História e Educação: práticas e reflexões em tempos de pensamentos anticientíficos / Escritas / 2020

Observamos nos últimos anos um avanço do pensamento anticientífico em determinados grupos sociais ao redor do mundo, impactando também segmentos da sociedade brasileira. Tais ideias congregam setores conservadores, com interesses diversos, promovendo um recrudescimento de pautas negacionistas que desqualificam pesquisas históricas acadêmicas sobre escravidão, racismo, religiões afro-brasileiras, questão indígena, movimentos de esquerda, ditaduras militares, nazifascismo, direitos humanos, gênero e sexualidade.

Estas visões tentam assumir ações de controle do debate público e de recusa ao pensamento intelectual ao difundir ideias sem respaldo científico por meio das mídias sociais, principalmente, mas que ganharam espaço no debate público. Como por exemplo, as disputas parlamentares em diversas câmaras de vereadores em torno do que se denominou como “Escola Sem Partido”, afrontando diretamente a autonomia docente. Assim, este dossiê dialoga com a conjuntura política atual do país e suas implicações para a Educação Básica, motivando o que o historiador Fernando Penna (2016) identificou como um “ódio aos professores”. Esse processo afeta diretamente os professores que ministram disciplinas das Ciências Humanas, incluindo a História. Tendo como base um conservadorismo de cunho fundamentalista, opera-se uma vigilância da fala do docente, defendendo uma suposta neutralidade.

A partir da ascensão à presidência da República de Jair Bolsonaro, em janeiro de 2019, eleito pelo PSL (atualmente sem partido), reunindo os setores mais conservadores da sociedade brasileira, iniciou-se a institucionalização de ideias anticientíficas e sem credibilidade acadêmica. Deste modo, o debate sai das postagens em redes sociais e ganha espaço institucional ao transitar por órgãos federais da administração direta.

O eco desse debate ressoa nos bancos escolares levando aos docentes e discentes demandas que perpassam discussões históricas, políticas e socioculturais. De tal modo que não apenas os professores que lecionam a disciplina História se veem desafiados a se munir de argumentos científicos para rebater posições rasas e sem respaldo em pesquisas de especialistas. Todavia, a História nos mostra que não devem ser ignorados, a custo de avançarem de forma vertiginosa. Na sala de aula, nos corredores das escolas e nas redes sociais são muitos fronts de atuação dos professores, sendo constantemente questionados quanto às explicações de processos históricos, produzindo confrontos de narrativas.

Dentro e fora do espaço escolar, os enfrentamentos docentes em prol de pensamentos com respaldo racional e científico os faz serem constantemente convocados a se pronunciar em redes sociais e em debates extraclasse, e não raras vezes, sendo deslegitimado em seu ofício por concepções fundamentalistas e anticientíficas. O avanço do anti-intelectualismo, na atual conjuntura político-social, vem impactando as relações pedagógicas e isso é um fato.

Neste dossiê, reunimos artigos que, sob o ponto de vista docente, se debruçaram sobre a análise da conjuntura político-educacional e teceram reflexões sobre as práticas, as experiências e os saberes docentes como propostas de enfrentamento ao atual cenário educacional. O conjunto dos artigos que apresentamos reflete o tamanho do nosso desafio enquanto pesquisadores e professores, desnuda nossas inseguranças e medos, mas também produz análises que nos conduzem às resistências cotidianas, pois a Educação e o Ensino de História, em especial, é estratégico na luta pela democracia plena e para o combate a todas as formas de preconceito e desigualdades sociais.

Em “O ‘belo risco’ do ensino de história frente aos medos do movimento Escola Sem Partido”, João Carlos Escosteguy Filho caracteriza o Movimento Escola sem Partido (MESP) como um dos principais espaços de concentração de ações, políticas e reflexões da “onda conservadora” para pensar educação e ensino de história no Brasil. Aponta ainda para possíveis caminhos de como o ensino de história poderia atuar frente à ameaça deste movimento.

Sinalizando a “Tríade que ameaça a educação brasileira”: o “professor doutrinador”, homeschooling e “ideologia de gênero”, Amanda de Mendonça reflete sobre a criação de uma agenda conservadora a partir da análise de discursos públicos que refletem o avanço do fundamentalismo religioso em confronto direto com a educação pública, democrática e laica.

Em consonância com estas postulações, a partir de sua pesquisa etnográfica, Alline de Assis Xavier Maia analisa como o livro sagrado dos cristãos, a bíblia, vem sendo utilizado no espaço escolar e nas aulas de História por alunos e seus responsáveis, como “construtor de verdades e moralidades” e abordado como “conhecimento escolar”.

Refletindo sobre a produção de “conhecimento histórico escolar”, Thays Merolla Piubel nos traz a discussão sobre os “Temas sensíveis no Ensino de História” e a relação passado / presente, refletindo sobre as tensões produzidas no currículo de História, considerado político, construtor de identidades e promotor de direitos humanos.

Com objetivo de refletir sobre as disputas de memórias e as questões políticoideológicas, Martha Victor Vieira apresenta um estudo comparativo, balizando manuais escolares brasileiros e portugueses quanto às narrativas relativas aos primeiros contatos interétnicos no Brasil, indicando como pautas de empoderamento reivindicadas por grupos indígenas podem interferir nas diretrizes educacionais e nas narrativas dos livros didáticos.

