História econômica, política e intelectual da África Ocidental: Lógicas de intercâmbio / Varia História / 2020

Em 2013, a revista Varia Historia publicou o dossiê “Nações, Comércio e Trabalho na África Atlântica”. Ao apresentarem esta quinquagésima primeira edição do periódico, Vanicléia Silva Santos e Alexsander Gebara, seus organizadores, destacavam:

É visível o crescimento do campo dos estudos africanos no Brasil ao longo da última década. Cada vez mais eventos dedicados ao tema ocorrem em diversos espaços no país, as agências de fomento investem no desenvolvimento de projetos vinculados à área, as traduções e publicações de livros de pesquisadores brasileiros também aumentaram significativamente nos últimos anos. O diálogo internacional, já em andamento, é mais um objetivo a ser perseguido e consolidado nos próximos anos (Santos; Gebara, 2013).

Naquele momento, as expectativas de investimento no ensino superior brasileiro eram positivas, com editais de fomento em diferentes linhas e, em especial, com financiamento para pesquisas dedicadas aos estudos africanos. No ano anterior, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) havia lançado o Edital Capes n.º 33 / 2012, referente ao Programa Internacional de Apoio à Pesquisa e ao Ensino por meio da Mobilidade Docente e Discente Internacional – Pró-Mobilidade Internacional. Entre os objetivos do programa, constava o oferecimento de oportunidades a estudantes e docentes brasileiros para realização de atividades de pesquisas, desenvolvimento tecnológico e inovação em países lusófonos localizados na África e Ásia. Oportunidades como essa foram fundamentais nas trajetórias de vários jovens pesquisadores que, com financiamento público, puderam, pela primeira vez, estabelecer parcerias e interlocução com pesquisadores angolanos, cabo-verdianos, guineenses, moçambicanos, são-tomenses e timorenses. Thiago Mota, um dos organizadores deste dossiê foi beneficiário dessa iniciativa, enquanto estudante de doutorado. Hoje, professor universitário, coordena um convênio de cooperação entre a Universidade Federal de Viçosa e a Universidade Eduardo Mondlane, de Moçambique, fruto do investimento público no ensino superior de outrora.

Além do Pró-Mobilidade Internacional, a disponibilidade de recursos às universidades e a oferta de bolsas de mestrado e doutorado também foram fundamentais à ampliação da pós-graduação, em geral, e dos estudos africanos pós-graduados, em particular. Este dossiê resulta dessas duas iniciativas, uma vez que foi por intermédio delas que os pesquisadores aqui reunidos iniciaram uma rede de colaboração. Em 2015, o então Centro de Estudos Africanos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) lançou a Chamada de Apoio à Realização de Eventos Científicos, que contemplou a proposta da I Jornada de Estudos sobre África Ocidental. Esse evento foi um dos primeiros do gênero no país a concentrar-se especificamente numa porção do continente africano, considerando suas articulações sociais, culturais, econômicas e políticas internas. Inspirado no Seminário Internacional Cultura, Política e Trabalho na África Meridional, que se realizaria na Unicamp em maio daquele ano, a I Jornada propunha verticalizar a agenda científica em estudos africanos, rumo a uma maior especificidade no campo, por meio de dinâmicas circunscritas ao espaço oeste-africano. Foi a semente deste número.

Do evento resultou o livro Estudos sobre África Ocidental: dinâmicas culturais, diálogos atlânticos (Reis; Resende; Mota, 2016), por intermédio do qual um dos organizadores do dossiê travou profícuo diálogo com Sílvio Marcus de Souza Correa, um dos colaboradores deste volume. A iniciativa fomentou uma segunda edição da Jornada, que tomou corpo através da V Jornada do Centro de Estudos Africanos da UFMG, em 2017, em parceria com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), da Guiné-Bissau. Esse evento contou com ampla participação de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, muitos deles africanos vindos de países como Cabo Verde, Gâmbia, Guiné-Bissau e Nigéria. Dele resultou outro importante livro sobre a história intelectual e o patrimônio cultural na África Ocidental (Santos; Amado; Marcussi; Resende, 2019), estreitando ainda mais os laços entre a historiografia brasileira e aquela procedente do oeste africano.

Entre 2016 e 2017, em decorrência de uma bolsa de doutorado sanduíche a ser cumprida na Universidade de Lisboa, oferecida pela FAPEMIG, o outrora doutorando em História na UFMG estabeleceu trocas intelectuais com Cornelia Giesing, uma vez que ambos estavam vinculados ao Centro de História da Universidade de Lisboa. A estadia em Portugal também o colocou em contato com Juliana Barreto Farias, professora da UNILAB que se preparava para atividades de pós-doutorado em Portugal. Ademais, com o auxílio da bolsa conseguida, o então pesquisador pós-graduando pode deslocar-se ao Senegal e à Gâmbia, para realizar pesquisas em arquivos e bibliotecas desses países. Em Dacar, no Senegal, onde ficou institucionalmente vinculado à Universidade Cheikh Anta Diop, travou duradoura interlocução com Idrissa Ba, outro organizador deste dossiê, parceira que tem se mantido ao longo dos últimos anos e resultado em produtos como este número.

Assim, a rede que permitiu a constituição da presente edição da Varia Historia resulta de um trabalho longo e contínuo, de colaboração e constituição de relações acadêmicas que somente foram possíveis devido ao investimento público na pesquisa brasileira. Destacamos essas informações para evidenciar como o financiamento público à pesquisa tem seus resultados prolongados ao longo do tempo, não se restringindo ao produto imediato do projeto em voga. Num momento em que a academia brasileira vive um período de crise, especialmente no que tange às Humanidades, reconhecer o amplo e duradouro impacto dos recursos recebidos torna-se estratégia de sobrevivência. Apesar disso, o fortalecimento de redes de cooperação acadêmica não isenta a organização deste número do rigor científico e da ética na condução de publicações de resultados de pesquisa. Por isso, todos os artigos que compõem este dossiê foram duplamente avaliados por pares, no sistema de revisão às cegas, e evidenciam os pontos destacados por Santos e Gebara em 2013, no que concerne aos estudos africanos: o impacto positivo do investimento público das agências de pesquisa na área, a maturidade das pesquisas realizadas no Brasil e os avanços necessários rumo à internacionalização dos estudos, da interlocução intelectual e dos resultados.

