Alteridades em tempos de (in)certeza: escutas sensíveis | Miriam hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore

Gabriel Amato e Miriam Hermeto Alteridades
Gabriel Amato e Miriam Hermeto | Imagem: UFMG

Sentados diante de um Outro, tentamos atribuir sentido a ele. Ou enquadrá-lo, nas palavras de Judith Butler (2018). No instante dessa “cena do reconhecimento”, as molduras que usamos vêm de relações de poder que extrapolam esse momento. Ao reconhecê-lo como outro, reconhecemos também a nós mesmos. Há semelhanças, mas também há diferenças.

Já nos vimos antes ou esse é o primeiro contato? É uma mulher, assim como eu? Ou talvez é um homem e ainda mais velho? Há confiança suficiente entre nós para que o que ela está para me dizer seja enunciado? Tais características constituem uma barreira ou um conector entre nós? Os pesquisadores que já estiveram em entrevistas de história oral sabem que as respostas a cada uma dessas perguntas – e a inúmeras outras – podem levar, a nós e a nossas pesquisas, para rumos diversos, muitas vezes inesperados. Leia Mais

História oral e historiografia: questões sensíveis | Angela de Castro Gomes

Angela de Castro Gomes Alteridades
Angela de Castro Gomes | Foto: Bruno Leal, 2020

Há algum tempo sabemos como os discursos da memória marcaram um “giro subjetivo” (SARLO, 2012) que continua a pautar redefinições dos modos de pensar os sentidos de fazer história no mundo contemporâneo. Um de seus rastros mais evidentes é o sinal de como a lida com o passado não é objeto exclusivo da historiografia universitária. Diante de questões interligadas como o “‘boom da memória’, a emergência da ‘história pública’ e a crescente preocupação internacional com a ‘(in)justiça histórica’”, é válido destacar a observação de que para a teoria da história manter-se relevante para historiadores/as e para a sociedade em dimensões alargadas deve considerar a “diversidade de mecanismos para lidar com o passado e a forma como tais mecanismos são incorporados, interagem com, e até constituem parcialmente contextos culturais, sociais e políticos mais amplos” (BEVERNAGE, 2020, p. 11 e 15). Leia Mais

História Pública e divulgação de história | Bruno Leal Pastor de Carvalho e Ana Paula Tavares Teixeira

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Bruno Leal Pastor de Carvalho e Ana Paula Tavares Teixeira | Fotos: Comunicação Ages e Café História

CARVALHO e TAVARES Historia Publica e divulgacao de Historia 1 AlteridadesO livro coordenado por Bruno Carvalho (UnB) e Ana Teixeira, diretores do Portal Café História propõe o desenvolvimento de uma competência para o historiador: “divulgar o resultado do seu próprio trabalho para o grande público”[II]. A insatisfação expressa pela dupla é motivada, principalmente, pela necessidade de ampliar o “alcance social” dos historiadores, a dimensão e a qualidade da “consciência histórica” da “sociedade”[III]. Por essa razão, reuniram seis relatos de experiência, um estudo e três entrevistas sobre “Divulgação Científica” e “História Pública” que abrangem a editoria de livros e revista, canal no YouTube, site e portal na internet, coluna de jornal, aula em espaços públicos abertos e exposição em museu.

No primeiro capítulo – “Editando a História” –, Luciana Pinsky intencionou descrever “como é feita a divulgação da História no formato livro”. A resposta foi insuficiente porque não conseguiu traduzir esse “como” em operações, habilidades e/ou princípios. Também não conseguiu livrar-se do jargão “público em geral”, às vezes definido pelo (óbvio) “não específico” ou exemplificado como “estudantes de graduação e de pós-graduação, acadêmicos e pesquisadores”.[IV] Comentou, ainda, a efêmera iniciativa do E-Guttenberg, que divulgava monografias universitárias de jovens historiadores por meios digitais. Esse sim, um concreto exemplo de “divulgação”. Leia Mais

História Pública e História do Tempo Presente | Rogério Rosa Rodrigues e Viviane Borges

Observou-se nas últimas décadas um crescimento em estudos que destacam a memória como objeto ou fonte de pesquisas históricas. Pautada principalmente a partir da década de 1980, sua interlocução com a história permitiu intensos debates sobre temáticas caras ao passado presente. A História Oral se estabeleceu como prática no campo, consolidou diferentes vertentes teórico-metodológicas e adensou as discussões entre memória e história. Conectada pela memória, a área se aproxima da História do Tempo Presente, e em consonância com a História Pública, busca amarrar esses pontos, com foco em produções realizadas com (e para) o público.

Essas questões estão no livro História Pública e História do Tempo Presente, lançado em 2020 pela editora Letra e Voz, com organização de Rogério Rosa Rodrigues e Viviane Borges, docentes na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Seus escritos são marcados pelas interfaces de contato entre esses campos, e desenvolvem pesquisas que abordam a relação entre temporalidades, memória, estratos temporais e o caráter público da história. A obra possui dez capítulos, divididos em artigos e entrevistas, e busca contribuir com diferentes panoramas a partir de linhas teóricas e discussões que se cruzam. Reunindo 12 autores, o livro nos convoca a pensar sobre os usos do passado, a monumentalização e o fomento de um campo preocupado com as implicações públicas do fazer histórico. Leia Mais

História pública e história do tempo presente | Rogério Rosa Rodrigues

A segunda década do século XXI marcou a consolidação do movimento da História Pública no Brasil. Apesar de sua emergência e seu estabelecimento através da formação da Rede Brasileira de História Pública, de publicações especializadas e eventos internacionais e nacionais, a História Pública ainda permanece permeada de dúvidas, críticas e estranhamentos por parte da comunidade de historiadores(as). É possível considerar que a maioria destas questões estão associadas à imagem de “novidade” em torno de uma prática que, para alguns, remonta a projetos anteriores que já existiam no âmbito universitário. Publicações como Que História Pública Queremos (2018) e História Pública no Brasil: Sentidos e Itinerários (2016) procuraram responder a algumas destas problemáticas que emergiram após a realização do curso de Introdução a História Pública na USP (2011). Em meio a tais esforços, verificou-se a expansão do interesse da comunidade por esta discussão em paralelo as possíveis críticas que emergiam. Cursos de graduação e pós-graduação foram revisados e/ou criados, projetos em diferentes níveis passaram a pensar a dimensão pública de suas produções e, acima de tudo, historiadoras(es) repensaram seu próprio ofício.

O que se percebe é um processo de construção de um movimento, mais que a fundação de um campo da História Pública (Santhiago 2016), que tem defendido a centralidade do público na prática historiográfica. Seja como uma história com, para, pelo ou através dos públicos, a História Pública tem revisitado as regras estruturais do campo disciplinar. Atenta a este processo, a editora Letra e Voz publica, desde 2019, a coleção “História pública e…” que mapeia as relações entre a prática da história pública na interface com outros campos, como a divulgação histórica (2019) e o ensino de história (2021). Em sua proposta, os livros da coleção reúnem artigos que possibilitam a reflexão epistêmica da História Pública e entrevistas com historiadores nacionais e internacionais de referência. Leia Mais

História pública e ensino de história | Miriam Hermeto e Rodrigo de Almeida Ferreira

Miriam Hermeto e Rodrigo de Almeida Alteridades
Miriam Hermeto e Rodrigo de Almeida Ferreira (em primeiro plano) | Fotos: UFMG e UFF

ALMEIDA Historia publica e ensino de historia AlteridadesO estranhamento de todo dia para aqueles e aquelas que experimentam, seja na formação inicial ou continuada, seja no trabalho escolar ou na pesquisa acadêmica, o ensino de história como um campo de conhecimento, mas também de práticas profissionais, talvez seja muito seme­lhante à experiência de um estrangeiro olhando as suas fontes e os seus materiais, interagindo com os sujeitos do campo, buscando sempre autorizar a superação da dolorosa sensação de alheamento e exterioridade com a sua prática e a experiência que dela decorre. Quem sabe, eles não encontrem nesse belo trabalho organizado por Miriam Hermeto e Rodrigo de Almeida Ferreira, com a contribuição de especialistas sempre (ou quase sempre) compartilhando a autoridade com professores de ofício da educação básica – via de regra experimentando percursos de formação continuada –, uma aliança generosa e solidária? Que esta resenha possa somar-se a essa alian­ça potente, em uma perspectiva de compreensão narrativa e empatia (RITIVOI, 2018), assumindo um lugar de professor entre professores de História.

