História do estruturalismo – DOSSE (S-RH)

DOSSE, François. História do estruturalismo. Tradução de Álvaro Cabral; revisão técnica de Marcia Mansor D’Alessio. Bauru: Edusc, 2007. v. 1: O campo do signo – 1945/1966. 513 p. – v. 2: O canto do cisne – de 1967 a nossos dias. 575 p. Resenha de: CARVALHO, Francismar Alex Lopes. “A consciência desperta e inquieta do saber moderno”: Uma História do Estruturalismo. sÆculum Revista de História, João Pessoa, v.18, jan/ jun. 2008.

Dentre os méritos desta importante obra do historiador francês François Dosse, pode-se destacar a acuidade com que seu autor escapou de uma dupla tentação muito comum no acirrado campo de batalha teórica das ciências humanas: por um lado, cair em posicionamentos unilaterais em favor da primazia das estruturas ou dos indivíduos, que não raro impedem que se compreenda a interação entre estes e aquelas; por outro, evitou a atitude desqualificadora que consiste em “jogar sobre [as correntes teóricas precedentes] a placa de chumbo do esquecimento, e partir assim mais livremente numa direção oposta”.2 Cuidados como esses fazem de História do estruturalismo, que aparece agora em nova edição3, um panorama vigoroso da história intelectual do século XX, obrigatório mesmo àqueles que não partilham do quadro teórico estruturalista. Pois mais do que acompanhar o desenvolvimento das idéias estruturalistas, o que Dosse realiza em seu livro é uma audaciosa articulação entre contextos históricos, concorrências institucionais e combates teóricos, tendo como eixo central a problemática do contraponto entre as diversas formas de ver as estruturas em que os homens encontram-se encerrados e as várias correntes que se opõem a tais perspectivas e valorizam os homens como sujeitos de sua própria história.

Um contraponto que o autor, é certo, pôde acompanhar em outros trabalhos, como quando analisa a trajetória da historiografia francesa,4 ou quando discute os intercâmbios entre os historiadores e os filósofos,5 ou mesmo quando reflete sobre as sendas abertas para os historiadores nas últimas décadas.6 Em História do estruturalismo, porém, Dosse se propôs a realizar uma história intelectual total, acompanhando o embate dos partidários da estrutura e seus opositores não somente nos livros produzidos, mas recorrendo também a um minucioso levantamento das revistas fundadas pelos agrupamentos teóricos, bem como aos anais de congressos, jornais especializados e 111 entrevistas realizadas com os próprios protagonistas.

Essas entrevistas são, certamente, objeto da principal novidade metodológica introduzida pela obra, a saber, a de trabalhar com a auto-reflexão dos autores sobre seus próprios escritos e os embates da geração a que pertenciam, procedimento que é conhecido como ego-história.7 Dosse compartilha da idéia de Foucault segundo a qual o estruturalismo “não é um método novo, ele é a consciência despertada e inquieta do saber moderno”;8 ou seja, não é possível pensar o estruturalismo apenas como recurso metodológico a ser utilizado em tal ou qual pesquisa – ele é antes “um movimento de pensamento, uma nova forma de relação com o mundo”.9 Esse movimento intelectual manteve algumas idéias-chave em seu programa. (a) O objeto de estudo das ciências humanas são os sistemas formais e suas relações, não os conteúdos ou significações. Os aportes da lingüística de Ferdinand de Saussure estão na base desse fechamento sobre as formas. O signo saussuriano somente envolve a relação entre significado (o conceito) e significante (imagem acústica), com a exclusão do referente:10 “um signo não retira sua significação da sua relação com o objeto que ele representa, mas da sua oposição aos outros signos”.11 (b) Também a partir de Saussure, considerase que a língua é um sistema que precede a fala, os códigos e regras precedem e determinam as práticas; sendo assim, para chegar ao sistema, é preciso desconsiderar as contingências históricas (diacronia) e estabelecer o corte de uma dimensão imóvel do fenômeno (sincronia). (c) Por conseguinte, as regras se impõem à revelia da percepção consciente dos sujeitos; portanto, entender os sistemas formais implica em desvelar o que não é imediatamente visível.12 Ao acompanhar o percurso dessas idéias, Dosse estabelece uma periodização, marcando os inícios da recepção tardia das reflexões da lingüística na França em meados dos anos 1940, a elaboração e a ascensão triunfal do paradigma nos anos 50 e 60, e o auge em 1966. A partir de 1967, o estruturalismo passa a apresentar fissuras, e maio de 68 marca o êxito institucional do movimento e sua banalização, ao mesmo tempo em que alguns dos estruturalistas iniciam uma ampla desconstrução do que edificaram. As mais de mil páginas da obra distribuem-se em dois volumes, cada um abarcando um dos períodos mencionados.

