História e Literatura abordagens e diálogos/ Fênix – Revista de História e Estudos Culturais/2015

O dossiê História e Literatura abordagens e diálogos que tivemos o prazer de organizar, e a responsabilidade de apresentar aos leitores da Fênix – Revista de História e Estudos Culturais – reúne escritos de pesquisadores que atuam nas regiões norte e sudeste do Brasil e que tem realizado esforços em um campo muito debatido no interior do campo acadêmico, mas, relativamente ainda pouco praticado: a interlocução interdisciplinar. O elemento aglutinador dos trabalhos que ora apresentamos é a relação entre História e Literatura e os artigos revelam uma preocupação dos autores com os elementos estéticos do campo literário enquanto dispositivos mediadores de tal relação, o que, em última instância, revela os intrincados caminhos entre “realidade e ficção”. Contemporaneamente, a narrativa histórica como parte de um mundo imaginado não é uma concepção que cause estranheza à maioria dos historiadores. Um diálogo profícuo vem sendo realizado entre historiadores e especialistas em Literatura de diversas abordagens, o que tem ampliado a segurança dos primeiros para trabalhar com o material literário. Paralela e concomitantemente vários desses estudiosos do campo literário tem se deslocado de uma concepção de arte autonomizada em direção de uma concepção que re-considera que os fenômenos estéticos podem também serem historicizados.

No artigo “Olhares sobre o moderno e a modernidade na obra de Manoel de Barros: crítica e recepção”, Fernanda Martins da Silva discute a argumentação da crítica que concebe a obra de Manoel de Barros como moderna. Abrindo o debate a partir do olhar da recepção Silva nos conduz a um passeio poético por caminhos nos quais é apresentada ao leitor uma busca por entender os processos que exprimem as continuidades e as rupturas do próprio movimento estético moderno na lírica de Manoel. “Excitado pela metalinguagem”, em seus poemas Manoel de Barros, expõem a construção de suas (des)palavras como poética do ínfimo, do pequeno, do que não é observado pelo homem moderno, surgindo, segundo Silva, em sua poesia uma crítica à noção de progresso e ao processo de modernização que afastaria o homem da possibilidade de se reencontrar com a natureza e consigo mesmo.

Em “Lentilhas e Lobas: História e ficção na Pirataria do Caribe”, Dernival Venâncio Ramos e Marina Haizenreder Ertzogue buscam traduzir no poema épico Espejo da paciencia, de Silvestre Balboa e no romance Lobas de Mar, de Zoé Valdés, a importância da pirataria, enquanto prática cultural, na formação da sociedade crioula. Pensando a literatura tanto como documento, quanto como exercício ficcional evidenciam para o leitor as bases do imaginário da literatura caribenha por seus laços com as imagens insulares e com a pirataria. Além disso, buscam recompor no artigo traços dessa tradição na produção literária caribenha contemporânea trazendo à luz um movimento estético e narrativo construído e apropriado tanto pela literatura quanto pela história/historiografia: a pirataria como símbolo do contraponto cultural entre a sociedade crioula e a memória colonial (Espanhola).

No artigo “Em torno de O Cego Estrelinho: Contribuições da Semiótica para as reflexões entre Literatura e História”, produzido por Luiza Helena Oliveira da Silva e Márcio Araújo de Melo, vemos surgir um olhar ousado que busca matizar a relação entre Literatura e História com as cores da Semiótica. Exercício interdisciplinar, os autores celebram o sentido, mas sem perder de vista a relação entre a experiência sensível e o narrável. Filiando-se à Semiótica de matriz francesa, os autores se colocam como interlocutores da História ao evidenciarem, por exemplo, a impossibilidade do historiador de atingir a verdade e sua busca por uma relação de verossimilhança com a realidade a partir das fontes que podem ser abordadas como textos em sua dimensão da produção dos sentidos.

Nessa trilha, a partir de uma leitura do conto O Cego Estrelinho, de Mia Couto, delineiam para o leitor um campo de possibilidades de análise Semiótica do qual propõem ser possível fazer inferências historiográficas à medida que essa abordagem teórica seria capaz de evidenciar, a partir da “análise textual” do conto, as fraturas e interdições da narrativa da “realidade” ao desnudar a necessidade da “cegueira” – ao contrário do desejo mimético –, para imaginar – fabular – a realidade, um atributo interpretativo importante tanto na análise literária, quanto na construção histórica.

Em “A Telenovela Como Forma Cultural: gêneros e estilos literários na teleficionalidade”, de Plábio Marcos Martins Desidério, o autor problematiza a teledramaturgia na televisão brasileira e as transposições de linguagens como a do teatro, do cinema e da literatura enquanto uma construção composta a partir de gêneros literários e suas formas correspondentes. Discute como a telenovela, enquanto artefato cultural televisivo bebe em diversas matrizes narrativas e é construído por uma “estética de verossimilhança”. Ao tratar de tais influências, o texto traz a lume, especialmente para leitores não familiarizados com o tema, a relação da teledramaturgia Brasileira com veículos como o “folhetim” e o “soap-opera”, este último a partir da influência da Televisão Estadunidense. Ao problematizar a telenovela, enquanto forma cultural, o texto revela a relação entre ficção e realidade mediada pela verossimilhança por meio da qual o público, em certa medida, orienta a produção artística à medida que dá preferência às representações que lhe permita reconhecer, na ficção, suas práticas culturais.