Bons textos nos fazem pensar uma segunda vez sobre o que já sabemos, ou julgamos saber. E pensar ainda uma vez mais sobre o repensado, em uma espiral de sentidos que não se esgota entre paredes, nem do laboratório nem da sala de aula. E ainda que esses espaços sejam, às vezes, referências incontornáveis para o que pensamos e para o modo como pensamos, também eles não cabem definitivamente em si mesmos. Estão aí estes tempos de pandemia e de afastamento social a forçar a dilatação paradoxal das nossas referências e das nossas reflexões. O que sabe­mos sobre o ensino de história? O que sabemos sobre a história pública? O que sabemos sobre esse lugar para onde convergem nossos saberes sobre ambos? Se não trazem respostas prontas e definitivas a tantas perguntas, os textos reunidos em História pública e ensino de história parecem seguir o conhecido conselho de Clifford Geertz (2009), segundo o qual, quando não conhecemos bem a resposta, devemos discutir a pergunta: eles trazem, sem dúvida, uma excelente contribuição à continuidade do debate. Leia Mais

Que história pública queremos? What Public History do we want? | Ana Maria Mauad e Ricardo Santhiago

ANA MARIA MAUAD e RICARDO SANTHIAGO Alteridades

Ana Maria Mauad e Ricardo Santhiago | Fotos: Bazar do Tempo e Hypotheses

MAUAD e SANTHIAGO Historia publica AlteridadesOs estudos históricos têm enfrentado, nas últimas décadas, desafios relacionados à sua legitimidade, credibilidade e autorização social em diferentes níveis. O maior deles é o caso do crescente negacionismo que atravessa o combate pela história de modo cada vez mais frequente.

Nesse cenário, as atividades de história pública vem sendo conduzidas no sentido de desestabilizar essas críticas, uma vez que têm como característica a participação do público nos debates que envolvem a construção das próprias pesquisas e/ou do seu produto final. Leia Mais

O Auge da História. História do curso de História da Universidade Federal do Paraná | Bruno Flávio Lontra Fagundes

Faculdade de Filosofia UFPR Alteridades
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná na década de 1940. Foto: Divisão de Documentação Paranaense/Exatas.ufpr.br

LONTRA B O auge da Historia AlteridadesNota-se, nas últimas duas décadas, um adensamento nos esforços em prol da historicização dos cursos de História no Brasil. Constituem sua forma mais visível e direta os estudos de caso, em que se combinam, de maneiras variadas, histórias institucionais e políticas, bem como análises de programas e estudos populacionais (em particular, de docentes).[1] Não menos significativas, contudo, são as investigações de aspectos outros, indiretos, que reverberam na compreensão da história dos cursos. Seja analisando trajetórias de indivíduos ou grupos[2], seja apostando na etnografia de práticas que acompanham a criação de tais espaços[3], esse segundo conjunto de trabalhos ajuda a dimensionar com maior precisão a complexidade de objetos de estudo que nos são, ao mesmo tempo, próximos e caros.

É no cruzamento dessas duas sendas que vem se situar O Auge da História, livro escrito por Bruno Flávio Lontra Fagundes e dedicado ao estudo do curso de História da atual Universidade Federal do Paraná (doravante UFPR). Trata-se de mais uma inflexão na versátil e multidisciplinar trajetória de seu autor, que explorou, antes, o “livro-arquivo” de José Pedro Xavier da Veiga (2014a), ou então as representações do Brasil e de sua história na literatura contemporânea (2010 e 2011). Professor da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) desde 2015, Fagundes apresenta nele as conclusões de um estágio pós-doutoral realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em alguma medida prefiguradas em artigos científicos já conhecidos na área (2014b e 2017). Leia Mais

Do folclore à Militância: A canção latino-americana no século XX | Tânia da Costa Garcia

A obra Do folclore à Militância: A canção latino-americana no século XX, da historiadora Tânia da Costa Garcia, é resultado de sua tese de livre-docência apresentada à Universidade Estadual Paulista. Publicada em 2021 pela editora Letra e Voz, foi inicialmente lançada em inglês pela Lexington Books (2019), com o título: The Latin American Songbook in the Twentieth Century: From Folklore to Militancy. Docente da UNESP, Garcia dedica-se, desde a pós-graduação, a pesquisar temáticas como identidades nacionais, canção engajada, meios de comunicação e cultura popular. Ao longo de sua trajetória publicou O “it verde e amarelo” de Carmen Miranda (1930-1946), pela Annablume/FAPESP em 2004, e foi organizadora das coletâneas Música popular: História, memória e identidades e Música e Política: um olhar transdisciplinar, ambas pela editora Alameda em 2013 e 2015, respectivamente. A longa trajetória como pesquisadora na área de música e cultura popular é apresentada de forma resumida na obra, que reúne resultados de suas pesquisas nos últimos anos que envolveram a passagem por instituições brasileiras, britânicas e argentinas. Leia Mais

História oral e historiografia: Questões sensíveis | Angela de Castro Gomes

Em continuidade à coleção História Oral e dimensões do público,1 foi lançada, no ano de 2020, a obra História oral e historiografia: Questões sensíveis, organizado por Angela de Castro Gomes. O livro constitui um misto de experiências de pesquisas, análises de narrativas orais sobre diversas temáticas, levantamentos de produções historiográficas das últimas quatro décadas e debates pertinentes sobre as questões sensíveis que envolvem a utilização das fontes orais. O objetivo, como apontado na introdução, foi “fazer um mapeamento […] do impacto que o uso da metodologia da História Oral produziu no campo das pesquisas acadêmicas de História, no Brasil, em especial a partir dos anos de 1980” (Gomes, 2020, p. 7).

Angela de Castro Gomes tem reconhecimento no campo da historiografia oral, sendo uma das propulsoras do campo no Brasil. Iniciou, como lembra no último capítulo do livro, a utilizar a História Oral a partir da segunda metade dos anos de 1970. A autora também foi coordenadora de diversos projetos que tinham como objeto a história política do Brasil República, a história de intelectuais, a cidadania e os direitos do trabalho, a historiografia, a memória e o ensino de história. Além disso, dirigiu o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) dos anos de 1988 até 1994, onde, hoje, é professora emérita; centro este conhecido pelos acervos e pesquisas que se utilizaram da História Oral. Leia Mais

História pública e ensino de história | Miriam Hermeto e Rodrigo de Almeida Ferreira

O estranhamento de todo dia para aqueles e aquelas que experimentam, seja na formação inicial ou continuada, seja no trabalho escolar ou na pesquisa acadêmica, o ensino de história como um campo de conhecimento, mas também de práticas profissionais, talvez seja muito semelhante à experiência de um estrangeiro olhando as suas fontes e os seus materiais, interagindo com os sujeitos do campo, buscando sempre autorizar a superação da dolorosa sensação de alheamento e exterioridade com a sua prática e a experiência que dela decorre. Quem sabe, eles não encontrem nesse belo trabalho organizado por Miriam Hermeto e Rodrigo de Almeida Ferreira, com a contribuição de especialistas sempre (ou quase sempre) compartilhando a autoridade com professores de ofício da educação básica – via de regra experimentando percursos de formação continuada –, uma aliança generosa e solidária?

Que esta resenha possa somar-se a essa aliança potente, em uma perspectiva de compreensão narrativa e empatia (RITIVOI, 2018), assumindo um lugar de professor entre professores de História. Leia Mais

História Pública e divulgação da história / Bruno L. P. de Carvalho e Ana Paula T. Teixeira

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Bruno Leal Pastor de Carvalho e Ana Paula Tavares Teixeira / Fotos: Comunicação Ages e Café História /

CARVALHO e TAVARES Historia Publica e divulgacao de Historia 1 AlteridadesEste livro tem como proposta apresentar as experiências e as reflexões sobre as formas de divulgar o conhecimento histórico acumulado, demonstrando a ampliação dos suportes de circulação da produção historiográfica.

A obra é uma coletânea composta de seis capítulos e três entrevistas produzidas por historiadores, jornalistas e por gente que transita nesses dois campos. São profissionais com perspectivas históricas variadas, com diferentes experiências e inserções distintas como produtores/mediadores de representações da História. O conjunto dos textos deste livro compreende diferentes linguagens e suportes da História Pública, com discussões sobre como ampliar o acesso do conhecimento histórico pesquisado em revistas acadêmicas, livros, vídeos do Youtube, sites, museus e espaços públicos da cidade.

Os coordenadores Bruno Leal Pastor de Carvalho e Ana Paula Tavares Teixeira são investigadores da História Pública no Brasil e contribuíram neste volume para o desenvolvimento da temática ao colocar juntos colegas que trabalham a dimensão pública do conhecimento histórico. Leia Mais

O que pode a biografia | Alexandre de Sá Avelar e Benito Bisso Schmidt

Benito Bisso Schmidt é professor no Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nessa instituição, graduou-se e realizou o Mestrado e concluiu o Doutorado em 2002, pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Durante a sua formação, Schmidt estudou temas referentes à Biografia e à História Social do Trabalho, como também passou a se debruçar sobre os Estudos Queer. Alexandre de Sá Avelar é docente no Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduou-se e tornou-se, em 2001, mestre pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e, posteriormente, cursou o Doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF). Avelar trabalhou com temas ligados aos campos da História Política, da Biografia, da Teoria da História e da Historiografia.

