História Política: temas, fontes e problemas | Revista Latino-Americana de História | 2015

Durante o século XIX, o campo da história vivenciou dois processos intimamente relacionados: ao mesmo tempo em que a disciplina arrogava a si o estatuto científico, a predominância do político contemplava o eixo central desta cientificidade, ao concentrar seu método na narrativa dos fatos políticos amparada em documentos oficiais. Eclipsada pela história econômica e social, especialmente a partir da Escola dos Annales, a história política passou por uma renovação nas últimas décadas do século XX, rejeitando o caráter elitista, factual, anedótica e individualista (RÉMOND, 1996, p. 15-18; CAPELATO, 1996). Atualmente, o chamado “retorno” da história política não é mais uma novidade. Diversos balanços historiográficos dão conta dos impactos da renovação da história política e da história cultural nos estudos sobre a política brasileira no século XX (FERREIRA, 2001; GOMES, 1996, 2005 e 2009; CAPELATO, 2007; D’ALESSIO, 2008; SOIHET, 2003).

Angela de Castro Gomes (2005, p. 22) ressalta que a revisão historiográfica ocorrida no Brasil a partir da década de 1970 identificou-se com a renovação da história política em sua articulação com a história cultural. A historiadora destacou a utilização do conceito de cultura política pelos historiadores. Segundo ela, tal ferramenta teórica propicia interpretações sobre o comportamento político dos atores (individuais e coletivos), “privilegiando suas percepções, suas lógicas cognitivas, suas vivências, suas sensibilidades” (GOMES, 2005, p. 30). A autora está em conformidade com Serge Berstein (1997, p. 359), para quem “a verdadeira aposta está em compreender as motivações que levam o homem a adotar este ou aquele comportamento político”. Na mesma linha, Jean-François Sirinelli (1997, p. 414) formula uma conceituação de cultura política: “Um conjunto de representações que une um grupo humano no plano político, isto é, uma visão de mundo partilhada, uma leitura comum do passado, uma projeção do futuro vivida em conjunto”.

Considerando autores como Berstein e Sirinelli, Rodrigo Patto Sá Motta (2014, p. 21) propõe a seguinte definição de cultura política: um “conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas partilhado por determinado grupo humano, que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras comuns do passado, assim como fornece inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro”. Porém, o autor adverte para o risco de empobrecimento da compreensão do fenômeno quando se restringe os estudos de cultura política ao tema das representações, pois as práticas motivadas pelas representações também atuam na constituição das mesmas: “As ações influenciam as representações, que nelas se inspiram e buscam forma, e também garantem a sua reprodução através de práticas rituais” (MOTTA, 2014, p. 23). Para ele, os estudos que enfocam na cultura política têm permitido uma compreensão mais rica e sofisticada do comportamento político, para além da ênfase tradicional no interesse e na adesão às ideias (MOTTA, 2014, p. 29).

Ao destacar a renovação dos estudos de História Política no Brasil, Angela de Castro Gomes (1996, p. 60) salientou as características da história política que predominou no Brasil por muito tempo: “História político-administrativa, com o predomínio de uma narrativa povoada de acontecimentos, grandes vultos, batalhas etc”. Sabemos que a história política renovada é, primordialmente, diferente da história política que se fazia no passado, como podemos apreender do texto Rémond (1999, p. 58): ao estudar o fenômeno político, o historiador deve estar atento às relações que se estabelecem entre o indivíduo e a “sociedade global política”, com o estudo de comportamentos, escolhas, convicções, lembranças, memória, cultura, pois “o político toca a muitas coisas”.

Assim, nas últimas décadas, muito mais do que um retorno da História Política, pode-se falar em renovação da História Política em articulação com a História Cultural, havendo a ampliação de suas fontes, de seus temas e a diversificação das abordagens, movimento concomitante aos processos de democratização e à ampliação dos domínios do político, conforme salientaram René Rémond (1994; 1996) e Pierre Rosanvallon (2013). Este debate constituiu a razão do presente Dossiê, intitulado História Política: temas, fontes e problemas, e a diversidade de temas, além dos variados recortes espaciais e temporais, constitui sua marca principal, pois foi possível perceber, a partir dos textos avaliados e aceitos para a sua composição, as múltiplas abordagens que vêm caracterizando os estudos políticos na produção historiográfica recente.