No Senegal, país cujo território atual corresponde ao espaço de várias das análises inscritas neste dossiê, que abriga muitos dos interlocutores mobilizados nos artigos a seguir e que é casa de um dos organizadores do número, a pesquisa também encontra suas principais fontes de financiamento em órgãos públicos. Trata-se de estruturas nacionais ou universitárias que arcam com a concessão de bolsas a professores-pesquisadores e pesquisadores. Entre essas estruturas, podem-se citar a Academia de Ciências, a Direção da pesquisa e cooperação internacional, as Reitorias, os Decanatos, as comissões de pesquisa dos vários estabelecimentos, as escolas de doutorado. Contudo, sob o impulso das autoridades ministeriais, a pesquisa e seu financiamento estão passando por uma revisão completa, que consiste em reorganizar as escolas de doutorado, a formação doutoral e as equipes de pesquisa, que devem tornar-se equipes maiores, transcendendo as fronteiras epistemológicas para melhor racionalizar os recursos e impulsionar as investigações. Além desse primeiro modo de financiamento da pesquisa, que conta com recursos públicos nacionais, há também parcerias internacionais, como a que está sendo formada entre universidades senegalesas, portuguesas e brasileiras em busca de formas de financiamento advindas de órgãos internacionais, como a União Europeia. Lá e cá, o que se nota é que a construção de redes internacionais de colaboração torna-se paulatinamente uma condição para a prospecção de recursos e otimização dos resultados das pesquisas históricas.

Diante desse quadro, a historiografia brasileira amplia seu diálogo com a Escola de Dacar. Essa, por sua vez, permanece fiel à sua tradição historiográfica em duas de suas principais preocupações: ampliar, seguindo Boubacar Barry (1988), a grande e bela Senegâmbia até os rios do óleo de palma; interrogar e integrar fontes de língua portuguesa (além de outras línguas europeias) aos principais materiais de construção do conhecimento histórico, como já o fizeram Sékéné Mody Cissoko (1966)Saliou Sarr (1980)Yoro Khary Fall (19911992), e muitos outros. O dossiê “História econômica, política e intelectual da África ocidental: lógicas de intercâmbio” segue esse caminho. A proposta de regionalização da agenda africanista brasileira também resulta de reflexão amadurecida ao longo dos anos e das trocas realizadas em eventos acadêmicos, como as duas jornadas relatadas. Os artigos que os leitores encontrarão indicam, pois, como os estudos africanos têm crescido no Brasil, alcançando reconhecimento e visibilidade nacional e internacional,[1] em fundamental diálogo com historiografias africanas. Intercâmbios entre pesquisadores nacionais e estrangeiros são fundamentais à expansão das perspectivas sobre a História da África, seja em abordagem, metodologias ou debates nos quais se inserem. Atualmente, pesquisas sólidas, focadas na África Ocidental, encontram-se em curso em programas de pós-graduação em História, no Brasil, e indicam a relevância dessa discussão.[2]

A proposta deste dossiê é fomentar a ampliação do campo, trazendo outros problemas, fontes e abordagens. Nutrindo-se do dinamismo do cenário existente, da expertise já em curso na historiografia brasileira dedicada à África Ocidental e agregando colaboradores estrangeiros, apresentamos um conjunto de artigos que lida com o período entre os séculos XV e XIX. O foco está nas conexões, internas e externas, estabelecidas pelas sociedades da África Ocidental, lidas na perspectiva das últimas. Visa ainda ao estímulo a pesquisas em arquivos africanos pouco visitados por historiadores brasileiros, localizados no Senegal, Gâmbia e Guiné-Bissau, além dos bem conhecidos arquivos e documentos europeus. Através desse corpus documental, o dossiê destacará intercâmbios econômicos, políticos e intelectuais dentro do continente africano e desde esse espaço com o exterior. Nossa proposta parte das conquistas teóricas e metodológicas realizadas pela historiografia africanista brasileira, senegalesa e internacional, no que diz respeito ao uso de fontes orais (Henige, 1982Wright, 1991Green, 2012), às pesquisas em arquivos africanos (Nobili, 2016Ceesay, 2018Ngom, 2020) aos métodos de análise de fontes europeias que tratam da África (Jones; Heintze, 1987Horta, 2011) e à busca pela perspectiva africana da História (Sarr, 2016Cooper, 2016).

Dialogando com a bibliografia que aponta a complexidade na História africana, além das dicotomias branco / negro, colonizador / colonizado, estrangeiro / autóctone (Boilley; Thioub, 2004), este dossiê focará na inter-relação entre sociedades sul-saarianas, norte-africanas e europeias, em contextos transitórios, entre os séculos XV e XIX. O número é formado por cinco artigos, escritos por historiadores vinculados a instituições do Brasil, Senegal e Portugal. Trazem temas variados, orientados por diferentes metodologias: 1) justaposição de fontes narrativas europeias, tratados filosóficos africanos e fontes orais para o entendimento da formação de uma cultura política islâmica na Senegâmbia; 2) abordagem historiográfica das diferentes formas de acomodação entre o comércio transsaariano e o trato atlântico, na longa duração; 3) cruzamento entre fontes escritas e orais para estudo das transformações de identidades culturais e dinâmicas de ocupação e reivindicação do espaço; 4) análise de um inquérito produzido no Senegal, em 1844, sob encomenda da administração francesa, acerca dos significados da escravidão, liberdade e sentidos do trabalho; 5) estudo da produção, reprodução e circulação de imagens sobre a conquista europeia na África através do estudo comparado de dois casos oeste-africanos.

Em conjunto, essas pesquisas apontam um panorama sobre a África Ocidental, com destaque para a região conhecida como Grande Senegâmbia, que compreende os territórios dos atuais Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri e alcança o norte da Serra Leoa (Barry, 1988Dias; Horta, 2007), além de uma incursão no atual Benim, em perspectiva comparativa. Nossa proposta é estimular o interesse de pesquisadores brasileiros por esse espaço, no período entre os séculos XV e XIX, marcado por intenso dinamismo. Ademais, buscamos evidenciar ao leitor as possibilidades de pesquisa em arquivos africanos, metodologias de trabalho com tradições orais e análises construídas a partir de textos e imagens produzidos na África e / ou na Europa, por agentes africanos e / ou europeus, ao longo do tempo. As fontes utilizadas e as abordagens recorridas indicam a riqueza do diálogo entre tais tipologias e coleções documentais publicadas ou presentes em arquivos europeus. Entendemos que a valorização desse intercâmbio documental e intelectual é necessária à ampliação e aprofundamento dos estudos africanos no Brasil, como já demonstrado pela Escola de Dacar. Dessa forma, este dossiê contribui para esse processo.