No artigo “Na rota da Transa-Amazônica”, produzido por Idelma Santigo da Silva e por Hiran de Moura Passos, nos deparamos com um exercício historiográfico que busca no encantamento da literatura – aquela literatura formada fora dos cânones dos sistemas culturais oficiais, nas palavras dos autores – entender nas dobras metafóricas que constituem a obra de cordel intitulada Irmã Serafina Cinque: O anjo da Transamazônica, escrita pelo poeta Antonio Juraci Siqueira, a construção dos significados fronteiriços da estrada Transamazônica; significados estes inscritos em um jogo de palavras que anuncia a “civilização” que invadiu as Amazônias – pluralidades culturais – transformando-as em uma “estrada-guerra” a ser transmutada em “estradador”, cujas violências e doenças eram mitigadas por irmã Serafina.

Contudo, segundo os autores, essa estrada-dor – a Rodovia Transamazônica (BR-230), projetada entre 1969 e 1974, durante a Ditadura Militar – é impactada na literatura de Antonio Juraci de Siqueira pela potencialidade transgressora da “Transaamazônica”, uma “estrada-poesia”, forjada nas bordas culturais, que como arte de/na fronteira insinua algo de descolonial e desafia os programas neocoloniais nas Amazônias.

Incrustrado nessas mesmas amazônias o rio Tocantins, objeto das narrativas discutidas no artigo “Dos abismos: Imaginação e tradição na tessitura da narrativa sobre os rios Araguaia e Tocantins em Ignácio Baptista de Moura e J. A. Leite Moraes”, escrito por Olivia Macedo Miranda Cormineiro, é também uma estrada: estrada sobre águas e cercada de florestas, porém as narrativas por meio das quais a autora busca entender os significados dos rios não são literárias, mas os relatos das viagens do engenheiro Ignácio Baptista de Moura e do advogado Joaquim de Almeida Leite Moraes, que estiveram na região nas duas últimas décadas do século XIX.

Por outro lado, segundo Cormineiro, estes narradores mobilizaram em seus textos uma linguagem afetiva e poética que remontam à literatura da Antiguidade Clássica, sobretudo em Virgílio, amalgamando essas imagens literárias ao imaginário local em um exercício de ficcionalização da região que se divide em duas práticas narrativas: de um lado, a tentativa de construir a expressividade do abismo físico constituído pelas cachoeiras dos rios; de outro lado, a busca por construir o abismo imaginário e ficcional, que alicerçou a instituição de uma narrativa política da região relacionada à ideia de fracasso e atraso.

A dimensão estética e literária em relatos não ficcionais é também problematizada no artigo “A criação e o roubo das palavras: enunciados, autor, leitor”, produzido por Euclides Antunes de Medeiros. Nele o olhar se volta para a relação entre escrituração, criação e apropriação na obra O Duro e a Intervenção Militar do juiz/escritor Abílio Wolney Aires Neto. Nessa obra, o autor questiona a veracidade dos fatos narrados por literatos, e re-construídos imageticamente pelo cinema acerca dos fatos ocorridos em São José do Duro-GO, no início do século XX e que ficou conhecido como “A chacina dos nove” que, como o título indica, resultou na morte de nove membros de sua família e da perseguição de seu tio-avô o Coronel Abílio Wolney.

Segundo Medeiros, Wolney Neto deseja restabelecer a reputação de sua família algo que acredita ser possível por meio da reescrita da história. Ironicamente, para isso Wolney Neto se vale, em sua narrativa, da obra híbrida de Euclides da Cunha, Os Sertões, em busca de conseguir atingir os tons épicos e trágicos necessários para seduzir o leitor e, ao mesmo tempo, imprimir ao seu texto a validação da autoridade literária do célebre escritor brasileiro. Ficcionalização, cópia e memória se articulam para dar o sentido buscado por Abílio Wolney deixando no leitor o incômodo de responder quais os limites entre memória, história e literatura à medida que o tecido narrativo produzido pelo juiz é tão resistente que as brechas enunciam as dimensões constitutivas de seu relato não se deixam entre-ver com facilidade.

Em fim, um mundo metaforizado se descortina na análise realizada nos diversos artigos aqui apresentados. A palavra, os gêneros e os estilos literários, os critérios de ficcionalização são articulados e questionados a partir de perspectivas múltiplas, porém mantendo em comum o desejo de visibilizar a importância da relação entre literatura e história.


Organizadores

Euclides Antunes de Medeiros – Doutor pela Universidade Federal de Uberlândia e professor adjunto nos Colegiados dos Cursos de História da Universidade Federal do Tocantins e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos de Cultura e Território no campus de Araguaína. Líder do Grupo de Pesquisa: História Regional, Memórias e Territorialidades. Pesquisador do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura – NEHAC, da Universidade Federal de Uberlândia – UFU.  E-mail: [email protected]

Olivia Macedo Miranda Cormineiro – Professora dos cursos de História da Universidade Federal do Tocantins – UFT, Campus de Araguaína, e doutoranda em História na Universidade Federal de Uberlândia, bem como é membro do Núcleo de Estudos em História da Arte e da Cultura – NEHAC, vinculado à Universidade Federal de Uberlândia – UFU. E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

MEDEIROS, Euclides Antunes de; CORMINEIRO, Olivia Macedo Miranda. Apresentação. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v.12, n.1, jan./jun. 2015. Acessar publicação original [DR]

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