com Barbosa, essas marcas estariam “escritas de muitas maneiras e através de muitos gestos”. E complementa com o tipo de fonte onde perscrutou essa busca:

Podem estar sob a forma manuscrita, escrita à margem das publicações, indicando uma leitura atenta, uma leitura que vai e volta, na tentativa de descortinar conceitos e entender o mundo, como também podem estar no silêncio que se produziu sobre alguns leitores do passado. Leituras múltiplas, plurais, de primeira, de segundo, de terceira natureza dão vida aos periódicos que surgem e desaparecem ao longo do século XIX no Brasil. (BARBOSA,2010, p. 253-254).

 Referências

BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa – Brasil 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010.

GIOVANNINI, Geovanni. Evolução na Comunicação – do Sílex ao Silício. (2ªed.). São Paulo: Ed. Nova Fronteira, 1987.

GINZBURG, C. “Sinais – raízes de um paradigma indiciário”______. In: Mitos, emblemas e sinais – Morfologia e História. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989, p. 143-171.

RODRIGUES, Márcia (Org.). Exercícios de Indiciarismo. Coleção Rumos da História. Vitória: Programa de História Social das Relações Políticas da UFES, 2006.


Resenhista

Francisca Selidônia – Mestre em História pela Universidade Federal do Espírito Santo.


Referências desta Resenha

BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa – Brasil 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010. Resenha de: SELIDÔNIA, Francisca. História Cultural da Imprensa – Brasil 1800-1900: uma perspectiva indiciária. Revista Brasileira de História da Mídia. São Paulo, v.1, n.1, p.111-113, 2012. Acessar publicação original [DR]

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