Tomando como base de sua análise as disputas de memórias e narrativas sobre o ensino da ditadura civil-militar no Brasil, Leandro Rosetti de Almeida, em “A história pisando em ovos ou sobre como digerir o passado recente da história do Brasil”, discute a relação entre o Ensino de História e o descrédito do pensamento científico na atualidade. Também nos traz a importante discussão sobre a dimensão pública do conhecimento histórico como um possível caminho de diálogo social sobre o passado, frente ao pensamento anticientífico e negacionista.

Na direção de propor alternativas de enfrentamento, Pâmella Santos dos Passos e Luciana Guigues analisam a conjuntura conservadora e propõem “táticas de superação”, demonstrando a importância do diálogo e do afeto nas aulas de História, o que precisa ser reforçado nos cursos de formação de futuros professores de História.

Por acreditarmos que a educação é decisiva no processo de alteração da realidade social, a escola e a sala de aula precisam continuar sendo espaços estratégicos para o diálogo e para o combate aos preconceitos e às desigualdades, a despeito das forças conservadoras e anticientíficas que tentam emperrar o avanço de pautas progressistas. Mesmo que, nesses tempos sombrios, o mar não esteja favorável e que estejamos navegando em meio a tormenta, é preciso levantar a vela e segurar o leme com a mão firme.

Somente a Pedagogia da Esperança, na acepção de Paulo Freire, nos conduzirá a dias melhores, por isso, oferecemos aos leitores e às leitoras, o dossiê História e Educação: práticas e reflexões em tempos de pensamento anticientífico. Resta-nos a reflexão e a ação!

Complementam essa edição, na Sessão Livre, seis (06) artigos que tratam de variados temas de interesse da Revista Escritas. No artigo “Aproximações entre Arqueologia, Educação patrimonial e diferentes segmentos da sociedade: construindo experiências a partir da Universidade Federal do Amapá, Campus Marco Zero.”, Avelino Gambim Júnior e Jelly Juliane Souza de Lima apresentam reflexões sobre como, partindo da Educação Patrimonial, é possível construir aproximações entre passado e presente, de um lado, e Universidade e sociedade, de outro.

Eduardo Cristiano Hass da Silva, Estela Denise Schütz Brito e Christiano Roberto Lima de Aguiar, no artigo “História das infâncias em São Leopoldo (RS): os brinquedos e a cultura lúdica do brincar em uma cidade de colonização alemã no Sul do Brasil (Início do século XX)”, analisam os modos de ser e estar na infância na cidade de São Leopoldo, sul do Brasil, no início do século XX.

No artigo “Os conceitos divisores do Espaço: reflexões em torno de uma interação entre a História e a Geografia”, José D’Assunção Barros discute os principais conceitos divisores do Espaço, especialmente Região, Área, Zona e Território, realizando, à luz da análise dos conceitos referidos, uma reflexão sobre a obra Geografia da Fome, de Josué de Castro.

Alice Marc discute, no artigo “Da biografia do grupo primário à biografia de Francisco Rodolfo Simch: biografização e razão histórica para a constituição do sentido”, a relevância da biografia do grupo primário para a constituição da biografia de Francisco Rodolfo Simch, defendendo que a biografização é constituidora de sentido histórico.

Em “Ecos de la Dictadura en las memorias de Angelo Bruno”, Luiza Helena Oliveira da Silva analisa as narrativas acerca da Ditadura civil-militar no Brasil (1964- 1985) no livro do escritor ítalo-brasileiro Angelo Bruno intitulado Em duas pátrias, um só coração, evidenciando, com sensibilidade, a importância de Bruno para a reconstituição da História dos Vales dos Rios Araguaia e Tocantins.

Márcio Araújo de Melo, Andréia Nascimento Carmo e Valdivina Telia Rosa de Melian apresentam no artigo “Duelar, jogar e narrar” uma leitura do conto Duelo de Guimarães Rosa. Os autores têm por objetivo principal evidenciar como o narrador do conto se vale da expertise do jogo para narrar uma disputa entre personagens, enunciando em suas análises a ideia de que, no conto, o “narrar e o “jogar” são estratégias narrativas.

Ainda nessa edição, temos uma resenha e uma entrevista. Walace Rodrigues apresenta no texto intitulado “A potente poesia indígena de Márcia Wayna Kambeba em O lugar do saber” uma resenha da obra O lugar do saber, de Kambeba. Rodrigues destaca que a referida obra, além de um livro de poesia, seria também uma produção de divulgação da cultura dos diversos povos indígenas do Brasil.

A entrevista “Memórias da Guerrilha do Araguaia: entrevista com José Genoíno Neto” foi produzida pelos pesquisadores César Alessandro Sagrillo Figueiredo, Naiane Vieira dos Reis, Luiza Helena Oliveira da Silva e Paulo César Lucena de Sousa. Nela encontramos a narrativa do ex-guerrilheiro, em referência no título, acerca de questões relevantes sobre aquele período e processo histórico no Brasil.

Bibliografia

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Caroline Vieira – Doutorado pela UERJ. Professora de história da educação básica na FAETEC (Fundação de Amparo ao Ensino Técnico do estado do Rio de Janeiro).

Juçara Mello – Doutorado em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUCRio. Professora do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUCRio. Integra o Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura e o Programa de Pós-Graduação em Ensino de História – ProfHistória- atuando como coordenadora deste último. Ambos do Departamento de História da PUC-Rio.

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[DR]

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