Organizada por esses historiadores, a coletânea intitulada O que pode a biografia apresenta a narrativa como eixo principal de análise e os capítulos divididos em duas sessões. A primeira, Horizontes Teórico-Metodológicos, está relacionada aos processos constitutivos da biografia (indivíduo, tempo, narrativa e escalas) e a sua inserção no debate público. A segunda, Experiências de Pesquisa e Leitura, apresenta as trajetórias de pesquisadores, que contribuíram para a coletânea da obra, e os parâmetros usados na elaboração de suas pesquisas. Leia Mais

O que pode a biografia | Alexandre de Sá Avelar e Benito Bisso Schmidt

Em algum momento, Fernando Pessoa afirmou que se um dia escrevessem sua biografia seria algo simples, com somente duas datas, de nascimento e de morte, pois todo o resto era algo só seu. Os biógrafos e os leitores de biografias discordam deste monopólio do indivíduo sobre sua trajetória e enquanto os primeiros exercitam seu ofício na construção de narrativas diversas sobre seus personagens, os segundos satisfazem suas curiosidades através da leitura de obras com diversificado conteúdo e em distintos formatos.

Personagens, biógrafos e biografias têm sido objetos de reflexão em diversos campos das ciências humanas, de modo que a História, ao mesmo tempo em que busca o diálogo com as ciências sociais, a teoria literária, a análise de discurso, a psicologia, entre outras áreas e especialidades, também tem se dedicado de forma ampla, constante e vigorosa sobre os temas derivados de tais objetos. Leia Mais

Que história pública queremos? Ana Mauad, Ricardo Santhiago e Viviane Trindade

Organizado por Ana Maria Mauad, Ricardo Santhiago e Viviane Trindade Borges, o livro “Que história pública queremos?” (What public history do we want?) convida os leitores a participarem de um debate que caracteriza o campo e os caminhos da história pública no Brasil. Como novidade, essa produção de 2018, escrita por historiadores brasileiros e brasilianistas, oferece a tradução dos seus vinte capítulos para o inglês, o que ressalta não só a relevância dos percursos reflexivos (Que história pública queremos?) e práticos (Que história pública fazemos?) estabelecidos em território nacional, mas suas perspectivas de alcance internacional, que não descartam, segundo os organizadores, influências e diálogos do Brasil com as tradições teóricas estrangeiras referentes à área.

Adicionam-se ao catálogo editado pela Letra e Voz1 esses textos em que os autores compartilham suas visões sobre história e história pública ao mesmo tempo que repensam seus próprios campos, temas, objetos, métodos e objetivos de pesquisa. Assim, o que caracteriza a contribuição do livro perante a pretendida história pública brasileira é exatamente a união entre uma espécie de autoavaliação das trajetórias e experiências teóricas e práticas do ofício do historiador e a redescoberta da “dimensão pública do conhecimento histórico” (MAUAD; SANTIAGO; BORGES, 2018, p. 11). Leia Mais

Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão | Adrianna Stemy

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No panorama de estudos relativos a ditadura militar brasileira – e em especial no que tange as políticas de governo e aos aspectos culturais conservadores da época – foi lançado recentemente uma interessante contribuição da historiadora Adrianna Setemy, ela que é mestre e doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e com pós-doutorado na mesma instituição. Nessa obra a autora mostra com acuidade, como após o golpe de Estado de 1964 no Brasil, inúmeros fatores afetaram o comportamento das pessoas, desde o modo de se vestir, até as questões relacionadas a sexualidade, além disso, nesse mesmo interim ressalta que o mundo tomava conhecimento de uma gama de fenômenos que o abalaria, tais como: o término da Segunda Guerra Mundial, a luta dos direitos civis, a Guerra do Vietnã, da mesma maneira que, introdução da pílula anticoncepcional, a influência do rock, do movimento hippie e do uso de drogas faziam parte das manifestações políticas e culturais daquele momento. Leia Mais

Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão | Adrianna Setemy

No panorama de estudos relativos a ditadura militar brasileira – e em especial no que tange as políticas de governo e aos aspectos culturais conservadores da época – foi lançado recentemente uma interessante contribuição da historiadora Adrianna Setemy, ela que é mestre e doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e com pós-doutorado na mesma instituição. Nessa obra a autora mostra com acuidade, como após o golpe de Estado de 1964 no Brasil, inúmeros fatores afetaram o comportamento das pessoas, desde o modo de se vestir, até as questões relacionadas a sexualidade, além disso, nesse mesmo interim ressalta que o mundo tomava conhecimento de uma gama de fenômenos que o abalaria, tais como: o término da Segunda Guerra Mundial, a luta dos direitos civis, a Guerra do Vietnã, da mesma maneira que, introdução da pílula anticoncepcional, a influência do rock, do movimento hippie e do uso de drogas faziam parte das manifestações políticas e culturais daquele momento. O Brasil, por sua vez, sentiu todas essas circunstâncias sob a agonia de uma ditadura, a qual, a repressão não se limitou apenas ao campo político, mas também aos costumes que contestavam os padrões da “moral e dos bons costumes”, a partir da forte interferência do moralismo. Setemy discute esses temas, tendo como fonte de investigação duas revistas Manchete e Realidade durante o intervalo entre 1964 e 1968, onde, nos anos 60 desempenharam a capacidade de abordar temas polêmicos, ganhando lucro nas vendas, sem colocar-se em risco pelo viés político da censura ou da recusa dos conservadores. Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar é um livro, que foi lançado pela editora Letra e Voz no ano de 2019, que nos permite refletir como foi possível durante os conturbados anos ditatórias a impressa, com destaque para as revistas citadas, tratarem sobre as mudanças comportamentais que se fizeram nesse contexto. Leia Mais

História Oral e Patrimônio Cultural: potencialidades e transformações | Letícia B. Bauer e Viviane Trindade Borges

Quando ouvimos o patrimônio cultural, quais vozes são possíveis? As historiadoras Leticia Bauer e Viviane Trindade Borges, organizadoras desta publicação, contribuem nos debates recentes desenvolvidos no campo do patrimônio e da história oral no Brasil, com a seleção de diferentes percepções sobre o tema, ampliando as possibilidades teórico metodológicas de análise do patrimônio cultural a partir do trabalho com fontes orais, e das discussões sobre a história oral na problematização do patrimônio cultural. Este trabalho está inserido na coleção “História oral e dimensões do público”, da Editora Letra e Voz, que é dirigida por Juniele Rabêlo de Almeida, divulgando pesquisas voltadas para o uso das fontes orais e a relação com seus públicos, trazendo outras perspectivas sobre a história oral a partir de temas como migrações, mídia e os movimentos sociais.

Para além de ouvir a potencialidade das vozes nas narrativas sobre o patrimônio, as organizadoras buscam divulgar ações que possibilitem a transformação com a participação cidadã na construção de suas memórias. Esse intuito se relaciona com as trajetórias acadêmicas destas historiadoras, que privilegiaram em suas pesquisas e na sua atuação profissional as experiências com patrimônios não convencionais de maneira colaborativa, em consonância com as discussões desenvolvidas pela História Pública. Leia Mais

Nara Leão: trajetória, engajamento e movimentos musicais – SARAIVA (HO)

SARAIVA. Daniel Lopes. Nara Leão: trajetória, engajamento e movimentos musicais. São Paulo: Letra e Voz, 2018. 200p. Resenha de: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Pereira de. “Operária da música brasileira”: Nara Leão e uma memória musical do Brasil. História Oral, v. 22, n. 2, p. 283-286, jul./dez. 2019.

Aqueles que cruzassem os corredores da Pontifícia Universidade Católica (PUC) da Guanabara, em meados dos anos 1970, poderiam ter a sorte de avistar, mesmo que de relance, uma das maiores intérpretes da música brasileira. Para alguns, somente uma estudante de Psicologia que transitava pelo campus. Com os holofotes afastados, em um movimento próprio e consciente, Nara Leão sentava na sala de aula determinada a aprender o máximo possível. Essa sede por conhecimento vinha desde as reuniões de artistas em seu apartamento, na Zona Sul do Rio de Janeiro, sendo objeto de dedicação durante toda sua carreira e presente nas narrativas realizadas sobre ela. A musa da Bossa Nova, que circulou por inúmeros estilos, era uma profunda conhecedora da música brasileira, reconhecida por seus pares como de refinado gosto musical. Não à toa, foi responsável por lançar diversos artistas, além de dialogar com grandes movimentos musicais do país, como a Bossa Nova, a Jovem Guarda e a Tropicália, e fazer parte da invenção e institucionalização da MPB.