O encontro de Claude Lévi-Strauss com o lingüista Roman Jakobson nos Estados Unidos, no início dos anos 1940, propiciou uma simbiose de idéias que forneceu os elementos básicos do nascimento da antropologia estrutural. A importação do modelo lingüístico por parte de Lévi-Strauss atendia à sua ambição de se afastar da antropologia física e do evolucionismo, enfatizar os aspectos invariantes dos fenômenos e abandonar o recurso à consciência do sujeito falante, a fim de que fosse possível construir leis gerais: em outros termos, daria à antropologia social, desligada do biologicismo, as exigências de cientificidade necessárias para afirmar-se no campo das ciências humanas.13 Em sua tese Les structures élementaires de la parenté (1948) e nos artigos reunidos em Anthropologie structurale (1958), Lévi-Strauss retoma esse modelo lingüístico e impulsiona de forma marcante a configuração do paradigma estrutural. Mas é no texto “Introduction à l’oeuvre de Marcel Mauss” (1950), publicado numa coletânea deste autor, que o programa do estruturalismo recebe uma exposição sistemática por parte de Lévi-Strauss, resumindo-se em cinco pontos essenciais: (a) Saussure tem razão ao afirmar que o significante (o código) precede e determina o significado (o conteúdo); (b) logo, o campo de análise privilegiado é o campo do simbólico; (c) este deve ser abarcado numa perspectiva totalizante, em cujo centro encontra-se o corpo humano, signo inteiramente cultural; (d) no cerne da corporalidade, o inconsciente assume a primazia, cujo acesso é mediado pela linguagem; (e) e, finalmente, o recurso à psicanálise permitirá o acesso ao “nosso eu mais estranho”.14 Subjaz nesse programa uma dupla recusa, marcante tanto nos trabalhos dos estruturalistas quanto na obra posterior de Lévi-Strauss, em especial em suas Mythologiques (1964-1971). Por um lado, uma rejeição da história, que para Lévi-Strauss é a condição mesma para o entendimento da relação dos mitos com a temporalidade: os mitos “são, com efeito, máquinas de suprimir o tempo”.15 Por outro, uma pessimista constatação da morte do homem, incapaz de encontrar qualquer saída das estruturas que, uma vez desveladas, não têm mensagem alguma, como se fossem um edifício complexo que “se expande lentamente e volta a se fechar para submergir ao longe como se nunca tivesse existido”16.

Se o inconsciente está no centro do paradigma estruturalista, isso não se deve apenas à distinção estabelecida por Saussure entre linguagem e fala e à antropologia preconizada por Lévi-Strauss, mas também às inovações propostas por Jacques Lacan no âmbito da psicanálise, desde a década de 1950. Lacan teria sido o responsável pela introdução do primado do inconsciente no estudo clínico.17 Sua proposta de retornar a Freud, numa época em que a psicanálise estava prestes a perder o seu objeto, o inconsciente, e a se converter em psiquiatria, devido à medicalização das patologias, provocou sobressaltos na França18. Para esse retorno a Freud, Lacan sugere a companhia de Saussure, cujo quadro teórico é aplicado no texto “L’instance de la lettre dans l’inconscient” (1957), publicado no primeiro volume dos Écrits.