O presente número conta com cinco artigos, que abordam desde estudos de casos a análises inscritas na longa duração. A primeira contribuição é “Um coração de rei: cultura política islâmica como antecedente das revoluções muçulmanas na África Ocidental (Senegâmbia, séculos XVI e XVII)”, de Thiago Henrique Mota. Nesse artigo, o autor argumenta que os jihads que ocuparam a agenda política da África Ocidental, com maior fôlego entre os séculos XVIII e XIX, tiveram raízes mais profundas, que germinaram a partir do estabelecimento de uma cultura política islâmica sediada na África atlântica. Os elementos constitutivos dessa cultura política são uma base filosófica islâmica; sua difusão institucional a amplo número de pessoas por meio de escolas corânicas; a produção da ideia de um passado comum e o estabelecimento de expectativas de futuro fundadas num projeto de moralidade islâmica. Tais elementos teriam se articulado diante da ampliação do tráfico de pessoas através do Atlântico e seus variados impactos nas comunidades africanas. Por um lado, ampliação da violência endêmica, da escravização e das desigualdades sociais com rápido enriquecimento das elites locais envolvidas com o tráfico. Por outro, o fortalecimento das demandas por soluções jurídicas para o problema, que protegessem os muçulmanos da arbitrariedade da escravização. A isso se soma maior afluxo de papel procedente do comércio atlântico, aplicado na produção textual religiosa e jurídica islâmica através da região.

Em seguida, temos “Le commerce transsaharien et ses logiques d’accommodation par rapport au commerce transatlantique entre le XVe et le XIXe siècle”, de Idrissa Ba. Esse artigo pretende uma análise historiográfica. Ele convoca amplamente, de uma perspectiva crítica, trabalhos relacionados a três espaços intimamente ligados pela lógica comercial: o Saara, o Mediterrâneo e o Atlântico. No centro do debate, encontram-se as contribuições de David Robinson e de Vitorino Magalhães Godinho. A partir de Robinson, aborda o conceito de acomodação, redefinindo-o e recontextualizando. Em seguida, o conceito é aplicado para demonstrar como os atores e os beneficiários do comércio transsaariano adaptaram-se à abertura e ao comércio transatlânticos: por superposição, competição, colisão, captura de produtos, etc. Neste processo, o autor elabora uma contraposição à famosa fórmula de Vitorino Magalhães Godinho, relativa à vitória da caravana sobre a caravela.

“‘Le loup dans la bergerie’: narrations et identités des sujets de l’ancien royaume de Kasa en Sénégambie – Hommage à Stephan Bühnen (1950-2015)”, de Cornelia Giesing, é a terceira contribuição. Giesing é uma historiadora dedicada às fontes, como demonstrado por sua tradução e comentários acerca do Ta’rikh Mandinka de Bijini, na Guiné-Bissau (Giesing; Vydrine, 2007). Conforme a autora, o “artigo enfoca as divisões territoriais do país ajaa no interior do reino de Kaasa (séculos XV a XIX) através de narrativas sobre seu ocupação”. Na realidade, é por modéstia que Cornelia assim caracteriza sua contribuição, que explora vários documentos, constituídos principalmente por fontes portuguesas e pesquisas que ela própria conduziu em campo, para nos apresentar diferentes aspectos da história de Kaasa e dos reinos vizinhos, ao longo de cinco séculos. Tudo lhe toca: a estrutura política do espaço, em torno da capital Brikama e outras cidades secundárias; uma intensa mistura étnica e cultural (Mandinka-Sooninkee, Bañun, Joolaa, Balantes); o comércio entre o interior e a costa dominada, é verdade, pelo tráfico de pessoas; religiões locais; a exploração da terra e seus recursos. Em filigrana, a autora mostra que todas essas lógicas e dinâmicas foram feitas em detrimento dos povos Bañun que, de mestres e dominantes, tornam-se vítimas, minoritários e em vias de desaparecer. Esse processo macabro para os Bañun é reproduzido por uma frase bem escolhida, que Cornelia toma de tradições orais através da narrativa do comandante de um navio francês. Supostamente qualificando a atitude dos Balantas em relação aos Bañun, tem a seguinte redação: “um Balanta em uma de nossas aldeias é uma raposa no galinheiro”[3].

“‘Não há cativo que não queira ser livre!’: significados da escravidão e da liberdade entre marinheiros do Senegal, século XIX”, de Juliana Barreto Farias, é o quarto artigo. Aqui, o objetivo é compreender os significados da escravidão e da liberdade para os trabalhadores negros que atuavam em embarcações, nos rios e mares do Senegal. O principal aporte documental utilizado é um inquérito realizado em Saint Louis e Gorée, em 1844, no qual homens e mulheres escravizados, entre outros sujeitos, puderam se expressar e dizer o que pensavam sobre o cativeiro e sobre a liberdade. Trata-se de um documento sui generis, pouco explorado pela historiografia, ao qual se somam outras fontes, procedentes de arquivos senegaleses, franceses e publicações. Através da análise dessa seleta documentação, a autora aponta complexidades num sistema escravista vivido entre a ilha de Saint Louis e o continente africano, marcado pela mobilidade dos sujeitos escravizados, pelas relações de trabalho no contexto comercial da goma arábica e pelas hierarquias que estruturavam sociedades mestiças nos primórdios da colonização europeia na África. O sentido da liberdade construído por sujeitos negros – escravos ou livres – passava por uma ideologia marcada pela centralidade do trabalho, tema que era a ocupação central das autoridades coloniais naquela região.