A figura de Nara Leão perpassa por diversos momentos da música brasileira. Os choques e afastamentos da artista com os holofotes, a aproximação com jovens e talentosos músicos, o enobrecimento de movimentos marginalizados, são alguns dos inúmeros pontos que resultam de seu constante trânsito. De forma inquieta, inteligente e perspicaz, a trajetória de Nara se encontra com a de outros artistas brasileiros contemporâneos a ela, como Chico Buarque, Gilberto Gil, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Zé Keti, Roberto Carlos, Fagner, entre tantos outros, que a destacam nas suas próprias trajetórias.

A efervescente vida de Nara Leão é o ponto de partida da pesquisa de Daniel Lopes Saraiva, no livro “Nara Leão: trajetória, engajamento e movimentos musicais”, publicado pela editora Letra e Voz, em 2018. Preocupado em dar densidade histórica para uma trajetória marcada por inúmeros trânsitos, o autor dialoga com as produções musicais da artista, passando por documentos oficiais do governo ditatorial brasileiro e entrevistas com colegas de trabalho, amigos e familiares. Assim, a trama tece diálogos entre uma sociedade que se transformava em diversas esferas e os trajetos da intérprete, sem perder de vista o desenvolvimento da música popular brasileira. Tendo como objetivo central compreender a figura de Nara Leão em perspectiva histórica, o livro se concentra no desenvolvimento da carreira da artista, através de reflexões sobre sua vida e obra, enquanto possibilidade para compreender um período complexo do país.

A obra é dividida em três capítulos. No primeiro, o autor procura, de forma audaciosa, traçar uma pequena biografia da artista, trazendo relatos de sujeitos que estiveram ao seu redor, principalmente entre sua infância e o início de carreira, sem perder de vista o contexto musical brasileiro. Já o segundo, se debruça nos seus diferentes engajamentos, como a aproximação com o Centro Popular de Cultura (CPC) e o teatro, e as vicissitudes enquanto mulher inserida nesses espaços. O terceiro, traz os 23 LPs gravados por Nara, além de uma discussão sobre a sua relação com diversos movimentos musicais, a busca por canções com temas caros à artista, e sua importância frente à indústria cultural nos anos 1970 e 1980.

O manancial de fontes de que o autor lança mão é ponto de destaque. Impressos, como Folha de São Paulo, Diário do Comércio, O Globo e O Pasquim; LPs, todos os de Nara Leão, entre 1964 e 1989, além de outros que marcaram a trajetória da intérprete. Filmes, como “Esse Mundo é Meu”, de Sérgio Ricardo, e “Quando o Carnaval Chegar”, de Cacá Diegues. Documentos de arquivos, como os da Força Aérea Brasileira (FAB), da Polícia Federal (PF), do Serviço Nacional de Informação (SNI), do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) e da Fundação Nacional de Artes (Funarte). Além disso, 25 entrevistas, em sua maioria realizada pelo autor, com pessoas que circundavam a vida pessoal e profissional de Nara Leão, como Roberto Menescal, Cacá Diegues e Fagner. Elas são operacionalizadas em diálogo, buscando tatear os fragmentos do passado de Nara e da música brasileira.

Por conta disso, a escrita se destaca no tocante à memória. Daniel Saraiva transcorre pelas fontes para propor uma trama interessante, que nos convida a problematizar diferentes versões sobre a trajetória de Nara Leão. Construindo memórias sobre a intérprete, os entrevistados elaboram narrativas que se chocam em alguns momentos, denotando ruídos entre as várias verdades acionadas. A memória, conforme Jacy Alves de Seixas, é uma reelaboração do passado, em que ela é ativada visando um controle daquilo que já não existe mais (Seixas, 2001). A latência dessa lembrança é evidenciada nos depoimentos destacados na obra. Para os entrevistados, lembrar Nara Leão é lembrar-se de si mesmo, em uma compreensão afetiva de suas experiências.

As memórias evocadas pelos rastros de Nara Leão são intensamente perseguidas pelo autor, em diálogo constante com a construção de narrativas sobre a própria MPB. Com um passado fragmentado, suas dimensões nunca serão apreendidas em sua plenitude, sendo visões sobre ele. Entre as representações construídas por diferentes sujeitos e fontes, a narrativa opera como mediadora entre configurações de mundo, conforme Paul Ricoeur (2008). A “invenção da tradição” da MPB, segundo Paulo César de Araújo, perpassa um processo de construção narrativa daquilo que estaria inserido na sigla, assim como do que estaria alijado (Araújo, 2002). Diversos artistas foram relegados ao ostracismo, seja pelo mercado fonográfico seja pela construção narrativa da MPB que não os contempla. Do outro lado, encontra-se Nara Leão, que sobrevive a diferentes crises da sigla, seja pelo seu gosto musical refinado, por sua origem social de classe média, ou talvez pela proximidade com os altos escalões das gravadoras.

O autor indaga sobre a construção de uma memória oficial sobre Nara Leão, analisando de que forma ela se conforma nas diferentes narrativas. Ao longo da obra, vimos a preocupação em não perder de vista de onde e com quem a intérprete falava, deixando evidente que Nara estava em contato e dialogava com uma pequena parcela da população brasileira, composta pela elite econômica e uma classe média intelectualizada. Esse ponto é retomado em diversas passagens, principalmente quando aproximada com a institucionalização da MPB, em que o papel social engajado da artista é evidenciado. A carga política e estética que a sigla carrega também pode ser percebida na sua trajetória, se destacando ao cantar as mazelas do povo, mesmo não fazendo parte dessa camada social, e nem dialogando com ela.  As memórias construídas sobre a artista exaltam sua personalidade transgressora e engajada, e constroem uma Nara multifacetada. As negociações e disputas em torno dessa memória nos colocam a par de circuitos afetivos, que tecem narrativas sobre a artista. Entendê-las enquanto uma construção revela seu caráter instável, transitório e múltiplo. Assim como a própria Nara Leão.

Referências

ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2002.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2008.

SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memórias em terras de História: Problemáticas Atuais. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia. (Org.) Memória e (res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora Unicamp, 2001, p. 37-58.

Carlos Eduardo Pereira de Oliveira – Doutorando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com área de concentração em História do Tempo Presente. Possui graduação e mestrado em História pela mesma instituição. Vinculado ao Laboratório de Imagem e Som (LIS-UDESC), tem experiência no campo dos estudos sobre canção, consumo e meios de comunicação.

 

Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão | Adriana Stemy

Da mesma forma que Caetano Veloso, em “Alegria, Alegria” passa a impressão de andar na rua registrando os acontecimentos de sua época como os “crimes de guerra”, as “cardinales bonitas” e as “caras de presidente”, Adrianna Setemy busca analisar os aspectos históricos que possam ter criado o cenário efervescente da década de 1960 no que diz respeito às mudanças de comportamento e a forma como as revistas se defrontaram com o problema da censura, em uma clara necessidade de compreender o tempo presente. Ao andar na rua, ler os jornais e conversar com pessoas, a autora reconhece que o Brasil se vê ameaçado novamente pela censura às artes e à liberdade de expressão. Os ataques ao Museu de Arte Moderna (MAM) por terem permitido a interação de uma criança com a performance de um homem nu e os projetos de lei apoiados no Programa Escola Sem Partido que buscam impor um fim à liberdade de cátedra com motivos de evitar uma “doutrinação ideológica” por parte dos professores sugere uma volta à censura, desta vez não pelas mãos de um regime militar, mas sim um estado que se pressupõe democrático.

A obra Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão parte da análise de como as revistas Manchete (Rio de Janeiro, 1952-2000) e Realidade (São Paulo, 1966-1976), de grande circulação durante os anos iniciais da ditadura militar, construíram uma revolução nos costumes da época, bem como a forma com que discutiram temas sobre comportamento e relacionamento que eram até então tabus morais. Seu recorte é o período entre 1964, início do regime militar brasileiro, e 1968, ano de promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) que representou o fim das liberdades individuais no país.

O livro, publicado em 2019 pela Editora Letra e Voz, contém três capítulos: o primeiro capítulo traz um panorama sobre a indústria editorial no Brasil na década de 1960, enquanto o segundo capítulo busca explicar a trajetória de ambas revistas e o terceiro passa a analisar sua produção.

Com pós-graduação – Pós-doutorado (2015), doutorado (2013) e mestrado (2008) – em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e graduada pela Universidade de Brasília (2005), a carreira acadêmica de Adrianna Cristina Lopes Setemy se pautou no estudo de temas relativos à censura e propaganda do Estado brasileiro no século XX, passando por temas como Direitos Humanos, memória social e violência política. O livro analisado faz parte de uma pesquisa maior desenvolvida durante o mestrado em que a autora visa compreender a censura nos periódicos entre 1964 e 1985, durante o regime militar.