Neste texto, Lacan afirma que o sujeito encontra-se descentrado, não passa de um efeito de significante que remete ele próprio para um outro significante, ou seja, é produto do código lingüístico. Sendo assim, o inconsciente não é outra coisa senão um efeito de linguagem, de suas regras, de seu código: “Esse sujeito é, de certo modo, uma ficção que só tem existência em virtude de sua dimensão simbólica, do significante”19. Desse modo, Lacan convida os psicanalistas a atentarem para a literalidade da fala proferida, a qual “apresenta em si mesma a cadeia significante que é a trama do inconsciente”.20 O significante ocupa, portanto, o lugar de sujeito para outro significante, o que leva o pensamento de Lacan a um formalismo tal que confere verdadeira autonomia à esfera do discurso, tomando a ordem das coisas a partir da ordem das palavras. Mesmo quando estabelece o conceito de “objeto a”, para referir-se ao “objeto de desejo sempre renascente e em falta”, esse objeto não se encontra vinculado à realidade, mas ao que resiste à significância21.

O formalismo é acolhido também no âmbito da análise das formas de escrita e da literatura, em especial na obra Le degré zéro de l’écriture (1953) de Roland Barthes, momento em que procura “afirmar a existência de uma realidade formal independente da língua e do estilo”.22 Nesse “grau zero”, a linguagem passa do status de meio ao de fim em si mesmo, em parte devido ao impasse provocado na literatura depois do nível alcançado por Marcel Proust e escritores do chamado nouveau roman, que romperam com as normas tradicionais do romance burguês do século XIX. A nova estilística, cujo ponto culminante é Proust, conduz a um momento em que “a literatura torna-se a utopia da linguagem”.23 Esse fascínio de Barthes pelo formalismo, que o leva a por de lado o conteúdo em proveito da lógica das formas, também está presente em sua obra Mythologies (1957), em que realiza uma depuração dos mitos contemporâneos da cultura de massa, sempre a partir dos pressupostos saussurianos (“A função do mito é esvaziar o real”)24. Entretanto, o encontro de Barthes com Algirdas-Julien Greimas no início dos anos 1950 foi decisivo para a sua conversão ao formalismo, embora nunca tenha levado às últimas conseqüências a perspectiva formal, o que Greimas se empenhou em alcançar.

Cumpre lembrar que o quadrado semiótico de Greimas leva a uma radicalização do distanciamento do mundo empírico, do referente, em favor do pressuposto de que o sentido é diretamente derivado da estrutura interna do texto. Para se chegar à purificação necessária à obtenção do quadrado dos contrários e dos contraditórios, Greimas elimina todas as referências a contextos históricos e ao sujeito. Segundo os críticos, o resultado “paga-se caro e cai com bastante rapidez no perigo de um empobrecimento da realidade a explicar”25.