O artigo de Arthur Ferreira Reis, As estratégias retóricas dos jornais Spectador Brasileiro e O Verdadeiro Liberal, contempla as relações entre imprensa e política ao abordar o caso dos dois periódicos que circularam entre 1824 e 1826 e suas estratégias retóricas de crítica e de defesa do modelo político representado por D. Pedro I. Percebendo a inserção do tema referente à libertação dos escravos no debate político do Segundo Reinado, Robson Pedro Costa apresenta o artigo A Ordem de São Bento e suas estratégias de liberação dos escravos, 1866-1871. O texto discute as estratégias dos monges beneditinos frente a esta questão, destacando as relações entre Estado, Sociedade e Igreja na segunda metade do século XIX.

Avançando para os primeiros anos do regime republicano, Carina Martiny, no artigo Reorganização política na Primeira República: o Partido Republicano Federal, da criação à cisão (Brasil, 1893-1897), chama a atenção para a complexidade dos processos políticos desta fase inicial da República ao analisar as dificuldades enfrentadas pelo PRF na tentativa de construção de uma unidade republicana no Brasil. A autora aponta para a heterogeneidade de interesses dentro do mesmo partido e para a falta de unidade antes e depois da cisão do partido em 1897. Kauan Willian dos Santos e Lucas Thiago Rodarte Alvarenga trazem uma importante revisão historiográfica sobre o Movimento Operário na Primeira República, com o artigo Por que a História (da) Política do Movimento Operário? O caso dos anarquistas na Primeira República entre visões políticas e transformações historiográficas, onde buscam compreender como o movimento anarquista foi abordado, de diferentes maneiras e por vezes de forma militante, pela historiografia a partir da década de 1960.

Seis artigos deste Dossiê enquadram-se no recorte temporal conhecido como Era Vargas. Rafael Nascimento Gomes, no artigo intitulado A importância da biografia histórica para a História Política: as relações Brasil-Uruguai por meio das biografias de Getúlio Vargas e Gabriel Terra (1931-1938), busca explorar o recurso da biografia na História Política com foco nas relações entre os chefes de Estado brasileiro e o Estado uruguaio. Martinho Guedes dos Santos Neto, no artigo O governo provisório de Getúlio Vargas (1930-1934) e a legitimação (des)territorializada do poder, aborda a construção do discurso político do governo provisório em contraponto aos arranjos políticos do período anterior à Revolução de 1930 e a construção simbólica de outros espaços de sustentação política como por exemplo, o Nordeste.

Fazendo uso da obra de Sérgio Buarque de Holanda, Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron para compreender a trajetória de Gustavo Capanema no Ministério da Educação e entre 1934 e 1945, Lara Rodrigues Pereira apresenta o artigo Patrimonialismo, cordialidade, herdeiros: indícios de Buarque de Holanda, Bourdieu e Passeron na estrutura política do “Ministério” Capanema. Outros dois artigos tratam da Campanha de Nacionalização empreendida durante o Estado Novo (1937-1945). A repressão policial como ação de assimilação durante a campanha de nacionalização em Itapiranga (SC), de Leandro Mayer e Rosane Márcia Neumann, trata da repressão na esfera local, cujo alvo era formado por imigrantes alemães e descendentes, em sua articulação com o processo macro conhecido como Campanha de Nacionalização. Clayton Hackenhaar, no artigo Liberais, republicanos e integralistas: a Campanha de Nacionalização em Santa Catarina (1937- 1945), aborda este processo no âmbito estadual, atento à instrumentalização do discurso ideológico de nacionalização pelo grupo político ligado a Nereu Ramos.

Outro artigo que concerne ao período Vargas é o de Guilherme Machado Nunes, intitulado O Centro da Indústria Fabril do Rio Grande do Sul: a Lei de Férias e a burla patronal (1930-1931), tratando da organização da burguesia gaúcha em uma entidade de classe no contexto de implementação das leis trabalhistas. As questões referentes ao papel do Estado na criação das leis trabalhistas e na “mediação” dos conflitos de classe também são temas relevantes na historiografia argentina que está representada pelo artigo Poder y liderazgo peronista. La construcción a partir del 17 de octubre, escrito por Damián Decarli.

