História pública e história do tempo presente | Rogério Rosa Rodrigues

A segunda década do século XXI marcou a consolidação do movimento da História Pública no Brasil. Apesar de sua emergência e seu estabelecimento através da formação da Rede Brasileira de História Pública, de publicações especializadas e eventos internacionais e nacionais, a História Pública ainda permanece permeada de dúvidas, críticas e estranhamentos por parte da comunidade de historiadores(as). É possível considerar que a maioria destas questões estão associadas à imagem de “novidade” em torno de uma prática que, para alguns, remonta a projetos anteriores que já existiam no âmbito universitário. Publicações como Que História Pública Queremos (2018) e História Pública no Brasil: Sentidos e Itinerários (2016) procuraram responder a algumas destas problemáticas que emergiram após a realização do curso de Introdução a História Pública na USP (2011). Em meio a tais esforços, verificou-se a expansão do interesse da comunidade por esta discussão em paralelo as possíveis críticas que emergiam. Cursos de graduação e pós-graduação foram revisados e/ou criados, projetos em diferentes níveis passaram a pensar a dimensão pública de suas produções e, acima de tudo, historiadoras(es) repensaram seu próprio ofício.

O que se percebe é um processo de construção de um movimento, mais que a fundação de um campo da História Pública (Santhiago 2016), que tem defendido a centralidade do público na prática historiográfica. Seja como uma história com, para, pelo ou através dos públicos, a História Pública tem revisitado as regras estruturais do campo disciplinar. Atenta a este processo, a editora Letra e Voz publica, desde 2019, a coleção “História pública e…” que mapeia as relações entre a prática da história pública na interface com outros campos, como a divulgação histórica (2019) e o ensino de história (2021). Em sua proposta, os livros da coleção reúnem artigos que possibilitam a reflexão epistêmica da História Pública e entrevistas com historiadores nacionais e internacionais de referência.

Lançada em 2021, a coletânea História Pública e História do Tempo Presente, editada por Rogério Rosa Rodrigues e Viviane Trindade Borges, mapeia reflexões brasileiras, italianas, chilenas, colombianas e mexicanas que, através da História Pública, atentam para as margens de tempos passados que não passam, “do presente que ora parece estacionar, ora parece escapar rumo ao futuro incerto, ora, por fim, se vê invadido por correntezas provindas de águas remotas estacionadas em outros afluentes.” (Rodrigues e Borges 2021, 8). Os artigos articulam relatos de experiência (pesquisa ou prática) no campo da História Pública com reflexões teórico-metodológicas na interface com a História do Tempo Presente, visando refletir sobre a relação existente entre prática e teoria. A segunda seção da obra conta com entrevistas de especialistas em História Pública que, ao longo de sua carreira, se inseriram na História do Tempo Presente.

O primeiro capítulo, A memorialização da morte do marechal Castelo Branco, de Caroline Silveira Bauer, analisa a construção da memória post mortem de Castelo Branco como elaboração performática. Afirmando que parte das construções das memórias da ditadura civil-militar brasileira ainda existem como forma de homenagens ao governo ditatorial, Bauer demonstra a necessidade de revisitação de um passado-presente latente pela intervenção pública que vise contestar um discurso oficial. O ápice da estudo está na análise do Museu Histórico Jacinto de Sousa, em especial no “Quarto de Castelo Branco”, no qual percebe-se uma série de atos performativos que envolvem desde a escolha do mobiliário até a disposição do espaço. Bauer afirma que a construção cénica da memória foi permeada por disputas e discordâncias locais até sua efetivação na década de 1980, o que se estendeu não somente para o Museu, mas para demais espaços, convertidos em lugares de memórias sobre o ditador que “através da intervenção de sujeitos que pretendiam com isso recuperar e transmitir certa narrativa sobre o passado” (Bauer 2021, 33).