A principal tese do livro é a de que mesmo o período ditatorial tendo sido um momento crítico da história política do Brasil, os anos 1960 foram responsáveis por uma revolução nos costumes. As revistas são mais do que veículos de comunicação ou reprodutores do pensamento de determinados grupos, mas revelam transformações sociais, bem como se colocam como agentes sociais das transformações. Setemy busca dar fim à ideia de que a sociedade foi vítima do Estado opressor e construir uma interpretação relacional entre Estado e sociedade, em que predomina, em certos momentos, mecanismos de negociação.

As revistas Manchete e Realidade revelaram-se rico material para compreender as representações, discussões e disputas dessa década de efervescência, tanto no que tange ao momento cultural quanto à indústria editorial. Ambas as revistas, salvo características particulares, se dedicaram à abordagem de temas comportamentais e de interesse geral que, muitas vezes, desagradaram o regime militar. A revista semanal Manchete, da Editora Bloch, entrou no mercado e se destacou por seu aspecto visual e pela preocupação com a produção e diagramação de imagens, voltada para um público de classe média urbana. Já a revista mensal Realidade, da Editora Abril, tinha como alvo um público de classe média urbana mais intelectualizado, preocupado com a profundidade com que os assuntos eram tratados. O sucesso de ambas as revistas, principalmente da revista Realidade, foi grande, mas durou pouco tempo, característica que a autora analisa frente a problemas internos referentes aos conselhos editoriais de cada empresa, mas também devido as rápidas mudanças no mercado editorial que buscava atender um público cada vez mais diversificado e que, portanto, escolheu por difundir um número maior de revistas especializadas em detrimento das de interesses gerais.

Ao analisar o conteúdo das revistas, Setemy divide sua análise em três eixos temáticos: a nova realidade feminina, as transformações da juventude e o conflito de gerações e os problemas educacionais. Os eixos temáticos apresentam o questionamento dos papéis sociais tradicionais e um abrandamento do formalismo que envolvia tanto a vida pública quando a vida privada no que diz respeito à sexualidade, ao papel dos gêneros, a relação entre pais e filhos etc. A organização social da década de 1960 se mostrava mais fluida, privilegiando o indivíduo no espaço público e dissolvendo funções tradicionais pautadas em velhas normas e instituições que antes limitavam a atuação na sociedade.

Para Setemy, a análise das revistas Manchete e Realidade permitiu demonstrar que a sociedade, ao longo da segunda metade do século XX, foi adotando formas reguladoras mais brandas e que permitiam uma maior liberdade individual que, entretanto, não significou o fim dos princípios morais. Além disso, é possível perceber que os problemas antes restritos a esfera particular da sociedade se tornou assunto das páginas das revistas e vendidos comercialmente. Ainda que as revistas tratassem de temas que antes eram tabus e relegados ao mundo das relações privadas, contribuíram para a manutenção da estrutura vigente com matérias conservadoras que, algumas vezes, apontavam qualidades do regime militar como a manutenção da ordem e a necessidade de regras rígidas para a manutenção da segurança nacional.

A pesquisa de Setemy consegue demonstrar a dialética presente na relação entre produção e consumo que resultou no desenvolvimento de uma cultura de massa no Brasil. Se por um lado, o regime incentivou o desenvolvimento da indústria editorial, seu aparato repressivo, apresentado pelo Ato Institucional nº 5, interferiu no diálogo entre cultura e sociedade. A dialética também se apresenta no estudo das matérias publicadas pelas revistas Manchete e Realidade no que se refere à mudança de costume e liberdades individuais, pois mesmo que as regras morais não se apresentassem com tanta rigidez e a discussão acerca de assuntos privados estivesse presente nas matérias, as estruturas de longa duração se mantinham presentes na sociedade, prova disso é o fato de que as matérias nem sempre aprovavam as novidades, principalmente na questão da sexualidade e das drogas.

A autora escolhe terminar sua análise com o decreto do Ato Institucional nº 5 porque acredita que o fim das liberdades individuais colocou um fim na liberdade de imprensa, abrindo margem para uma possibilidade de análise pós-AI-5 de como essas revistas, em especial a Manchete que se mantém ativa até os anos 2000, lidaram com a forte censura e se não conseguiram manter sua essência revolucionária de forma sutil, além da possibilidade de análise das revistas de grande circulação em relação com as de menor alcance no que tange a apresentação e discussão de temas tabus.

Setemy, ao olhar para o passado em um momento de ebulição cultural e censura política, permite questionar o presente. Embora não vivamos em um regime ditatorial, as estruturas morais que se apresentavam na década de 1960 continuam se manifestando no século XXI e buscando vias democráticas de censura. A autora cita a contundente crítica ao Museu de Arte Moderna e a posterior censura da exposição “História da Sexualidade” no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), mas podemos listar tantas outras ações governamentais que indicam a censura por parte do Estado, como a decisão judicial de remover do catálogo da plataforma de streaming Netflix o filme A primeira tentação de Cristo, especial de natal do grupo de humor Porta dos Fundos em que Jesus é retratado como homossexual. Tal ação demonstra que, não muito diferente da época ditatorial, a sociedade brasileira em pleno século XXI, apesar de parecer liberal, ainda mantém velhos tabus. Embora a democracia esteja consolidada, a censura permanece como um instrumento do conservadorismo e tem buscado, cada vez mais, atacar a educação e a cultura, como a ação de retirada dos pôsteres de filmes nacionais dos prédios da Ancine, a diminuição de verbas federais para a cultura e os projetos do Escola Sem Partido que têm se disseminado entre as regiões brasileiras. Essas ações sutis demonstram que o Estado está disposto a retaliar qualquer conduta que seja considerada oposta aos ideais conservadores do governo.

Marcela dos Santos Alves – Mestranda em História na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Câmpus de Assis. E-mail: [email protected]


SETEMY, Adriana. Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão. São Paulo: Letra e Voz, 2019. Resenha de: ALVES, Marcela dos Santos. A revolução dos costumes em tempos de censura: a Ditadura Militar e os periódicos Manchete e Realidade. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 11, n. 22, p. 252-255, jul./dez., 2019.

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Vivendo autobiograficamente: a construção de nossa identidade narrativa – EAKIN (FH)

EAKIN, Paul John. Vivendo autobiograficamente: a construção de nossa identidade narrativa. São Paulo: Letra e Voz, 2019. Resenha de: MOREIRA, Igor Lemos. Pensar a autobiografia entre história, identidade e narrativa. Faces da História, Assis, v.6, n.2, p.566-572, jul./dez., 2019.

As discussões a respeito das relações entre identidades e narrativas são recorrentes nas Ciências Humanas e Sociais. Desde a virada linguística no século XX, os estudos em diferentes áreas do conhecimento como a história, a crítica literária, a psicanálise e a antropologia têm procurado compreender estruturas, práticas e processos que envolvem o ato narrativo, destacando constantemente sua relação com a formação de identidades/identificações e representações. Publicada em 2019, a obra Vivendo autobiograficamente: A construção de nossa identidade narrativa, do pesquisador estadunidense Paul John Eakin, contribui para o aperfeiçoamento das discussões sobre identidades e narrativas em áreas de estudos como práticas biográficas, cultura escrita e narrações contemporâneas.

Paul John Eakin é graduado em História e Literatura pela Universidade de Harvard, onde também cursou seu mestrado e doutorado. Especialista na área de autobiografias, é professor emérito da Indiana University, onde ocupou a cadeira Ruth N. Halls de Inglês. A obra, publicada originalmente pela Cornell University, foi lançada no Brasil pela editora Letra e Voz, sendo a primeira tradução para português de um trabalho do autor. O livro está estruturado com uma introdução e quatro capítulos, apresentando os seguintes eixos centrais: os processos de narrativa sobre si; a consciência autobiográfica; a construção identitária por meio das narrativas; e autobiográfica, memória e rememoração.