O artigo que encerra o dossiê é um estudo comparado da produção, reprodução e usos de imagens, intitulado “Imagens itinerantes de potentados banidos da África Ocidental (1894-1899)”, de autoria de Silvio Marcus de Souza Correa. O texto é cronologicamente definido pelas capturas de potentados africanos diante da consolidação do colonialismo francês na África Ocidental. Em 1894, Béhanzin, oba do Daomé, foi deportado para a Martinica, após sua rendição diante das tropas francesas; em 1899 foi a vez de Samori Touré, almamy do Futa Jalom, ser deportado para o Gabão, após sua captura no ano anterior. Diante desses eventos, interessa ao autor refletir sobre as imagens desses governantes produzidas após sua captura, o trânsito delas, suas recepções e resignificações ao longo do tempo. Correa argumenta que tais representações fizeram parte da “ocupação imagética” da África Ocidental, termo que faz referência à fragilidade do controle exercido pelas metrópoles sobre os territórios africanos. Por outro lado, diferentes formas de apropriação das mesmas imagens, ao longo do tempo, transformaram-lhes os significados: de potentados africanos capturados como índice do poderio francês, foram lidas no período pós-colonial como ícones da resistência africana frente ao colonialismo. Nos dois casos, trata-se de representações pouco matizadas diante do complexo jogo de poder envolvido na captura desses sujeitos e na relação mantidas por eles com a França, antes e depois de seus exílios.

Portanto, esses textos se complementam, restauram diferentes dinâmicas e lógicas (comerciais, políticas, religiosas, etc.) que ocorreram na África Ocidental, esse vasto espaço constantemente redescoberto à luz das fontes e de sua exploração, entre os séculos XV e XIX. Aqui, as lógicas de intercâmbio são várias. Por um lado, remetem à natureza das trocas, compartilhamentos, acomodações e transformações ocorridos no espaço oeste-africano sob escrutínio. Por outro, dizem respeito aos diálogos e partilhas entre historiadores de distintos pontos da bacia Atlântica, unidos pelo interesse comum na história da África Ocidental. A continuidade desse tipo de intercâmbio depende de investimentos dedicados a pesquisas, por órgãos públicos e privados, nacionais e estrangeiros, e do fortalecimento das relações intelectuais trans-fronteiriças. Tais recursos permitiram a realização deste dossiê, que busca contribuir para nosso maior conhecimento da história africana e suas conexões com outras partes do mundo. Assim, ajuda-nos a compreender o passado da humanidade e a refletir sobre as escolhas feitas e os limites impostos a homens e mulheres, que ecoam na caracterização das sociedades do nosso tempo. Como as lógicas de intercâmbio através do tempo e do espaço bem o demonstram, ninguém é uma ilha, nenhum lugar existe fora do tempo, fora de suas conexões com o mundo. A história e sua construção estão, pois, em andamento, e a elaboração deste dossiê em tempo recorde, por historiadores de várias origens, é um exemplo disso e abre caminho para futuras colaborações, que esperamos que sejam frutíferas.

Notas

  1. Green (2019)publicou um artigo na revista Atlantic Studies discutindo o contributo de vários trabalhos realizados no Brasil à historiografia internacional, concernente aos estudos africanos.
  2. Para ficar em um exemplo, destacamos os resultados já publicados de Malacco (2017).
  3. A expressão original utilizada pela autora, loup dans la bergerie, corresponde a “lobo no curral”. Contudo, trata-se de expressão empregada por um europeu para expressar seu entendimento de tradições orais oeste-africanas, uma vez que o lobo não é uma espécie nativa do Kasa. Diante disso, optamos por uma frase mais familiar aos leitores de língua portuguesa, mantendo o entendimento central da metáfora utilizada.

Referências

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MOTA, Thiago Henrique; BA, Idrissa. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.36, n.71, mai. / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]

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História Política | Revista Historiar | 2018

A política tem sido um dos temas mais emergentes do nosso tempo. Talvez o assunto nunca tenha sido tratado com tanto desprezo, banalidade, descrença. Mas se “política é a presença enérgica de cada pessoa na vida comunitária,”[1] “o que política quer dizer, não é neutro ou indiferente. Por isso é objeto de luta.”[2] O papel do cientista nesse campo de disputas é jogar luz sobre os mecanismos de dominação política, descontruindo discursos que ganham materialidade na imprensa, na memória e na cultura política.

Os partidos políticos são os mais atingidos, já que de acordo com René Rémond, se existe um tema essencialmente político, é o dos partidos. Para ele, a relação com o político está na sua essência, cuja formulação pede de maneira quase mecânica, o epíteto político. Ele ressalta que os partidos são políticos porque têm como finalidade, e seus membros como motivação, chegar ao poder. O mesmo não se pode dizer do fenômeno eleitoral, que apesar de se identificar com a política, tem outras aplicações além das políticas, diz Rémond.[3] Leia Mais

História Política: problemas e estudos / Anos 90 / 2016

A história política, vinculada às relações de poder político-institucionais que permeiam as sociedades e o Estado em suas múltiplas dimensões, renovou-se muito nas últimas décadas, ganhando cada vez mais impulso e importância. Neste dossiê, a revista Anos 90 abriu-se para contribuições concernentes a recortes temáticos que pudessem se enquadrar nesta área de estudos históricos, tanto para os problemas teóricos e metodológicos enfrentados pelos pesquisadores quanto para os estudos de objetos característicos desse campo de análise. Recebemos diversas contribuições de várias partes do país e do exterior, pelas quais agradecemos aos pesquisadores que se dispuseram a apresentar seus originais a este dossiê. Depois das avaliações realizadas, restaram os nove artigos que se seguem.

Os artigos estão apresentados em uma ordem lógica e cronológica ao mesmo tempo. Assim, o dossiê inicia com a contribuição de Maria Helena Capelato. Em História do Brasil e revisões historiográficas, a autora busca refletir sobre questões teóricas e metodológicas a respeito da escrita da história de modo geral e, em particular, sobre os seus usos políticos. Desse modo, o trabalho toma uma dimensão ético-política que traz importantes contribuições para o debate tão atual acerca dos lugares de produção de história, seus usos sociopolíticos e o papel dos profissionais e não profissionais nestas tarefas científicas e / ou culturais.

O segundo texto, das professoras portuguesas Isabel Maria Freitas Valente e Maria João Guia, trata da premente e espinhosa questão das políticas de imigração na União Europeia, centrado no exame da legislação respectiva. Ao mesmo tempo em que procura historiar as contribuições legislativas mais gerais a respeito do tema, ao final, as historiadoras concentram-se na temática propriamente portuguesa.

Luiz Alberto Grijó, por sua vez, aborda as empresas de meios de comunicação brasileiras, traçando um panorama amplo, desde o período pré-64 até os dias atuais. O artigo explora a transformação paulatina dos meios. Desde a situação anterior, na qual eram espécies de apêndices da luta política mais ampla, até o momento atual, em qum sequestraram a democracia em nome de seus próprios valores apresentando-se como protagonistas centrais no jogo político-partidário, inclusive agindo para a deposição da presidenta eleita em 2014.

