História Indígena na Bahia/Revista de História – UFBA/2022

Não é a marcha inelutável e impessoal da história que mata os índios: são ações e omissões muito tangíveis, movidas por interesses concretos (Manuela Carneiro da Cunha)1

A Nova História Indígena na Bahia e no Nordeste vem há alguns anos, por meio de pesquisas que são desenvolvidas não apenas, mas, especialmente no Programa de Pós graduação em História da UFBA, se consolidando como campo de estudo que privilegia um olhar para a História a partir das trajetórias e experiências históricas de diferentes grupos indígenas, nos diversos territórios da nossa região e em variadas temporalidades. Com recortes temporais que vão desde o período colonial aos dias atuais, historiadores nordestinos têm buscado desvelar os papéis dos povos indígenas em diferentes processos e conjunturas históricas.

O presente dossiê, proposto pelo GT- História Indígena da Bahia, reúne artigos que tomam a História Indígena, em nossos territórios, como objeto de pesquisa. O dossiê, nesse sentido, se soma a um movimento historiográfico mais amplo que procura (re)significar a História do Brasil, particularmente a História da Bahia na perspectiva de atuação dos povos originários.

Ao longo dos últimos anos, desde a década de 1990, a História Indígena vem caminhando a passos largos com a multiplicação de trabalhos, eventos, grupos e linhas de pesquisa que se dedicam à temática indígena na trajetória da formação histórica do Brasil.

No entanto, ainda há muito a ser feito na busca por superar velhos estereótipos, narrativas reducionistas e marginalizantes, que invisibilizam a presença e protagonismo dos grupos entendidos como subalternos. É preciso (re)significar a História a partir da perspectiva e papel dos povos originários nos diferentes momentos e processos históricos, pois embora eles apareçam em muitos contextos apenas como meros coadjuvantes, muitas vezes tão somente citados em uma documentação densa e apologética, eles estão presentes e sua existência não é ocasional, tampouco insignificante, ela dita contornos, transforma situações, define guerras, ocasiona êxitos e ou fracassos. A experiência histórica dos povos indígenas, embora esteja por vezes nas entrelinhas dos textos, por detrás das cortinas, é fundamental para a compressão de diferentes processos e conjunturas em toda nossa História.

A “célebre” frase do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen “para os índios povos na infância não há história e sim etnografia”2 influenciou e ditou uma perspectiva que construiu narrativas pautadas no iminente desaparecimento dos povos indígenas do Brasil e consequentemente forjou apagamentos e silenciamentos concernentes a eles.

Tal silenciamento e tão comum enunciação dizem muito sobre a forma como os grupos indígenas foram vistos ao longo da História, seja nos contextos e nas conjunturas por eles vivenciadas, seja nas visões forjadas a posteriore, historiográficas ou não, nas quais estes foram legados ao silenciamento e obscurantismo. Com o dossiê que ora apresentamos, pretendemos contribuir para a mudança desta perspectiva que já vem crescendo e se consolidando nos últimos anos.

Por meio de artigos que partem de pesquisas desenvolvidas, ou que estão em desenvolvimento, nas quais as agências e emergências dos povos indígenas são desveladas, visamos contribuir para enriquecer o debate nesse campo da História. Com objetivo de fomentar, sistematizar e divulgar diferentes trabalhos que tomam os povos indígenas como objeto de estudo e análise a fim de redimensionar o papel dos índios na formação do Nordeste, em especial da Bahia.

Os artigos apresentados a seguir, oferecem aos leitores e leitoras a percepção dos protagonismos indígenas, ou as suas agências, se assim preferimos nominar, em suas experiências nos processos coloniais e também nos contextos atuais, seja por meio da pesquisa em documentos históricos, seja pela análise das narrativas indígenas e indigenistas que trazem a centralidade dos povos originários. E mais, oportuniza pensar a valorização e operação de saberes outros, que contemplem dimensões e agenciamentos não humanos, como exercício teórico-metodológico e pedagógico para a construção do conhecimento, como propõe o pensador e ativista Ailton Krenak3.

O artigo de Solon Natalício, As entradas contra o “gentio bravo” no Sertão da Capitania da Bahia (1651 – 1669), demonstra o protagonismo indígena na denominada Guerra dos Bárbaros e como os diversos grupos resistiram e adaptaram-se diante do movimento de expansão colonial, sobretudo nos núcleos coloniais do Recôncavo e Sertão baianos. Desenvolvido a partir de uma diversidade de documentos históricos, datados do século XVII, o artigo apresentou a organização colonial que envolveu múltiplos agentes da Coroa e suas tentativas de entrarem pelo sertão para submeterem ao projeto colonizador, os grupos indígenas denominados de Tapuias. Diante da forte resistência indígena, desencadeada ao longo das entradas de bandeiras pelos sertões, os agentes coloniais reconfiguraram a política indigenista do período a partir da adoção de um regime de extermínio, de aldeamentos compulsórios, escravização e usurpação de terras. Porém, as ações fomentadas pelos povos indígenas, revelaram um complexo sistema de relações entre eles e os agentes da Coroa, que iam da cooperação à guerra, o que dificultava o avanço da colonização nas fronteiras sertanejas.