O primeiro capítulo, “Falando sobre nós mesmos: as regras do jogo”, parte das discussões sobre as narrativas de “si” na contemporaneidade, ao analisar articulações analisando articulações entre autobiografias e mídias (com destaque a programas televisivos como Oprah). Partindo de vasta revisão bibliográfica e passando por autores como Oliver Sacks, Eakin discute e identifica alguns processos envolvidos nas narrativas autorreferênciais construtivas de cada indivíduo. Entre os temas que gravitam este capítulo estão: os efeitos/elaborações de acontecimentos atuantes na constituição das subjetividades; as “regras” que constituem o ato narrativo e a identidade narrativa, que para o autor é algo característico de todo sujeito; a ideia de efeito de verdade, permitindo ao(a) leitor(a) observar um breve panorama da densidade de discussões que perpassam o debate sobre autobiografias. Neste capítulo, a discussão realizada destaca que “[…] quando se trata de nossas identidades, a narrativa não é simplesmente sobre o eu, mas sim de maneira profunda, parte constituinte do eu.” (EAKIN, 2019, p. 18, grifo do autor)  A respeito desta discussão é interessante apontar que, na perspectiva do autor, a construção autobiográfica é um processo que lida com diferentes dimensões temporais de passados e experiências vividas, para além de ser um ato sempre do “tempo presente”, ou seja, do momento de elaboração da narrativa. Essa construção no presente é o que manifesta, ou representa, as identidades dos sujeitos que a constituem a partir de suas vivências, memórias, lembranças e projeções de futuro. Dentro desta chave é possível aproximar os atos narrativos da elaboração de acontecimentos (narração de fatos) que rompem com as temporalidades, sendo uma questão em comum entre o autor e as discussões de François Dosse (2013). Para o historiador francês, a elaboração de um acontecimento é sempre uma produção atual, do momento de comunicação, que articula uma forma de significação acerca da experiência, sem a qual o evento não existiria.

Eakin (2019) aproxima-se dessa leitura ao considerar que esses processos, muitas vezes, levam a incluir experiências coletivas, que nem sempre são frutos de vivências pessoais. Para exemplificar, o autor destaca o 11 de setembro de 2001, uma vez que inaugurou a possibilidade de ter civis como personagens do acontecimento, o que atesta “o desejo de pessoas comuns enxergarem por si mesmas o que aconteceu naquele dia” (EAKIN, 2019, p. 20). Ao analisar esse evento, Dosse (2013) observa o papel das mídias que fabricaram instantaneamente o acontecimento, ao mesmo tempo que o historicizavam. Nesse caso, Dosse e Eakin concordam que um acontecimento testemunhado, direta ou indiretamente, é fundamental na elaboração das identificações, relação possível através das narrativas que permitem ao sujeito inserir-se em contextos que não necessariamente tenha vivido ou experienciado diretamente.

Outro elemento central no capítulo, e que perpassa o restante da obra, é a noção de identidade narrativa e sua relação com a construção de histórias de vida e trajetórias. Para o autor, a identidade, elaborada a partir de identificações, é fruto de construções narrativas entendidas “[…] de um modo inescapável e profundo, elas são o que somos, pelo menos enquanto atores posicionados dentro do sistema de identidade narrativa que estrutura nossos arranjos sociais atuais.” (EAKIN, 2019, p. 10, grifo do autor). Nesta interpretação, a identidade narrativa envolve a estruturação de uma forma de construção autobiográfica que molda o sujeito, reestruturando o passado em uma perspectiva linear e progressiva dos fatos.

A perspectiva do autor enquadra-se no fato de a identidade narrativa ser acumuladora de mais elementos com o passar dos anos, resultado de uma construção da história dos sujeitos, constantemente resignificada. Esse processo estrutura uma narração intencionalmente progressiva sobre a trajetória do sujeito, sempre promovida pelo individualismo. Eakin (2019) destaca que as falhas na memória, vistas como esquecimentos, impactam diretamente na constituição dos relatos autobiográficos, fragilizando a construção dessa identidade narrativa. Essa relação pode ser vista dentro da noção de ipseidade de Paul Ricouer (1991), na qual os sujeitos moldam constantemente o passado de acordo com aquilo que os jogos entre memória e esquecimento permitem e não apenas o que a experiência vivida ou apreendida possibilita relatar1.

No capítulo seguinte, intitulado “Consciência autobiográfica: corpo, cérebro, eu e narrativa”, o autor analisa produções literárias e autobiográficas nas últimas décadas, discutindo como tem se elaborado diferentes formas de identidade narrativa no tempo. Partindo da compreensão de que tais obras são consumidas constantemente, na medida em que existe um desejo das sociedades contemporâneas pela identificação com um outro e pelo consumo de memórias, o autor propõe entender o lugar da ficção e da história no ato de “relatar a si mesmo”. Ao afirmar que “[…] a memória e a imaginação conspiram para reconstruir a verdade do passado” (EAKIN, 2019, p. 76), Eakin destaca que as memórias são perpassadas constantemente pela tensão entre ficção, verossimilhança e “verdade”.

Nos estudos historiográficos sobre autobiografias2 é importante, muito mais que a verdade dos fatos narrados, compreender os diferentes modos como indivíduos pensaram e sentiram os fatos de suas vidas. Enquanto o historiador e/ou biógrafo finda um compromisso com os fatos ocorridos ao narrar uma trajetória, o autobiógrafo tem sua lealdade associada ao “eu”/sujeito construído. Deste modo, a autobiografia apresenta-se como espaço de tensões e o historiador e/ou pesquisador dedicado ao seu estudo necessita de atenção redobrada para observar que a principal relação não se dá na verossimilhança, mas sim com o efeito da linguagem que representa um sujeito, que almeja determinado fim. Um elemento central para compreender esse efeito de linguagem é a noção de corpo, pois não somente é o espaço em que o “euhabita, como também é o que permite o indivíduo sentir e experienciar a vida.

Nesse sentido, é possível perceber que o principal argumento do autor centra-se na ideia de que a autobiografia está necessariamente associada à espetaculização dos indivíduos, ou seja, seu local é não apenas o presente, mas também o seu destinatário, “o outro”. Artiéres (1998), ao debater os processos de arquivamento do eu nas sociedades contemporâneas por meio das práticas de guarda e constituição de acervos pessoais, problematiza essa questão de maneira semelhante a Eakin. Ambos os autores, ao discutirem os processos autobiográficos, tencionam as relações temporais para além apenas de destacar o ato de escrita no presente ou sua intencionalidade futura. Dentro dessa perspectiva, construir uma autobiografia é elaborar uma narrativa sobre si e sobre um tempo não linear, apesar de sua sistematização geralmente ser, como forma de orientação e constituição das identidades.

O terceiro capítulo, “Trabalho identitário: pessoas fabricando histórias”, inicia uma segunda parte do livro no qual o autor procura construir breves relatos de estudos de caso. É possível perceber que Eakin divide seus estudos de caso em torno de dois grupos principais de documentações: (1) Obras autobiográficas e literárias de grande recepção, publicadas na idade moderna e na contemporaneidade; (2) Relatos de vidas cotidianas e de pessoas “ordinárias”. Para o primeiro caso de estudo, o autor retoma relatos autobiográficos desde o século XVIII e XIX, como os depoimentos recolhidos por Henry Mayhew (1881-1841), para debater as diferentes operações e processos que envolvem as autobiografias nos séculos XX e XXI.

Tomando o final da Idade Moderna francesa como ponto de partida, o autor historiciza a emergência das práticas de relatar a si mesmo e das autobiografias. Para Eakin (2019), apesar de os relatos escritos serem predominantemente ligados às elites, ainda assim é possível mapear a construção de narrativas autobiográficas através de leituras a contrapelo, como fez Mayhew. Embrenhando-se pelo que pode ser considerado um exercício de busca pela compreensão dos estratos de tempo (KOSELLECK, 2014), apesar de essa dessa relação não ser mencionada, Paul Eakin afirma que esse processo foi intensificado com a emergência dos meios digitais, criando sociedades cada vez mais narradoras de si. Redes sociais, a exemplo do Facebook e o MySpace foram fundamentais para lançar a centelha que favorece a alteração da identidade, uma vez que propiciam a mudança não somente de construções narrativas, mas também cria-se a necessidade constante do on-line, o que causa profunda sensação de aceleração do tempo e a consequente efemeridade da elaboração de uma identidade narrativa.

Nesse capítulo, o segundo conjunto de fontes utilizadas são os relatos do cotidiano de sujeitos considerados, pelo autor, como “comuns” ou “ordinários”. Diferentemente de uma análise exclusiva sobre como o cotidiano é narrado por esses sujeitos a partir dos livros autobiográficos, Eakin (2019, p. 114) afirma que seu interesse é compreender que a “atividade de construir eus e histórias de vida consiste ainda em mais uma prática cotidiana”, perspectiva elaborada através dos estudos de Michel de Certeau.

Michel de Certeau (2009) entende que o cotidiano é constantemente elaborado por meio de dinâmicas entre estruturas socioculturais e práticas individuais e (re)inventivas. Eakin analisa de que modo as práticas de relatar o cotidiano são elaboradas, dimensionando o consumo destas narrativas. Uma das ocorrências analisadas, e talvez o mais intrigante dos estudos de caso, é o do próprio pai do pesquisador, no qual, para além de pensar nos impactos da figura paterna na construção da identidade narrativa, discute de que maneira ele o influenciou a se interessar por autobiografias. Partindo dessa relação, o autor discute suas próprias narrativas autobiográficas, interrogando-se sobre a maneira como “modelos” de histórias e os relacionamentos interpessoais influenciam na constituição de identidades.