Esteban Javier Campos, em seu artigo, propõe uma história comparada sobre as práticas e concepções políticas da Ação Popular e dos Montoneros tomando suas semelhanças e suas diferenças. O autor parte da análise desses movimentos a partir de suas origens católicas, suas aproximações com o socialismo e seus redirecionamentos entre linhas maoísta e peronista, em meio a reflexões sobre processos políticos em escala nacional.

Por sua vez, Larissa Rosa Correa e Paulo Roberto Ribeiro Fontes dedicam-se, através da análise da produção historiográfica mais recente sobre os trabalhadores e os movimentos sindicais brasileiros na época da Ditadura Militar (1964-1985), a observar “um certo apagamento” da história e da presença desses extratos sociais e suas organizações de classe na referida literatura. Visam, com isso, a lançar luzes em aspectos e lacunas ainda existentes a propósito do regime instaurado em 1964.

Adriane Vidal Costa procura na “prática epistolar de Júlio Cortazár”, em seu período mais frutífero, os anos de 1960 e 1970, instrumentos de compreensão para a formação de redes de sociabilidades intelectuais; de suas ideias políticas como um escritor engajado, ao mesmo tempo em que visa a recuperar o ambiente cultural de discussão literária e as funções sociais do intelectual em meio à defesa que Cortazár promovia do socialismo e sua condenação das ditaduras militares latino-americanas do momento.

O partido do Rio Grande: redes de relações, mediação e revolução de 1930, de Cássia Daiane Macedo da Silveira, discute o papel e a participação dos chamados intelectuais nos acontecimentos que envolveram a Revolução de 1930, especialmente nas articulações que acabaram levando a ela. Cássia centra-se na questão fundamental destes homens de letras como mediadores culturais e sociais e nos efeitos políticos que isso possibilitava, abordando os casos de dois deles: o carioca Rodrigo Otávio Filho e o gaúcho Felipe d’Oliveira.

Carla Brandalise, em seu artigo, remete-se às políticas internacionais da Itália sob o fascismo voltadas para a América Latina na década de 1920. Com efeito, assiste-se nesses anos a um recrudescimento dos interesses italianos sobre essa região, a partir do que se estabelece estratégias, pacíficas, de maior inserção econômicas e político-culturais. Para tanto, joga-se com a questão da latinidade intrínseca ao continente e com a perspectiva de que a Itália constitui a verdadeira líder dos povos latinos, dado que se outorga como lócus original e atemporal da romanidade. Suas ambições, portanto, vão para além da maior interação com sua comunidade emigrada.

Rodrigo da Rosa Bordignon, que encerra o dossiê por ser o que aborda o momento cronologicamente mais recuado, analisa as narrativas dos homens de letras, de comentadores, políticos e pensadores do Brasil na virada do século XIX para o XX. Enfoca especificamente a clivagem entre as posições “monarquistas” e “republicanas” a partir da perspectiva não de reificá-las, mas de desvendar os mecanismos que levaram a estas tomadas de posição, os quais ajudam a revelar qual ou quais concepções de política estavam em jogo e sua relação com os critérios de classificação e ordenação sociais e ideológicos e seus modos de legitimação.

Carla Brandalise.

Luiz Alberto Grijó.


BRANDALISE, Carla; GRIJÓ, Luiz Alberto. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 43, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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História Política: temas, fontes e problemas | Revista Latino-Americana de História | 2015

Durante o século XIX, o campo da história vivenciou dois processos intimamente relacionados: ao mesmo tempo em que a disciplina arrogava a si o estatuto científico, a predominância do político contemplava o eixo central desta cientificidade, ao concentrar seu método na narrativa dos fatos políticos amparada em documentos oficiais. Eclipsada pela história econômica e social, especialmente a partir da Escola dos Annales, a história política passou por uma renovação nas últimas décadas do século XX, rejeitando o caráter elitista, factual, anedótica e individualista (RÉMOND, 1996, p. 15-18; CAPELATO, 1996). Atualmente, o chamado “retorno” da história política não é mais uma novidade. Diversos balanços historiográficos dão conta dos impactos da renovação da história política e da história cultural nos estudos sobre a política brasileira no século XX (FERREIRA, 2001; GOMES, 1996, 2005 e 2009; CAPELATO, 2007; D’ALESSIO, 2008; SOIHET, 2003). Leia Mais

História Política: entre as práticas e as representações / Historiae / 2011

Em seu segundo número do segundo volume, a Historiae dá continuidade à publicação de dossiês temáticos, voltando-se tal edição à abordagem da História Política. Tantas vezes negligenciada, desprestigiada ou tratada com significativo preconceito, tal matriz histórica viria a progressivamente recuperar seu status de prática reconhecida no campo do fazer histórico. Esse menosprezo deveu-se essencialmente à confusão estabelecida entre a História Política e a história dita factual, à deliberada intenção de sonegar os resultados provenientes das análises realizadas pelo prisma político e as amplas implicações daí advindas e / ou tendo em vista as dificuldades em enquadrar as interpretações históricas de natureza política em modelos preestabelecidos, uma vez que, volátil, tal enfoque nem sempre se molda a explicações de caráter apriorístico.

Vencidos os desprezos advindos das visões reducionistas e / ou dos modismos historiográficos, renovada em sua essência teórico-metodológica e em contato íntimo e intenso com os mais variados segmentos do conhecimento humano, a História Política vem perpassando uma etapa de notória aceitação no seio da produção do saber histórico. Nesse contexto, a Historiae promove a publicação do Dossiê “História Política: entre as práticas e as representações” trazendo abordagens diversificadas envolvendo análises centradas nas relações entre história e política.

Dentre esses temas são apresentadas interfaces entre a política e a interpretação histórica no que tange à historiografia, à imprensa, à numismática, à memória, ao cotidiano, ao pensamento político, à guerra, às estruturas governamentais, ao jacobinismo e à justiça. Os trabalhos independentes em relação ao fulcro desta edição também têm seu espaço, com abordagem de questões em torno do feminismo, da teoria, da escravidão e as relações entre academia e industrialização.

Assim a Historiae – Revista de História da Universidade Federal do Rio Grande permanece em seu percurso, inaugurado ainda ao final dos anos setenta do século vinte, de divulgar a produção científica, acadêmica e cultural oriunda da pesquisa de natureza histórica.