Realmente, a negação da existência do sujeito histórico é o cerne da crítica que toda a geração estruturalista fez ao humanismo, “sepultado com júbilo e deleite como um traste obsoleto que datava dos tempos idos da burguesia triunfante”26. Na França dos anos 1950 e 60, o humanismo encontrava simpatizantes no marxismo, seja sob a tutela de Jean-Paul Sartre, seja sob a égide do Partido Comunista Francês e de seu mentor Roger Garaudy. Mesmo assim, no bojo da difusão da influência da lingüística e do pensamento de Lacan, o filósofo marxista Louis Althusser, embora isolado no partido, atrai para si uma geração inteira disposta a realizar o retorno a Marx, só que num enfoque puramente teórico, exegético, que permitisse uma purificação do fardo dos crimes stalinistas num engajamento místico desligado da práxis27. Em 1965, vêm a público duas obras que se tornariam de referência para o marxismo estruturalista: a coletânea de artigos de Althusser, Pour Marx, e o livro coletivo Lire Le Capital. Nesses trabalhos, Althusser retoma a noção de “corte epistemológico” de Gaston Bachelard a fim de distinguir claramente entre a ideologia, de um lado, e a ciência, de outro, encarnada no marxismo como centro da racionalidade contemporânea.28 Aplicada à obra de Marx, a noção de “corte epistemológico” visa demonstrar como em 1845 Marx rompeu com a filosofia do sujeito que orientava seus trabalhos anteriores e passou a trabalhar com conceitos como os de formação social, forças produtivas, relações de produção etc., os quais permitiram a redação da grande obra científica da maturidade, O capital29. Para althusserianos como Étienne Balibar, tudo funciona como um processo sem sujeito: “Os homens só aparecem na teoria sob a forma de suportes das relações implícitas na estrutura”.30 Em 1966, aparece o livro de Michel Foucault Les mots et les choses, e no mesmo ano seu autor declara em entrevista que Sartre “é ainda um homem do século 19, visto que todo o seu empreendimento tem por finalidade tornar o homem adequado à sua própria significação”.31 A referida obra marca a adesão total de Foucault ao paradigma estrutural, mas é certo que o filósofo modificou suas posições posteriormente, sendo possível distinguir três fases: (a) a fase estrutural, que vai de Histoire de la folie (1961) a Les mots…; (b) uma fase de transição, em que o autor se desloca das epistemes para as práticas discursivas, como se pode ver nas obras L’Archéologie du savoir (1968) e Surveiller et punir (1975); (c) e uma última fase, já na segunda metade dos anos 1970, quando o paradigma estrutural vê-se repleto de fissuras, e o sujeito retorna para o quadro teórico: La Volonté de savoir (1976) e as obras seguintes seguem essa direção32. O Foucault estrutural da primeira fase radicaliza o estruturalismo ao historicizar o advento da ilusão contida na idéia de que o homem é sujeito de sua própria história: esse homem é antes o resultado dos dispositivos de conhecimento do século XIX, a saber, a filologia, a economia política e a biologia. Nesse descentramento do homem, Foucault está preocupado em explicitar a ilusão da consciência, posto que o homem é submetido a temporalidades que lhe escapam: assim, certas configurações discursivas, as epistemes, em cada época impõem o que é pensável e o que não é. Daí a distinção entre as epistemes da Renascença, da Era Clássica e da Modernidade33.