A discussão sobre o pai do autor prossegue no capítulo seguinte da obra, quando Eakin passa a realizar um relato autobiográfico. Em “Vivendo autobiograficamente”, capítulo que dá nome à obra, o autor mergulha em uma escrita autobiográfica sobre si e sua identidade narrativa. Se até essa altura do livro houve a discussão dos aspectos teóricos e metodológicos, bem como a realização de estudos de caso e a historicização de algumas práticas, o último capítulo apresenta o autor problematizando seu exercício cotidiano. Em sua leitura é possível perceber uma provocação intencional a quem “[…] se propõe a usar esse material como fonte para uma análise social deve perguntar […] de onde é que provem o entendimento de um indivíduo acerca do eu e da história de vida” (EAKIN, 2019, p. 130). Nesse sentido, para analisar autobiografias, Eakin diz que a experiência é fundamental para compreender suas práticas.

O autor utiliza a sua trajetória para refletir sobre o perfil adaptativo da história, dependendo sempre do narrador/elaborador, seu contexto e sua intencionalidade. Através dessa perspectiva, Eakin (2019, p. 158) defende que “[…] o discurso autobiográfico tem um papel decisivo no regime de responsabilização social que rege nossas vidas, e, nesse sentido, pode-se dizer que nossas identidades são socialmente construídas e reguladas”. Dentro dessa constatação é perceptível a centralidade do eu e de suas intenções, em que se pode considerar a narrativa como instrumento de legitimação de poder e de um determinado status ou lugar social no qual seu comunicante se insere. Essa questão pode ser interpretada através de outras perspectivas contemporâneas das ciências humanas que não citadas por Eakin, como, por exemplo, os conceitos de lócus de enunciação (GLISSANT, 2011). Nessa articulação, não apenas o passado mobilizado no presente da narração, mas também a categoria e diferentes noções de futuro são aspectos centrais.

É particularmente interessante observar que, ao chegar ao último capítulo da obra, o(a) leitor(a) tenha sido conduzido a perceber a forma de organização dos temas intensamente problematizados. Partindo inicialmente de uma discussão teórica sobre as questões autobiográficas, o autor procurou definir seus conceitos norteadores, abordando também suas historicidades, para aplicá-los em estudos de caso e, por fim, produzir sua própria identidade narrativa. Tal estratégia cria um espaço para que o(a) leitor(a) mobilize as discussões do próprio teórico, percebendo os processos apontados e também sua tese principal: a de que é impossível fugir da narrativa, pois a elaboração de identidades é um processo de construção de histórias no presente a partir de suas relações com o tempo.

Referências

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 11, n. 21, p. 9-34, jan./jun. 1998.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2006. p. 183-191.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

DOSSE, François. Renascimento do acontecimento. São Paulo: EdUNESP, 2013.

GLISSANT, Édouard. Teorias. In: GLISSANT, Édouard (Org.). Poética da relação. Portugal: Porto Editora, 2011. p. 127-170.

KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre a História. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-RJ, 2014.

RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991.

Notas

1 Essa discussão encontra-se no texto de Pierre Bourdieu (2006) sobre a “Ilusão Biográfica”, conceito mobilizado pelo sociólogo para alertar aos pesquisadores na área de biografias e trajetórias, assim como os biógrafos, a respeito dos perigos da linearidade e das construções teleológicas da narrativa de vida de sujeitos. Em função da proximidade com os indivíduos biografados, e o processo de pesquisa que permite ao biógrafo conhecer na maioria dos casos o desfecho de sua obra antes mesmo de iniciar sua narrativa, Bourdieu reafirma a necessidade de problematização das trajetórias, compreendendo os processos, percursos e enfrentamentos que marcam a vida dos indivíduos.

Igor Lemos Moreira –  Doutorando em História pelo programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH-UDESC), na linha de pesquisa Linguagens e Identificações. Bolsista PROMOP/UDESC, estado de Santa Catarina (SC), Brasil. Mestre e Graduado em História (Licenciatura) pela mesma instituição. Integrante do Laboratório de Imagem e Som. E-mail: [email protected].

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História oral e história das mulheres: rompendo silenciamentos – ROVAL (RTA)

ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Org.). História oral e história das mulheres: rompendo silenciamentos. São Paulo: Letra e Voz, 2017. Resenha de: MOUSINHO, Amanda Arrais. Uma história oral narrada por vozes femininas na luta contra as hierarquias de gênero. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.26, p.630-634, jan./abr., 2019.

“História oral e história das mulheres: Rompendo silenciamentos” é um livro composto por estudos baseados nas vidas de mulheres de diferentes origens territoriais, sociais, culturais e políticas e suas relações com os homens, com o propósito de refletir sobre essas experiências femininas diante das mais diversas práticas culturais que perpassam o cotidiano. Segundo a organizadora da obra, Marta Gouveia de Oliveira Rovai, essas mulheres detêm a possibilidade de se manifestar, por intermédio da história oral, contra toda forma de opressão, indiferença e esquecimento com o objetivo de publicizar e enfrentar dores na luta contra o silenciamento.

O livro tem início com uma entrevista realizada com Rachel Soihet no intuito de contar a trajetória da estudiosa de gênero e história das mulheres. Realizada por Natália de Santanna Guerellus, a entrevista descreve o percurso pessoal e profissional de Rachel e narra como o fato de as mulheres ocuparem espaços separados nas festas e comporem rodas de conversa cujos temas eram casa e filhos – enquanto homens debatiam temas como política e negócios – acabou por despertar seu interesse sobre o estudo da divisão de papéis entre homens e mulheres.

Mais adiante, a pesquisadora tenta compreender de que forma a segregação e a opressão sofridas pelas mulheres prejudicavam suas potencialidades intelectuais e profissionais, e também defende a complementariedade dos estudos de gênero e da história das mulheres. A entrevistada se denomina feminista ao buscar direitos para as mulheres de modo a constituir uma sociedade igualitária com a qual contribui em termos intelectuais, por exemplo, fazendo uso da história oral para trazer à tona temas que não foram explorados nas décadas anteriores e resgatar, através de memórias, uma história até então não registrada.

O restante do livro é dividido em três partes, sendo cada parte composta por dois capítulos. A primeira parte, “Narrativa de militância feminina: Desvelando relações hierarquizadas de gênero”, debate a relação entre gênero, feminismo e ditadura buscando compreender de que forma as relações de gênero afetam a narrativa e a trajetórias de mulheres que participaram de algum tipo de militância. No primeiro capítulo, “Viver o gênero na clandestinidade”, Joana Maria Pedro aborda a experiência de mulheres militantes que vivenciaram a clandestinidade. A autora faz uso da história oral para entrevistar mulheres que, após se conectarem às organizações políticas, tiveram que utilizar a clandestinidade como recurso para fugir da repressão no período da ditadura no Brasil. Durante as entrevistas, as memórias foram utilizadas como fonte e, por mais que algumas mulheres tenham exercido protagonismo político ao desempenhar cargos de destaque, o que chama a atenção é o fato de algumas das mulheres entrevistadas se colocarem à sombra de seus parceiros ao desqualificarem a própria militância, o que reforça a hierarquia de gênero vigente e minimiza a atuação feminina nos espaços públicos e políticos que são tidos como naturalmente masculinos. Segundo Joana Pedro, essa autodesqualificação da mulher militante reitera que a memória é gendrada e, por consequência, a forma como histórias são narradas e rememoradas também o são, o que acaba por fazer com que o reconhecimento das mulheres na condição de sujeitos históricos e protagonistas seja atravessado por relações de gênero.

No segundo capítulo, intitulado “Ditadura civil-militar e relações de gênero: Uma análise das experiências de mulheres na guerrilha urbana no eixo Brasília-Goiânia”, Eloísa Pereira Barroso e Clerismar Aparecido Longo entrevistam mulheres que militaram na organização de guerrilheiras urbanas que se apresentou como resposta à repressão ditatorial. Nesse caso, a entrevista oral visou entender a condição gendrada da mulher nesse movimento, abarcando hierarquias e estratégias de poder, bem como compreender como os discursos dos sujeitos envolvidos em projetos políticos de esquerda estão condicionados a configurações de gênero.

Já a segunda parte do livro, “Experiências desviantes: a ousadia de ser mulher em contextos autoritários”, tem início com o capítulo “O herói e a deslocada: História oral, gênero, ditadura, emoções”. Escrito por Ana Maria Veiga, o estudo explora a vida de Valdir Alves e Elaine Borges: jornalistas que exerceram a profissão durante a censura da ditadura civil-militar. A autora frisa que apesar de ambos os sujeitos terem tido formação profissional semelhante, o gênero feminino e masculino – opostos e hierarquizados – foram definitivos na construção de uma experiência divergente separada por um abismo do binarismo, de forma que Valdir ficou conhecido como herói e mito, enquanto Elaine não ganhou o mesmo título, mas sim o de “incendiária do cenário político” (2017, p. 92), que poderia prejudicar a imagem dos jornalistas por gostar de criar confusão. E é por isso que Ana Maria Veiga nomeia Elaine como “deslocada”, pelo fato de a jornalista ter se destacado em um meio profissional predominantemente masculino e fugir do suposto papel tradicional da mulher.