Francisco das Neves Alves – Presidente do Corpo Editorial.


ALVES, Francisco das Neves. Apresentação. Historiae, Rio Grande- RS, v. 2, n. 2, 2011. Acessar publicação original [DR]

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História Política e Política na História / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2011

Dando continuidade em mais um ano de trabalho, a revista História em Reflexão (REHR) traz novos debates acadêmicos para o campo da História e Historiografia. Com muita satisfação o conselho editorial e consultivo apresenta, a você leitor e pesquisador da área, a IX edição da revista com seu dossiê “História Política e Política na História”. Referente ao período de janeiro-junho de 2011, a mais nova edição vem oferecer um panorama sobre a pesquisa histórica no Brasil, sobretudo em Mato Grosso do Sul e região, tendo como principal foco a aproximação entre academia e sociedade.

A fim de incentivar a produção acadêmica sobre a História em diversos sentidos, o objetivo da revista é oferecer subsídios básicos para futuras pesquisas na área, bem como oportunizar aos profissionais da História o acesso a debates acadêmicos atuais. Como um instrumento importante de divulgação do saber científico, a revista evidencia produções relevantes que podem servir de complementação aos temas trabalhados pelos docentes, tanto no que diz respeito ao ensino básico quanto à graduação.

A temática do dossiê dessa edição, foi escolhida de modo que respeitasse a discussão sobre a transformação na maneira de se pensar a política na História, em conseqüência do processo de reorientação metodológica de escrita. O dossiê História Política e Política na História, têm como proposta colaborar com os estudos sobre a postura teórica e metodológica que envolve as pesquisas a respeito do tema, bem como o intuito de oferecer novas e surpreendentes narrativas históricas, frutos de pesquisas realizadas em âmbito da graduação e pós-graduação. São Histórias que relatam os modos de vida dos sujeitos, em uma incessante busca pela sobrevivência que manifestam suas razões: social, cultural e política. Marcam um terreno de dissonâncias e harmonias, em que os sujeitos são levados a buscarem diversas formas de adaptações e resistências, nem sempre pacíficas, para a convivência social.

Uma série de desdobramentos – sociais, políticos, filosóficos e culturais –, permitiu repensar a escrita da História. Uma dinâmica diferenciada em seu processo de produção, fez brotar novos questionamentos para sua composição. Desde a segunda década do século XX, a preocupação com a escrita da História marcou época no cenário da produção do conhecimento histórico. Nesse movimento, segundo Peter Burke, se firmou uma historiografia comprometida com o combate aos ídolos da História, qual seja: o ídolo político, individual e cronológico. Michelet e Burckhardt, antes da atuação da escola dos annales, criticavam o historicismo alemão de Ranke, fornecendo, em certa medida, a base para a fundação da corrente historiográfica dos annales.

A crítica a História Política, direcionada por Marc Bloch e outros estudiosos de sua época, desenvolveu, portanto, uma postura diferenciada diante da análise do passado. Vale dizer que o empenho desses intelectuais, na luta por uma História problema, desconsiderava a forma como foi conduzida a produção do conhecimento histórico, que entendia a sociedade a partir dos grandes eventos. Os personagens que ganharam vulto na História, eram tidos como figuras representativas de uma complexa teia de relações sociais. Deixada de lado, a camada considerada inferior da sociedade, homens e mulheres comuns, na grande maioria dos estudos históricos de até então, não faziam parte do movimento social. As grandes batalhas, os grandes feitos, eram apontados como parte da supremacia intelectual dos dirigentes do poder, criando assim uma espécie de representação benéfica do sistema política de cada governante. Dessa forma, a História Política se estabelecia com primazia na análise historiográfica, a serviço da criação dos Estados Nacionais a partir do Século XVIII.

Assim, a História era vista como ciência que analisava os processos políticos de uma nação, reino, ou mesmo de uma determinada região. Na ousada frase vitoriana de Sir Jhon Seeley, catedrático de História em Cambridge, “História é a política passada: política é a História presente”. Isso significava para o historiador contar a história apenas das vestes dos reis e não dos camponeses, tão pouco da participação das pessoas comuns em processos históricos, que foram palco de profundas transformações na sociedade ocidental.

Nessa medida, a crítica estabelecida a partir do início do século XX, destacou a insuficiência de se pensar a História pelo prisma positivista. Foi esse o gtande questionamento realizado pelos historiadores desse movimento intelectual, constatando os problemas de olhar para a história da humanidade dessa forma. Postura adotada e sistematizada a partir de 1929 com a fundação da revista dos annales.

O retorno à análise da História Política – expressão cunhada a partir das décadas finais do século XX –, pode ser entendido como a antítese do modo como a História foi estabelecida antes da crítica levantada pela escola dos annales. Com divulgada expressão, mais ou menos, nas décadas de 1950 e 1960, a partir de alguns estudos, principalmente, dinamizados pela new left review, a sociedade presenciou uma nova forma de se explicar as relações sociais e políticas na história da humanidade. A revista apresentou um entendimento sobre o ser humano em sua complexidade, sujeito dotado de consciência e cultura em seu processo político de lutas sociais. Thompson e Hobsbawm, tiveram grande importância na divulgação dos ideais da revista que propôs, acima de tudo, entender o marxismo de outra maneira, na tentativa de não cair em uma análise estrutural da sociedade. Iniciava-se em meados do século XX, os pressupostos fundamentais para propor uma análise sobre a função política nas relações sociais.

Já nas décadas de 1970 e 1980, se apelava para uma História vista de baixo, preocupada com setores da sociedade deixados de lado na análise historiográfica. A história vista de baixo, em desuso hoje em dia, ganhou fôlego como resposta as imposições historiográficas estruturais e como um meio de mostrar a importância das pessoas comuns na História. Nesse sentido, entender a História política tendo como ponto de partida a história vista de baixo, significava analisar os mecanismos de produção das lutas político-sociais.

Embora como filha do seu tempo, a história vista de baixo acabou oferecendo uma ferramenta de análise importante para História Política, qual seja: entender a organização das lutas das classes pobres na história. Revelou pesquisas voltadas para um universo fora da representação da classe dominante. No entanto, a produção das idéias políticas da camada dominante passaram a ser vistas como parte integrante do emaranhado que compõem os processos históricos desse campo, e não como primordial para compreender as relações humanas e processos decisórios. A História Política é entendida, portanto, como expressão social de determinados grupos e não apenas em sentido político partidário, ou mesmo no plano da atuação do Estado nas vidas dos sujeitos. Processos sociais marcam a atuação de pessoas comuns na história, e a política ganha característica de organização de: luta, resistência, avanço e retirada. Enfim, a seguir seguem os trabalhos que compões a IX edição da Revista Eletrônica História em Reflexão.