Avançando para a década de 1970, mas também tratando dos aspectos políticos das relações entre Estado e economia, Walter Assis Alves, no artigo O germinar do discurso de progresso/industrialização em Três Lagoas/MS na década de 1970, destaca o discurso alusivo ao progresso no contexto de instalação do distrito industrial deste município sul-mato-grossense. O artigo de Diego Garcia Braga, O regime civil-militar em Alegrete: partidos e sublegendas durante a eleição municipal de 1976, aborda um tema ainda pouco estudado no que se refere à ditadura civil-militar iniciada em 1964: as disputas políticas entre ARENA e MDB no âmbito regional e local e o impacto do mecanismo das sublegendas nesta dinâmica eleitoral, a partir do estudo do pleito de 1976 no município de Alegrete/RS. A década de 1970 também é o período destacado por Frederico Alvez Cavanna. Partindo da proposta metodológica de Koselleck, o autor do artigo O Conceito de laicidade no Uruguai: do modelo Batllista à Doutrina da Segurança Nacional, abordou a resignificação do conceito de laicidade na história política uruguaia.

Finalizando o Dossiê, apresentamos o artigo intitulado Os católicos alemães e a política de cooperação transnacional: gênese da fundação e expansão da instituição Misereor, escrito por Douglas Orestes Franzen. O tema contemplado por Franzen, explora as relações entre o catolicismo e a política internacional a partir das ideias e práticas que possibilitaram o surgimento da Misereor – instituição criada pela Igreja Católica alemã para promover ações humanitárias nos países “subdesenvolvidos”. Neste sentido, o tema também contempla a percepção dos católicos alemães sobre a situação do catolicismo nos países que formavam o chamado “Terceiro Mundo” – expressão que diz mundo sobre o imaginário político da segunda metade do século XX.

Diante do que foi exposto, a Revista Latino-Americana de História deseja a todos uma boa leitura desta edição e entende que o Dossiê História Política: temas, fontes e problemas representa mais uma etapa bem-sucedida de nosso compromisso com o diálogo intelectual por meio da publicação de trabalhos acadêmicos.

Referências

BERSTEIN, Serge. La culture politique. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (orgs). Pour une histoire culturelle. Paris: Seul, 1997, p. 371-386.

CAPELATO, Maria Helena Rolim. Estado Novo: novas histórias. In: FREITAS, Marco Cezar de (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2007, p. 183-213.

CAPELATO, Maria Helena Rolim. História Política. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 17, p. 161- 165, 1996.

D’ALESSIO, Marcia Mansor. A política no fazer e no saber históricos. In: SEBRIAN, Raphael Nunes Nicoleti. Dimensões da política na historiografia. Campinas: Pontes Editores, 2008. p. 39-49.

FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

GOMES, Angela de Castro. Política: História, Ciência, Cultura etc. In: Revista Estudos Históricos. Volume 9, n.º 17, 1996.

GOMES, Angela de Castro. História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões. In: SOIHET; Rachel; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2005.

GOMES, Angela de Castro. Jango e a República de 1945-64: da República Populista à Terceira República. In: SOIHET, Rachel [et al]. Mitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 35-50.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia. In: _________. (org.). Culturas políticas na história: novos estudos. Belo Horizonte: Novo Traço, 2014, p. 13-38.

RÉMOND, René. Uma história presente. In: ___________(Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p. 13-36.

RÉMOND, René. Por que a história política? Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 7- 19, 1994.

RÉMOND, René. O retorno do político. In: CHAUVEAU, Agnès; TÉTART, Philippe (Orgs). Questões para a história do presente. Bauru, SP: EDUSC, 1999, p. 51-61.

ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010.

SIRINELLI, Jean-François. Éloge de la complexité. In: ________.; RIOUX, Jean-Pierre. Pour une histoire culturelle. Paris: Seul, 1997, p. 433-442.

SOIHET, Rachel. Introdução. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel. Ensino de História, conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Faperj, 2003.


Organizadores

Douglas Souza Angeli

Fabiano Quadros Rückert


Referências desta apresentação

ANGELI, Douglas Souza; RÜCKERT, Fabiano Quadros. Apresentação. Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.4, n.14, p. 5-10, 2015. Acessar publicação original [DR]

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