Que relações é possível estabelecer entre o paradigma estruturalista e a atmosfera desencantada da Europa desde os anos 1950? Dosse afirma que o estruturalismo expressa o que se convencionou a chamar de pós-modernidade. As principais características do pós-modernismo podem ser encontradas nas obras dos mestres do pensamento estrutural, a saber: (a) a noção de um presente sem devir, uma dilatação do presente e uma presentificação do passado, como se vê, por exemplo, na memória como forma de repressão da história, como busca não mais de origens para desenvolver potencialidades do devir, mas simples recordação dos signos do passado a sobreviver num presente imutável;34 (b) o irracionalismo, cujas raízes remontam a Nietzsche e Heidegger, e que expressa a decepção com as promessas do Iluminismo otimista para cair no niilismo permanente de “uma razão que trabalha para sua própria descentralização”;35 (c) o relativismo absoluto, tal como defendido por Lévi-Strauss no texto “Race et Histoire” (1952), que rechaçou qualquer clivagem entre culturas superiores/inferiores, ou seja, o progresso de uma cultura não pode ser índice para o progresso de outra, idéia que ajudou a promover a crise da noção de progresso;36 (d) a aposentadoria do homem, relegado a ser mera ilusão envolta em ilusões, pois não existem sujeitos, existem estruturas; (e) e uma ruptura radical em relação ao Iluminismo e aos valores e direitos universais, liberdade, igualdade e fraternidade, em nome das lutas das minorias particularistas.37 Segundo Dosse, o desencantamento pós-moderno em que submergiram os estruturalistas resultou de condicionamentos sociais da história do século XX. Desde 1943 o otimismo evolucionista morrera em Auschwitz. Em 1956, a divulgação dos crimes de Stálin solapara as poucas esperanças que restavam. A invasão da Tchecoslováquia pela URSS em 1968 fez aumentar ainda mais o desolamento dos marxistas: para Maurice Godelier, que estava na Nova Guiné e chorou ao saber da primavera de Praga, “estava tudo acabado”.38 Opositores do estruturalismo, como o marxista Henri Lefebvre, viram com desconfiança tais justificativas: para Lefebvre, o estruturalismo não passou de uma ideologia de legitimação de uma classe média guindada a uma posição dominante no novo Estado industrial; a tecnoestrutura encontrar-se-ia perfeitamente legitimada com noções como “fim da história” e “morte do homem” – que nesse quadro não teria outra coisa a fazer senão consumir.39 Sem afirmar se concorda com Lefebvre, Dosse examina com sobriedade a ascensão institucional dos mestres-pensadores do estruturalismo. Não é possível entender o movimento sem ter em conta que os estruturalistas em geral vieram da filosofia e procuravam responder aos desafios das ciências sociais; que partilhavam um sentimento de que enfrentavam o conservadorismo da velha Sorbonne, que se fechou às novas influências da lingüística; que ficaram relegados às instituições mais ou menos marginais, como a 6ª Seção da EPHE ou o Collège de France, de onde destilavam sua crítica mordaz contra os mandarins da ortodoxia.40 Além disso, sem compreender as características do ambiente intelectual francês, não é possível entender por que o movimento estruturalista foi um fenômeno predominantemente francófono: o peso das humanidades no país, a tradição do intelectual público, a consciência de que deixaram de ser uma grande potência, o contato tardio com as novidades da lingüística e a intensidade da vida intelectual parisiense certamente fornecem pistas importantes para essa compreensão.41 As críticas que o paradigma estruturalista sofreu desde sua ascensão até o colapso final são levantadas com precisão por Dosse. O triunfo do estruturalismo eclipsou a filosofia humanista de Sartre, que se via cada vez mais isolado tanto por sua posição política na esquerda militante, quanto por sua defesa intransigente de que o homem só existe pela intencionalidade de sua consciência e que está condenado à liberdade.42 Assim, não surpreenderia que Sartre saudasse com pessimismo o livro Les mots et les choses de Foucault, afirmando que a intenção deste autor não seria outra senão “demonstrar a impossibilidade de uma reflexão histórica. Para além da história, bem entendido, é o marxismo que está sendo visado. Trata-se de construir uma barreira nova, a última barragem que a burguesia pode ainda erguer contra Marx”43. Outros autores marxistas também se opuseram ao estruturalismo:

Pierre Vilar, na sua contribuição ao livro Faire de l’histoire (1974), de Pierre Nora e Jacques Le Goff, destoa da aprovação dos demais historiadores que participaram da coletânea, e aponta que a obra de Foucault possui “contra-sensos históricos multiplicados”44; antes, em meados dos anos 1960, o filósofo Lucien Sève denunciou na obra de Godelier a eliminação da luta de classes na transformação dialética.45 O grupo que se reuniu em torno de Georges Gurvitch, integrado por Jean Duvignaud, Pierre Ansart, Lucien Goldmann, Henri Lefebvre e Georges Balandier, mostrou-se bastante reticente ao estruturalismo de Lévi-Strauss. Balandier, por exemplo, como outros que se debruçaram sobre a África em pleno dinamismo de sua história colonial, descobre ali sociedades que de forma alguma estão imobilizadas no tempo.

Ao enfatizar a dimensão do poder, Balandier não apenas sublinha o aspecto da historicidade, como também rechaça o equilíbrio “aparente e enganador” que transparece nas análises estruturalistas.46 A partir de 1967, aparecem as primeiras fissuras no paradigma estrutural, que inicia um período de declínio que chega até os dias de hoje. Paradoxalmente, se desde 1967 o estruturalismo passa a gozar de amplo sucesso na mídia, sendo traduzido em obras didáticas de divulgação, cada um dos mestres-pensadores passa a evitar o qualificativo de estruturalista (com exceção de Lévi-Strauss). Se Foucault procurou outros caminhos aproximando-se dos historiadores, Althusser, frente às críticas demolidoras lançadas à sua obra, iniciou uma via-crúcis em que ele mesmo passou a desconstruir o que produzira, chegando ao final dos anos 1970 como se estivesse enterrado vivo.47 Quais as razões do declínio do estruturalismo? Para responder a essa questão, Dosse articula com maestria um conjunto de determinações sociais, institucionais e teóricas. Não se pode desprezar o impacto que teve dez milhões de grevistas e a radicalização do movimento estudantil em maio de 1968 na França: era a desforra de Sartre, a materialização de seu modelo teórico segundo o qual os indivíduos alienados têm a capacidade para impor sua liberdade pelo engajamento, e ao mesmo tempo era um sinal de que a noção estruturalista de que não havia sujeito não valia mais nada. “As estruturas não descem para a rua”, e se há um “pensamento 68”, é o dos adversários do estruturalismo: Sartre, Morin, Duvignaud, Lefort, Touraine, Lefebvre, Castoriadis.48 (Foucault, na contramão de seus colegas estruturalistas, vai para as ruas, assina petições, ajuda a imprimir panfletos etc., e sua participação ativa no maio de 68 mudará daí por diante suas reflexões filosóficas)49. Cumpre acrescentar que em 1974 sai a tradução francesa de Arquipélago Gulag de Soljénitsyne, e os intelectuais franceses tornam-se cada vez mais conscientes dos problemas de direitos humanos no Leste, o que favorecerá um retorno dos valores Iluministas.50 Por outro lado, a institucionalização dos mestres-pensadores do estruturalismo pode ter diluído a força crítica corrosiva que caracterizou a ascensão do movimento: em 1969, Foucault derrota Paul Ricoeur no concurso para ingresso no Collège de France, onde se junta a Georges Dumézil e Lévi-Strauss na legitimação do pensamento estrutural; em 1975, Barthes passa a integrar a mesma instituição;51 em Nanterre, depois de maio de 68, todo um departamento de lingüística é criado, juntando-se a Jean Dubois que ali já estava.52 Do ponto de vista teórico, a crise do paradigma é agravada com o vanguardismo pós-estruturalista da obra de Jacques Derrida, que na esteira dos aportes heideggerianos procede a uma desconstrução do estruturalismo “por dentro”. Derrida estabelece conceitos ambivalentes, como o de “différance”, que funcionam como instrumentos de desconstrução, desestabilizando “as oposições tradicionais ao fazer jogar os indecidíveis, verdadeiras unidades de simulacro, organizadores de uma nova ordem, carnavalesca, da razão”.53 Tal arsenal é dirigido contra as próprias obras estruturalistas, como os escritos de Foucault e Lévi-Strauss, acusados, dentre outras coisas, de ainda estarem presos, respectivamente, ao sujeito e ao etnocentrismo ocidental.54 Apesar dessas críticas, o paradigma estrutural é visto durante os 1970 como um grande desafio para os historiadores franceses. A segunda geração dos Annales, sob a batuta de Braudel, respondeu ao desafio dos estruturalistas com a longa-duração e a ênfase nas permanências da história. A terceira geração, composta de um grupo mais jovem de historiadores (Burguière, Ferro, Le Goff, Le Roy Ladurie, Revel etc.), responde ao desafio de modo diverso, procurando assimilar o programa temático daquele paradigma. A influência de Foucault é importante nesse momento, a ponto de Le Roy Ladurie defender uma “história sem os homens”,55 e Pierre Nora e Paul Veyne enfatizarem que não existe mais história total, mas sim fragmentos de “histórias parciais”.56 (Dosse acredita que a recepção dos historiadores à obra de Foucault é “fonte de numerosos mal-entendidos […] pois o olhar de Foucault é o do filósofo que, filiado a Nietzsche e Heidegger, decide desconstruir o território do historiador.