Por sua vez, o texto de Rafael dos Santos Barros, Gaspar Rodrigues Adorno e João Rodrigues Adorno: ser sertanista é um negócio de família, traz as trajetórias de dois bandeirantes e por meio delas, a possibilidade de conhecermos a Bahia seiscentista e setecentista e suas intersecções com as populações indígenas do período. O texto aborda as transformações físicas e sociais do sertão baiano a partir das entradas de bandeiras e a consolidação da administração colonial em terras sertanejas, originárias dos povos indígenas. Por meio de uma vasta documentação, o autor delineou as atuações desses dois sertanistas frente a expansão do domínio português no sertão baiano, além de indicar que, apesar de renomados, eram sujeitos culturalmente mestiços, marcados pelas indefinições, habitando dois mundos: o colonial e o indígena. Outro aspecto importante, que enfatiza o autor, versa sobre a formação de uma elite sem nobreza, mas disposta a se aventurar pelos sertões, principalmente para submeter os grupos indígenas ao projeto de colonização e assim obter mercês e riquezas.

O artigo de Kátia Luzia Oliveira intitulado Visibilizando conhecimentos, culturas, história indígenas através do estudo de narrativas de lideranças, intelectuais e escritores/as indígenas, ao passo que coloca em relevo a temática indígena no bojo das discussões teórico-metodológicas em perspectiva “descolonial/decolonial”, empreende esforço argumentativo acerca da atuação das mulheres, homens e coletividades indígenas como atores históricos e de produção do conhecimento. Um conhecimento pautado nas diversas dimensões dos saberes desses povos, que ultrapassa a ideia de saber intelectual elaborada pelas estruturas ocidentais de produção do conhecimento. Em suas palavras: “acessar o conhecimento a partir do ponto de vista dos sujeitos indígenas é tensionar e operar para a mudança de paradigmas”. Nessa empreitada, a autora ensaia um diálogo com historiadores indígenas que apontam para o necessário desdobramento de tais mudanças na ação pedagógica do ensino de história, capaz de promover o conhecimento de “histórias”, assim, no plural, a fim de contemplar os protagonismos indígenas no passado e no presente do Brasil.

Buscando dar visibilidade às produções desenvolvidas no campo da História Indígena pela historiografia baiana, Caroline Brito e Fabricio Lyrio Santos em seu artigo, História Indígena na Bahia: formação e consolidação de um campo histórico na pós-graduação, dialogam com as pesquisas que foram elaboradas nos últimos anos, desvelando a centralidade da promulgação da Lei 11.645/08. Conforme, analisam, a vigência da lei promoveu e ampliou a consolidação do campo historiográfico e junto com outros fatores, tais como a ampliação dos programas de pós graduação e a proeminência da temática indígena, foi responsável por dar maior visibilidade às experiências históricas, memórias, lutas e resistências dos povos indígenas. Por meio da análise de trabalhos organizados em 5 eixos temáticos, Brito e Santos dão visibilidade às evidências que demonstram e remontam a consolidação da História Indígena na Bahia como campo histórico na última década (2008-2018). Ao catalogar as teses e dissertações, desenvolvidas no campo da História Indígena, nos programas de pós-graduação baianos, convidam os/as leitores/as a conhecer e se aprofundar nas diversas pesquisas, a partir dos eixos temáticos, que nos fazem vislumbrar a diversidade, amplitude e potencialidade da História dos povos originários na Bahia.

Por conseguinte, os textos aqui reunidos são um convite para pensarmos e repensarmos a nossa História a partir e através das narrativas, experiências históricas, autoria e ativismo indígenas e indigenistas.


Notas

1 Manuela Carneiro da Cunha, Parceria ou Barbárie. Folha de São Paulo, São Paulo, p. 3, 22 ago. 1993

2 Francisco Adolfo Varnhagen, História geral do Brasil antes de sua separação e independência de Portugal. 7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962. 6 v. p. 42.

3 Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


Organizadores

Ayalla Oliveira Silva – UFRPE

Jamille Macedo Oliveira Santos – UFRB

Renata Ferreira de Oliveira – IFNMG


Referências desta apresentação

SILVA, Ayalla Oliveira; SANTOS, Jamille Macedo Oliveira; OLIVEIRA, Renata Ferreira de. Apresentação. Revista de História – UFBA, v.10, n.1, p. 1-4, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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