Viviane Trindade Borges, autora do capítulo Para Além da beleza e do terror: notas sobre os desafios de tornar públicas trajetórias infames, discute os potenciais do uso de documentos ligados a instituições marginais em fomentar o debate público sobre temas sensíveis. A partir da organização de três exposições em instituições de isolamento, integrantes do Projeto Arquivos Marginais, Borges reflete sobre a potencialidade de pensar a História Pública por meio da escuta e interação entre públicos e pesquisadores(as) em experiências com instituições que fogem ao perfil mais conhecido da operação historiográfica: sendo estes um hospital psiquiátrico, uma penitenciária e um leprosário. Sua autorreflexão, promove a discussão sobre os desafios de interação que se estabelece entre públicos diferentes e heterogêneos (pacientes, presos, administração da instituição), destacando a necessidade de se posicionar, enfrentar questões que escapam à formação básica das graduações em história e, principalmente, repensar constantemente o ofício e o papel dos(as) historiadores(as) na sociedade.

No terceiro capítulo, Letícia Bauer analisa as experimentações com processos participativos no Museu Joaquim Felizardo, em Porto Alegre. Seu texto, História recente e processos participativos: experimentações em museus, parte de sua experiência de atuação, com ênfase nos desafios enfrentados pelo museu desde 2015, quando adotou a perspectiva da instituição enquanto: espaço de observação, como local de escuta e lugar de fala sobre a cidade. Partindo de iniciativas que buscaram trazer a participação de setores sociais como movimentos LGBT’s e grupos carnavalescos, Bauer reflete sobre a ampliação do conceito de patrimônio necessário quando se procura trazer o “público” para o centro dos debates, o que envolve uma mudança de perspectiva que se concentra em uma experimentação compartilhada. Pensar a relação historiador(a)-museu-público, desta forma, é pensar o papel das próprias instituições e o diálogo que existe não somente como mecanismo atrativo para que o museu seja visitado, mas como posicionamento prático que guia o entendimento desse espaço como um local compartilhado e de identificação coletiva no espaço urbano.

O quarto capítulo da obra, Genealogias da história pública na Colômbia: fragmentos de uma prática intelectual, de Sebastián Vargas Álvarez, discute o exercício da história pública na Colômbia como campo de produção de narrativas sobre o passado, sejam estas elaboradas por historiadores ou não, em diálogo com as demandas públicas existentes no presente. O autor privilegia iniciativas que estabelecem diálogos entre Artes e Ciências Humanas como forma de tratar de questões ligadas à realidade colombiana, a exemplo de pesquisas participativas, cartilhas, documentários e da coprodução de histórias indígenas. Álvarez defende especialmente que, apesar da História Pública ser um campo relativamente recente no país, sua emergência não significa a ausência de iniciativas. Neste processo, aponta não somente para a dimensão coletiva e colaborativa, mas, principalmente, para o papel de uma História Pública crítica e democrática para a construção de narrativas nacionais alternativas à oficial que possibilitem uma visão mais plural das “colombianidades” no tempo presente.

O capítulo De São Paulo a Charlottesville: derrubada e questionamento de monumentos como casos de iconoclastia política da história pública, de Francisco das C. F. Santiago Júnior, parte dos protestos iconoclásticos, ocorridos em São Paulo (2016) e Charlottesville (2017), para entender as modificações de significados de monumentos no tempo presente a partir das relações sociais estabelecidas com diferentes públicos tendo em vista que ambas ocorreram em “contextos não revolucionários, ou seja, constituem debates ou ações sobre o passado de sociedades nas quais ocorre o funcionamento de instituições vigentes.” (Santiago Jr. 2021, 94). O historiador defende a hipótese de que ser um pesquisador preocupado com a dimensão pública da história é procurar não apenas construir projetos colaborativos, mas entender as relações sociais estabelecidas entre presente e o passado público. Tal proposta, que parece ser a mais recorrente na operação historiográfica, todavia, tem uma especificidade fundamental defendida por Santiago Jr: a necessidade da observação e da escuta do “público” como agente fundamental.