O artigo que inicia o dossiê Integralismo: o fascismo brasileiro em Santa Catarina produzido pelo Dr. João Henrique Zanelatto, é analisado o contexto sócio-político de instalação do Integralismo em Santa Catarina, a sua organização nos municípios catarinenses, a constituição dos núcleos e sub-núcleos. Assim, a partir da expansão do fascismo brasileiro no Estado catarinense o autor analisa a sua influência em determinado espaço levando em consideração a atuação da imprensa e da Ação Integralista Brasileira (AIB).

O texto de Ludimila Gomides Freitas, Jogos Políticos por índio e mercês: as negociações da Câmara Municipal de São Paulo no século XVII, é tratado as relações dos paulistas camaristas e suas relações com diversas autoridades da colônia portuguesa onde hoje temos o território brasileiro. Por meio dessas relações os integrantes da Câmara paulistas puderam escravizar indígenas e receber mercês régias. A autora menciona que a Câmarara Municipal de São Paulo foi utilizada como instrumento político a fim de garantir o regime compulsório de trabalho. Outro fator citado no texto são as instabilidades políticas, sobretudo no nordeste, nas quais os paulistas foram requisitados para auxiliar a elite do nordeste a fim de auxiliar nos confrontos locais, fazendo com que alguns de seus interesses fossem atendidos.

O mestrando Bruno Silva de Souza traz para o dossiê da REHR o texto: A fé e a razão: antimaquiavelismo e Buena Razón de Estado no pensamento político espanhol do século XVII. Em seu artigo o autor relaciona dois campos em seu objeto de estudo: o religioso e o político, a fim de enriquecer a sua análise. Souza traz uma alternativa oposta do pensamento de Maquiavel, a qual questiona a teoria da secularização. A fim de discutir a questão, coloca-se em evidência o papel estruturante desempenhado pela fé católica no pensamento político espanhol do século XVII, analisando o ponto de vista de um militar que serviu a corte de Felipe IV que defendia a razão submissa do Estado a fé católica.

Já o artigo As reformas políticas e econômicas neoliberais no Brasil nas décadas de 1980 e 1990 elaborado por Fábio Luciano Oliveira Costa, mestrando em Educação, trata das reformas políticas neoliberais desde o final do regime militar até os anos de 1990. Na sua análise, o autor inicia tratando da preparação do regime militar para abarcar tais reformas a fim de ter a legitimação da população brasileira. A seguir o autor discute as reformas no contexto da década de 1990, que tiveram como atores o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), e amparo dos acordos firmados do Consenso de Washington (1989). Em último lugar o autor vem argumentar a influência do neoliberalismo como forma de imperialismo exercida pelos países desenvolvidos, os quais, conforme o autor, são os únicos benefeciados das reformas existentes.

O trabalho de Leandro Araújo Crestani intitulado O surgimento do inimigo interno: Ditadura Militar no Brasil (1964 a 1985) traz a público outra produção que colabora com o dossiê desse semestre. Nesse artigo, Cristani vem tratar dos aparelhos repressivos da ditadura militar como a Doutrina de Segurança Nacional e a o Serviço Nacional de Informações, criados a fim de garantir a denominada “Segurança Interna”. No seu trabalho o autor buscou investigar as origens do golpe militar por meio de um estudo da Arquidiocese de São Paulo, buscando através de fontes e bibliografias o nascimento do poder coercitivo dos militares envolvidos nas teias do poder administrativo federal.

Em Uma visão da Revolução Cubana diante do ensino brasileiro de Raymond Willians o autor Caio Dias de Brito vem analisar quatro livros didáticos e sua forma pedagógico-ideológica da apresentação do conteúdo e a visão do autor do trabalho. A fim de dar maior colaboração para a discussão, Brito traz três conceitos do sociólogo galês Raymond Williams (Ideologia, Hegemonia e Tradição Seletiva). Autores como Mario Schmidt, Elza Nadai, Joana Neves, Carlos Guilherme Mota, Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo, são colocados no cenário deste trabalho.

Everton Demetrio publica nessa edição o artigo História Política e ficcção: Veredas de tradição e modernidade no sertão rosiano. Nesse trabalho o autor tem por objetivo analisar um episódio do livro Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, especificamente, o caso do julgamento de Zé Bebelo, tratando-o como alegoria de momento singular da história republicana nacional. Em seu estudo Demetrio vem refletir através da literatura Grande Sertão: Veredas a confrontação entre o urbano e o rural e aspectos ligados a convulsões políticos institucionais presentes na passagem do regime imperial para o republicano. De todo modo, o autor traz em cena a delicada análise que se utiliza da literatura para se compreender aspectos do processo histórico.

O texto de Rosangela Baida e de Cándida Graciela Arguello Chamorro iniciam a sessão de artigos livros da IX edição da REHR. Esse trabalho é resultante de um estudo bibliográfico e de análise de fontes que discorrem a respeito de doenças que afetaram os povos indígenas da costa do Brasil, nos primeiros séculos da colonização. Em primeiro lugar as autoras descrevem as doenças as quais muitas eram epidêmicas. A seguir, foi considerado as etiologias das enfermidades ocidentais. A partir de alguns resultados, Baida e Chamorro verificaram que juntamente entendimentos científicos a respeito das doenças, esteve presente a compreensão mítico-religiosa entre os missionários e outros agentes civilizadores. De maneira geral, as autoras concluem que os dados obtidos na pesquisa serão de muito proveito para o estudo das doenças nos povos indígenas guarani falantes dos séculos XVI e XVII.

Kalhil Gibran Melo de Lucena e Maria Ângela de Faria Grillo são os autores de O uso de uma linguagem popular nas aulas de História: as representações da República Velha nos folhetos de Cordel. Nessa produção, os Lucena e Grillo compreendem a história da República Velha por meio da literatura de cordel possibilitando um olhar diferente do período. Para além disso, os autores propõem a utilização da literatura de cordel como um meio didático-pedagógico a ser empregado na sala de aula. Através dessa ferramenta, é proposto instigar os debates de modo reflexivo, por meio da musicabilidade das rimas e versos desse tipo de literatura, fazendo com que o aprendizado seja visto de maneira prazerosa aos olhos dos educandos.