É a esfera discursiva que interessa a Foucault e não o referente”)57. Seja como for, a influência do estruturalismo é visível entre esses historiadores das mentalidades que se interrogam sobre a sexualidade, a morte, a família, o medo etc.58 A despeito desse último fôlego do estruturalismo, o paradigma declinou continuamente durante as décadas de 1970 e 80. Embora constate o surgimento de correntes teóricas recentes que, de um lado, radicalizam o estruturalismo (por exemplo, entre os seguidores de Lévi-Strauss ou os pós-estruturalistas)59 e, de outro, retornam ao individualismo metodológico (como Raymond Bourdon, Touraine e os historiadores biográficos),60 Dosse direciona o foco para os autores que contemporaneamente tentam superar os impasses do estruturalismo, dinamizando-o, introduzindo o sujeito histórico, mas conservando certas conquistas rumo a um novo paradigma da complexidade. Desde os anos 1970, é possível observar entre alguns egressos do movimento estruturalista essa tendência em superar conservando o paradigma. O sociólogo Pierre Bourdieu reintroduziu o conceito de habitus, a partir das reflexões de Chomsky, da filosofia analítica e de Wittgenstein, a fim de deslocar a atenção das regras para as práticas dos sujeitos, e enfatizar que a ação não é a execução automática de uma regra, que há condições de possibilidades das práticas, embora isso não queira dizer que o sujeito tenha livre-escolha de suas estratégias.

(A terceira via de Bourdieu, para Dosse, ainda é excessivamente estruturalista)61.

Julia Kristeva procurou em Mikhail Bakhtin um modo de dinamizar o estruturalismo na análise dos textos literários, ao que foi seguida posteriormente por Tzvetan Todorov e (com alguma reserva) por Barthes: em Bakhtin é possível encontrar uma perspectiva teórica que permite entender os diálogos entre os textos e trazer de volta o sujeito para o palco, por meio das noções de dialógica, intertextualidade e polifonia.62 Paul Ricoeur, por sua vez, vê como válida a análise do jogo interno das dependências estruturais do texto, mas a entende como um primeiro nível, explicativo e semiológico, do estudo das obras; o segundo nível é o interpretativo, que deve permanecer aberto para a referência ao sentido e para o que há fora da linguagem.63 Por fim, o novo paradigma encontra uma contribuição importante na obra de Edgar Morin, que inclusive o define como “paradigma da dialógica”.64 Morin defende que a complexidade do mundo deve ser pensada por um saber complexo, que articule os diversos domínios das ciências naturais e humanas, artificialmente separadas; um conhecimento que recuse a compartimentação e o reducionismo; que apreenda realidades imprevisíveis, instáveis, movidas pela desordem e pela mudança incessante.65 O parecer de Dosse sobre o legado do estruturalismo reconhece que ficou de tudo isso “uma época particularmente rica, fecunda, e um acervo de experiências que mudaram de forma duradoura nossa visão do mundo e nossa grade de leitura”66.

Distanciando-se de certo pessimismo pós-moderno que faz tábula rasa das correntes anteriores para melhor se afirmar como novidade, Dosse sublinha que algumas exigências permanentes da ciência constituem um legado do paradigma estrutural:

a preocupação com o rigor; a perspectiva de apreender a totalidade significativa; a noção de estrutura; a crítica da razão ocidental; o primado do simbólico.67 História do estruturalismo já se consolidou como uma obra de referência obrigatória a todos aqueles que querem entender a dinâmica do pensamento das ciências humanas no século XX. Entretanto, está sujeita a receber críticas dos especialistas que a possam ler. É possível que o método de coleta, análise e exposição do material das entrevistas suscite reservas, pois embora permitam o acesso à contínua reelaboração da memória dos autores, as entrevistas não raro são utilizadas por Dosse (é preciso reconhecer) para esclarecer um ou outro ponto obscuro das teorias apresentadas. Especialistas talvez não fiquem satisfeitos com o modo como o entrevistado (que nem sempre é o autor) reconstituiu certa questão, sem o devido cotejamento do texto original. Por essa razão, os leitores que procuram esta obra como único meio de acesso ao pensamento de certo autor tenderão a não ganhar tanto quanto aqueles que buscam uma visão global da história de um movimento intelectual.

Contudo, tais questões não retiram o brilho dessa obra magistral que se destaca pela sua universalidade, por mostrar ao mesmo tempo o embate entre os estruturalistas e seus opositores sem cair num unilateralismo partidário ou num evolucionismo míope. Dosse articula com perspicácia os condicionamentos sociais dos períodos analisados, as concorrências institucionais e pessoais em que os autores estavam envolvidos, e os desenvolvimentos ou metamorfoses pelos quais passou o conteúdo do pensamento dos autores, e articula esses três níveis sem recorrer ao esquema rudimentar do “reflexo”, mas sim procurando as múltiplas determinações e interdependências entre eles. Permanece, pois, fiel à intenção holística, tanto nas proporções globais do problema formulado, quanto no trato da pluralidade de determinações dos acontecimentos descritos.