O penúltimo capítulo da seção de artigos analisa a História Recente Chilena a partir dos processos que visaram atender as demandas públicas na sociedade chilena. De autoria de Danny Gonzalo Monsálvez Araneda, Estudar a história recente do Chile (1970-2019): Perspectiva historiográfica e alguns temas para sua problematização elabora um panorama geral da História do Tempo Presente no Chile, destacando a centralidade do contexto pós-década de 1970. Araneda afirma que a construção das narrativas ligadas à história chilena tem se orientado especialmente por um processo que relaciona as demandas populares de investigações e divulgações sobre o passado recente do país com os projetos de reconfiguração do ensino de história em seus diversos espaços, em especial aqueles não escolares como museus, memoriais e produções culturais. A partir de um levantamento bibliográfico vasto, Araneda demonstra a consolidação desse processo no país, apresentando os principais campos já estabelecidos, mas indica a existência de uma série de desafios ainda urgentes por superação.

A solidão das testemunhas: Trauma, memória e história do Contestado, de Rogério Rosa Rodrigues, encerra a seção de artigos. A partir do processo de autorreflexão enquanto pesquisador com consolidada na História da região do contestado, Rodrigues propõe a análise de diferentes propostas de História Pública a respeito da Guerra do Contestado. São analisados casos de docentes do ensino básico, produções audiovisuais e o papel de memorialistas como “guardiões da memória local”. Certamente, um processo central na análise deste capítulo é o papel das emoções e da sensibilidade em potencializar as relações entre História Pública e História do Tempo Presente, lembrando as diferentes formas como o(a) historiador(a), ao se aproximar do público e se despir de uma projeção de “voz autorizada”, é moldado e sensibilizado por estar frente a frente com formas de passados presentes na sociedade contemporânea.

A segunda seção do livro, reúne três entrevistas com historiadores(as) de referência na História Pública que, através de suas trajetórias e reflexões, defenderam a aproximação com a História do Tempo Presente. A primeira entrevista, realizada com a historiadora Ana Maria Mauad, aborda a História Pública no Brasil a partir da experiência como uma das participantes da consolidação do movimento no país. Mauad discute como se aproximou da História Pública, o papel de espaços institucionais anteriores à emergência do movimento no país e o histórico de construção da Rede Brasileira de História Pública. Para a historiadora, trabalhar com História Pública, mais que pensar um subcampo disciplinar ou uma área profissional especifica, é integrar um movimento que assume uma “atitude historiadora” de estímulo, em diferentes espaços e com diferentes públicos, ao estranhar o familiar visando aproximar a sociedade de seu passado e das múltiplas temporalidades. Este seria, em sua visão, a principal aproximação da História Pública com a História do Tempo Presente pois possibilita “a nos colocarmos diante do tempo, num movimento em que o tempo passado se calibra em relação ao presente pela continuidade das práticas compartilhadas entre os grupos sociais, como pelas lentes da distância” (Mauad 2021, 161).

A segunda entrevista aborda a História do Tempo Presente na América Latina a partir das relações com a História Pública. Eugenia Allier-Montaño, historiadora mexicana, desenvolve um balanço historiográfico do desenvolvimento da História do Tempo Presente latino-americana, em especial suas interfaces e divergências com relação à historiografia francesa, defendendo que, no caso de nosso continente, um dos principais impulsionadores foram os golpes militares e autoritários ocorridos no século passado, enquanto na Europa a eclosão da II Guerra Mundial estaria no cerne. Reconhecendo que a História Pública ainda não é um termo em voga no México, assim como em outras regiões da América Latina, Allier-Montaño destaca que isso não significa a falta de abordagens e iniciativas que estejam diretamente ligadas as demandas públicas e sociais. Neste momento, a autora cita especialmente o papel dos historiadores que têm atuado no campo da História Oral e da memória das vítimas de violência de estado no século passado.