A seguir está o trabalho do Mestre Ademar Alves da Silva, intitulado Os Batistas no contexto do protestantismo brasileiro discorre a respeito da implantação da Igreja Batista no Brasil. Para tanto o autor faz uma reflexão a respeito das Igrejas Protestantes no período colonial e após a independência. Ao longo do texto o autor disserta a respeito dos aspectos doutrinários da Igreja Batista e, ao concluir sua discussão, menciona que, em geral, os aspectos doutrinários dificilmente se modificam em seus conceitos, havendo também aquelas que são filiadas a CNBB, as quais não seguem os mesmos moldes.

Gelise Cristine Ponce Martins é autora de As relações cotidianas de uma família de cafeicultores nas memórias de Braz Ponce Martins (1897-1943). O trabalho trata da história de vida de Braz Ponce Martins, o qual foi filho de imigrantes espanhóis e cafeicultor, que teve sua vida relatada na autobiografia Memorial de um século de cafeicultores. Para facilitar a metodologia de seu trabalho a autora delecionou a história de sua origem e de sua infância, levando em consideração o contexto histórico, o qual remonta à imigração espanhola para São Paulo e à colonização do norte do Paraná. Percebe-se que Gelise C. P. Martins levou em consideração aspectos importantes para análise de uma análise biográfica: entender uma memória individual que se apóia na memória coletiva, tratando das narrativas históricas de cafeicultores da primeira metade do século XX.

Em Análise do nível de desenvolvimento socioeconômico do Estado de Mato Grosso do Sul o graduado Ricardo Fernandes Santos e a Professora Doutora Madalena Maria Schlindwein traz um estudo econômico que compara o desenvolvimento sul-mato-grossense com a média da região Centro-Oeste. Para facilitar a análise os autores utilizaram dados como: índice de natalidade, de mortalidade bruta e infantil, de Desenvolvimento Humano, taxa de fecundidade, de alfabetização, PIB (Produto Interno Bruto) per capita, entre outros. Alguns apontamentos de Santos e Schlindwein indicam que Mato Grosso do Sul têm o segundo melhor Índice de Desenvolvimento Humano da região. Porém, outros resultados referentes a indicadores econômicos citados no artigo apontam alguns aspectos não tão favoráveis.

A mestranda Ana Paula Menezes publica o artigo Colônia Agrícola Nacional de Dourados-História Memória: considerações acerca da construção de uma memória oficial sobre a CAND na região da Grande Dourados. O texto faz referência da implantação da CAND, um dos projetos do Estado Novo fruto do projeto político Marcha para Oeste. Conforme a autora a CAND teve grande repercussão devido ao desenvolvimento que possibilitou à região, o que lhe garantiu destaque na memória coletiva da mesma. Outro aspecto tratado no texto é a construção de uma memória oficial em torno da colônia que colaborou, de certa forma, para encobrir o mais simples e genérico significado da CAND na região de Dourados, atual Estado de Mato Grosso do Sul.

O próximo artigo livre Leitores eu vou contar, um caso impressionante, uma cena muito triste, e um crime horripilante: crimes e representações nos folhetos de cordel do Pará na primeira metade do século XX, de Geraldo Magella de Menezes Neto, analisa através de folhetos de cordel os diversos olhares e significados não só a respeito de crimes, mas também dos atores envolvidos. Conforme o autor desse trabalho o relato dos em poemas de cordel era comum e bem recebido em Belém do Pará na primeira metade do século XX. De acordo com Menezes, através de peculiar literatura, os poetas atribuíram valores aos criminosos e as vítimas, fatores discutidos ao longo do texto.

O graduando em economia Rafael Venturini Trindade nos traz o artigo A modernidade brasileira segundo Buarque de Holanda, o qual discute a evolução da sociedade nacional sob o olhar de Sérgio e Chico Buarque de Holanda. Para tanto, Trindade utilizou duas obras: Raízes do Brasil (1936) e Leite Derramado (2009). De acordo com o autor, principalmente em relação a Sérgio Buarque de Holanda, o trabalhos de alguns autores tratam as especificidades e angústias que comportam seu tempo.

O artigo da mestranda Rachel Gomes de Lima Contribuição a História da Freguesia de Inhaúma: Elites, Usos E Formas de Apropriação das Terras, Relações Sociais e Econômicas encerra a sessão de artigos livres dessa edição. Nesse trabalho Lima analisa as relações sociais e econômicas nas elites agrárias da freguesia rural de São Tiago de Inhaúma durante o século XIX. A partir das influências econômicas do período, a autora trata de fatores ligados a propriedades e uso da terra. O contexto histórico do Rio de Janeiro entre o final do século XVIII e primeira metade do XIX é levado em consideração para inserir São Tiago de Inhaúma no estudo.

A seguir a REHR apresenta três resenhas, sendo a primeira do livro O historiador e seu tempo: encontros com a história organizado por Tânia Regina de Luca, Antonio Celso Ferreira e Hollien Gonçalves Bezerra, a qual foi produzida por Diogo da Silva Roriz. A segunda O Crime do Restaurante Chinês – Carnaval, Futebol e Justiça na São Paulo dos anos de 1930 de Boris Fausto, resenhada por Daniel Rincón Caíres. E a terceira de Rute Guimarães Torres, A natureza dos rios: história, memória e territórios. Organizada por Gilmar Arruda.

Para finalizar essa edição trouxemos uma expressiva entrevista com o Padre Bartolomeu Meliá, expoente colaborador da Antropologia e História Indígena. A intenção do Conselho Editorial da revista é que a publicação das assertivas de Meliá, tragam novas reflexões para as pesquisas que integram o emaranhado histórico e antropológico indígena.

O Conselho Consultivo e Editorial lança mão de mais uma edição preparada com muito empenho pelo grupo que a compõe. Tenham uma boa leitura!

Cássio Knapp

Fernanda Chaves de Andrade

Diógenes Egidio Cariaga

Juliano Alves da Silva

(Editores)

Dourados-MS, Inverno de 2011.


ANDRADE, Fernanda Chaves de; CARIAGA, Diógenes Egidio; KNAPP, Cássio; SILVA, Juliano Alves da. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v.5, n.9, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

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