Notas

2 DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007, v. 2, p. 504.

3 A Edição original em francês apareceu entre 1991 e 1992. A primeira edição em português há muito se esgotou DOSSE, François. A história do estruturalismo. São Paulo: Ensaio; Campinas: EdUnicamp, 1994, 2 v. Note-se que a primeira edição em português apresentava uma documentação fotogrática levantada por Dosse, que infelizmente foi suprimida da nova edição da Edusc.

4 DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo: Ensaio; Campinas: EdUnicamp, 1992.

5 Idem. A História. Bauru: Edusc, 2003.

6 Idem. A história à prova do tempo: da história em migalhas ao resgate do sentido. São Paulo: EdUnesp, 2001; d. O império do sentido: a humanização das ciências humanas. Bauru: Edusc; 2003.

7 NORA, Pierre (org.). Ensaios de ego-história. Lisboa: Edições 70, 1987; DOSSE, François. História e ciências sociais. Bauru: Edusc, 2004.

8 FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses apud DOSSE, História do…, p. 11.

9 DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 1. p. 12.

10 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 87.

11 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 12.

12 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 12.

13 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 54.

14 LÉVI-STRAUSS, Claude. Introduction à l’oeuvre de Marcel Mauss apud DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 1, p. 61-62.

15 LÉVI-STRAUSS, Claude. Le cru et le cuit apud DOSSE, François. A história do estruturalismo…, p. 344.

16 LÉVI-STRAUSS, Claude. L’homme nu apud DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 1, p. 346.

17 DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 1, p. 140.

18 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 151.

19 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 157.

20 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 160.

21 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 321.

22 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 118.

23 BARTHES, Roland. Le degré zéro de l’écriture apud DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 1, p. 119.

24 BARTHES, Roland. Mythologies apud DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 1, p. 122.

25 DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 1, p. 287.

26 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 381.

27 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 389.

28 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 383.

29 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 393.

30 BALIBAR, Étienne. Lire Le Capital apud DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 1, p. 399.

31 FOUCAULT, Michel. Lectures pour tous (1966). Document INA, difusão Océaniques, FR3, 13 jan.

1988 apud DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 1, p. 425. 32 DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 1, p. 417.

33 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 429-433.

34 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 456.

35 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 449.

36 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 452.

37 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, 458-59.

38 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, 451.

39 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, 454-55.

40 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 486-87.

41 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 491-93.

42 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 1, p. 33.

43 SARTRE, Jean-Paul. Jean-Paul Sartre répond. L’Arc, Paris, n. 30, 1966 apud DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 1, p. 421.

44 VILAR, Pierre. Histoire marxiste, histoire en construction. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Ed.). Faire de l’histoire apud DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007.v. 2, p. 322.

45 DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 2, p. 128.

46 BALANDIER, Georges. Anthropologie politique apud DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 1, p. 349-50.

47 DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 2, p. 228-30.

48 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 151.

49 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 157.

50 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 332.

51 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 179.

52 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 174.

53 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 40.

54 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 42, 48-49, 53.

55 LE ROY LADURIE, Emmanuel. Le territoire de l’historien apud DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 2, p. 321.

56 VEYNE, Paul,. Comment on écrit l’histoire apud DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 2, p. 324.

57 DOSSE, François. A história do estruturalismo. Bauru: Edusc, 2007. v. 2, p. 291-95.

58 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 326.

59 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 490-500, 508; sobre Derrida: DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 33-53, passim.

60 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 432-39.

61 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 371-73.

62 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 78-79, 401.

63 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 554.

64 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 552.

65 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 551-52.

66 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 503.

67 DOSSE, François. A história do estruturalismo…, v. 2, p. 505.

Francismar Alex Lopes de Carvalho Doutorando em História econômica/ USP; Bolsista da CAPES. E-mail: francismar@usp.br.

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