Por fim, o historiador belga Serge Noiret retoma as discussões que partem da História Pública para dialogar com o Tempo Presente na Europa. A entrevista de Noiret sistematiza as primeiras experiências de História Pública globalmente, em especial nos Estados Unidos e no continente europeu, apresentando os bastidores que envolveram a construção do campo, através da Federação Internacional de História Pública. Além desse panorama geral, Noiret demonstra o papel que o Brasil ocupou neste processo, manifestando que diferente de outros casos nos quais o passou a receber teorias da história e práticas externas e desenvolver olhares específicos, no caso da História Pública, talvez pela consolidação do Tempo Presente no mesmo período, o país tem desenvolvido metodologias próprias que vem alterando os entendimentos globais nessa área. Em especial, percebe-se que a principal especificidade do Brasil, seria que a História Pública no Brasil é pensada enquanto não somente um campo profissional, mas um movimento que repensa o ofício de Clio, ou seja, trata-se de uma nova postura e proposta de encarar o campo disciplinar da história.

Em linhas gerais, História Pública e História do Tempo Presente reúne autores que a partir de diferentes lugares de fala e atuações profissionais permitem um grande mapeamento de abordagens no campo da História Pública que dialogam e/ou tratam de temas de passados contemporâneos. Desta forma, a coletânea não realiza, por exemplo, uma discussão teórica exaustiva a respeito das bases epistemológicas da História do Tempo Presente, campo consolidado e em expansão no Brasil, mas parte da ideia de que a cotemporalidade, ou a existência de múltiplas camadas temporais que constituem o vivido, pode e deve ser analisadas a partir da relação com diferentes grupos sociais. É possível perceber que, para além desse exercício de uma cartografia da História Pública, a obra organizada por Rodrigues e Borges demonstra um movimento coletivo e global de repensar as formas como, na contemporaneidade, lidamos com desafios de nosso próprio presente em sua relação com o passado. Os desafios de problematizar as memórias, em especial as dominantes, de repensar a disciplina, de desconstruir o status do historiador como aquele que analisa a sociedade, mas não se aproxima dela, são levados a cabo pelos autores e autoras que demonstram a urgência em não apenas tornar pública a produção historiográfica, mas entender que os “públicos” são a base de nosso ofício.

Referências

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de, e Ana Paula Tavares Teixeira, org. História pública e divulgação de história. São Paulo: Letra & Voz, 2019.

HERMETO, Miriam, e Rodrigo Ferreira, org. História Pública e Ensino de História. São Paulo: Letra e Voz, 2021.

RODRIGUES, Rogério Rosa, e Viviane Borges, ed. História pública e história do tempo presente. São Paulo: Letra e Voz, 2021.

SANTHIAGO, Ricardo. “Duas Palavras, Muitos Significados: Alguns comentários sobre a história pública no Brasil”. Em História Pública no Brasil: Sentidos e Itinerários, org. Ana Maria Mauad, Janiele Rabêlo de Almeida, e Ricardo Santiago, 23-36, São Paulo: Letra e Voz, 2016.

SANTHIAGO, Ricardo, Ana Maria Mauad, e Juniele Rabelo de Almeida, org. História Pública no Brasil: Sentidos e Itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016.

SANTHIAGO, Ricardo, Ana Maria Mauad, e Viviane Trindade Borges, org. Que história pública queremos? What Public History Do We Want? São Paulo: Letra e Voz, 2018.

* O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.


Resenhista

Igor Lemos Moreira –  Doutorando em História pelo programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestre e Graduado em História (Licenciatura) pela mesma instituição. Bolsista CAPES-DS, integrante do Laboratório de Imagem e Som (LIS/UDESC). Associado a ANPUH-SC, ANPHLAC e IASPM-AL. Tem experiência na área de História, com ênfase em História das Américas, Teoria da História, História Contemporânea. Atua principalmente nos seguintes temas: Relações e trânsitos entre Estados Unidos e Caribe; Biografias e Trajetórias Artísticas; Exílios; Representações; História de Cuba e identidades cubanas: Música Pop; Música Latino-americana; Audiovisual e Canção; História Pública e História do Tempo Presente. E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0001-6353-7540


Referências desta Resenha

RODRIGUES, Rogério Rosa; BORGES , Viviane (Eds.). História pública e história do tempo presente. São Paulo: Letra e Voz, 2021. Resenha de: MOREIRA, Igor Lemos. Cartografias de História Pública em Tempos Presentes.  Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.27, n.2, p. 430-436, 2021.

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