No segundo capítulo, “Médica, resistente e condessa: A história da militante potiguar Laly Carneiro Meignan”, a autora Maria Cláudia Badan Ribeiro narra a vida da primeira mulher potiguar a ser presa por motivos políticos devido à sua militância ir de encontro com o coronelismo, as oligarquias rurais e a ala conservadora do Rio Grande do Norte. Laly, uma mulher nordestina, médica, militante, exilada e professora consagrada no exterior, faz parte de uma resistência construída coletivamente que utilizava como instrumento principal a educação popular.

Na terceira e última parte do livro, “O privado como dimensão pública: Rompendo territórios”, as autoras exploram temas que abarcam a naturalização das funções sociais das mulheres em uma sociedade patriarcal. No primeiro capítulo, “Ser mãe ou não ser: Afinal, qual é a questão? A história oral desvendando o mito do amor materno”, Marcela Boni Evangelista entrevista dois grupos de mulheres que vivenciaram a experiência da maternidade na adversidade. Primeiramente, a autora conversou com mulheres-mães de jovens envolvidos com atos infracionais que foram privados de liberdade; e em um segundo momento, Marcela conversou com mulheres que passaram pela experiência do aborto induzido, o que evidencia a maternidade enquanto uma escolha. Em ambas as situações, a história oral serviu como instrumento para dar voz a essas mulheres a fim de problematizar a ideia do mito do amor materno, bem como a imposição da obrigatoriedade da maternidade para que a mulher alcance a plenitude. Nesses dois casos, a história oral aproxima o leitor das realidades obscurecidas pelas quais passam essas mulheres diante de uma função social a elas atrelada e que é há muito tempo naturalizada.

No capítulo final, “Romper o silenciamento: Narrativas femininas sobre violência de gênero e desvitimização”, Marta Gouveia de Oliveira Rovai e Naira de Assis Castelo Branco relatam casos de mulheres piauienses, moradoras da Parnaíba, que sofreram violência de gênero no período de 1995 a 2014. Segundo as autoras, ouvir as vítimas de violência simboliza o incentivo a uma reflexão acerca das relações entre domínio público e privado e a tentativa de desconstruir a ideia de que a violação dos direitos no espaço privado é um assunto conjugal. Entretanto, é primordial ressaltar que, apesar da violência sofrida, as mulheres não podem ser reduzidas ao papel de vítima, logo, o papel da história oral, nesse caso, é justamente o de fazer com que esses testemunhos atinjam a esfera pública a fim de criar medidas protetivas e desnaturalizar violências e hierarquias de gênero.

No decorrer dos capítulos desse livro, o que se percebe é a necessidade de assegurar às mulheres o direito de contar suas próprias experiências de modo que suas histórias não sejam reduzidas a uma narrativa terceirizada contada sob a ótica masculina. Em vista disso, a história oral funciona como instrumento metodológico ao dialogar diretamente com essas mulheres e permitir que suas experiências sejam publicizadas sem a mediação de instituições atravessadas por uma cultura permeada por práticas e discursos androcêntricos.

Amanda Arrais Mousinho Mestranda em Estudos Culturais na Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP – BRASIL E-mail: [email protected].

O que pode a biografia – AVELAR; SCHMIDT (PH)

AVELAR, Alexandre de Sá; SCHMIDT, Benito Bisso (Orgs.). O que pode a biografia. São Paulo: Letra e Voz, 2018. Resenha de: MOREIRA, Igor Lemos. Existem limites para a biografia? Projeto História, São Paulo, v.64, pp. 354-361, Jan.-Abr., 2019.

Aguardada desde a publicação de Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica (2013), a nova coletânea de textos organizada por Alexandre de Sá Avelar e Benito Bisso Schmidt a respeito do gênero biográfico foi lançada em 2018. Publicado pela editora Letra e Voz, o livro intitulado O que pode a biografia segue a mesma proposta da primeira obra: a reunião de textos téorico-metodológicos e relatos de experiências sobre a produção de biografias. Esse processo é perceptível, inclusive, nas diferenças de estruturação de ambas as obras. Enquanto a coletânea de 2013 foi organizada em três eixos reunindo onze autores (além da apresentação feita por Marieta Ferreira), a publicação de 2018 é dividida apenas em dois, focando, através de doze capítulos, nos elementos teóricos e nas práticas.

Iniciando com uma concisa apresentação, que faz referência a própria continuidade do trabalho iniciado em 2013, os organizadores afirmam que o livro nasce em um contexto de sedução pelo gênero biográfico no país, aumentando o número de interessados e convocando novas reflexões no campo das humanidades e das letras. Em seguida, são apresentados cinco textos que debatem a biografia a partir de seus “horizontes teórico-metodológicos”. Em “Contar vidas em uma época presentista: A polêmica sobre a autorização prévia”, Benito Schmidt retoma o tema da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida em 2015 pela ANEL, onde se previa a necessidade de anuência prévia concedida pelo biografado ou seus familiares ao escritor/pesquisador. Partindo da ADI e de casos brasileiros, como a polêmica envolvendo o historiador Paulo Cesar de Araújo1, o autor reflete sobre os regimes de historicidade, com ênfase no presentismo (HARTOG, 2013), e nas disputas de memórias que cercam o tema. Em seu texto, Schmidt pensa a constituição do campo biográfico na historiografia, entendendo as múltiplas temporalidades que transitam dentro do processo que chamou de “a biografia em julgamento”.

Em Os usos da biografia pela micro-história italiana: interdependência, biografias coletivas e network analysis, Deivy Ferreira Carneiro aborda as relações entre micro-história e biografia sob a chave de análise das experiências, das relações e do contexto social. Partindo da micro-história, o autor procura entender os sujeitos biografados como relacionais, pertencentes a determinados grupos e redes o que aproximaria a biografia da micro-história. Tal processo também rompe com a própria certeza da vida dos sujeitos biografados e com a ideia da linearidade das biografias produzidas predominantemente até o século XX. Segundo o autor, “a maior contribuição trazida pelo debate microanalítico acerca da biografia, a meu ver, foi trazer à tona um indivíduo cheio de incertezas que, na verdade, não tem uma percepção clara de si mesmo. (CARNEIRO, 2018. p. 56).

Maria da Glória de Oliveira, em Para além de uma ilusão: indivíduo, tempo e narrativa biográfica, dá seguimento à temática do sujeito, pensando a construção das trajetórias através dos processos de mediação narrativa, partindo de Pierre Nora. Historicizando a própria biografia, a historiadora tece sua reflexão acerca do papel da construção narrativa, especialmente da intriga, como maneira de “confrontar o indivíduo com a experiência do tempo” (OLIVEIRA, 2018. p. 61). Retomando também a noção de ilusão biográfica se destaca a compreensão que uma trajetória, e a experiência dos biografados, ocorre através não apenas de sua inserção contextual, mas igualmente da configuração do ato narrativo pelo qual essas experiências são materializadas.

A temática da narrativa é continuada por Mary Del Priore, autora de Biografia, biografados: uma janela para a história. Através também de uma historicização do gênero, Del Priore problematiza como os próprios historiadores opinaram e se relacionaram com as biografias. Em suas análises a autora reflete sobre as relações entre História e Literatura nesse processo, além de provocar o leitor a refletir sobre a própria disciplina e o lugar social e narrativo dos historiadores.

O último texto da seção, “Histórias de vida: um lugar de resistência para a reportagem”, é assinado por Rose Silveira. Destacando a distinção entre reportagem e notícia, a autora discute as possibilidades de pensar o livro-reportagem como uma forma de escrita biográfica. Aproximando História e Comunicação, o capítulo pontua elementos centrais da relação, abrindo espaço para reflexão sobre outras formas de produção de biografias no presente por não-historiadores. Como a autora destaca, esse processo ocorre através da noção de operação historiográfica a partir de Michel de Certeau. Por fim, visando exemplificar seus argumentos, Silveira analisa as biografias: A vida imortal de Henrietta Lacks (Rebecca Skloot) e Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo (2012).

A segunda parte do livro, que reúne sete textos que apresentam como os enfoques teórico-metodológicos discutidos anteriormente perpassam as “experiências de pesquisa e leitura” de biografias. O texto que abre a sessão, assinado por Alexandre de Sá Avelar, discute a experiência de escrita de uma vida a partir da ideia de trajetória, o que foge do perfil totalizante da biografia. Procurando repensar o processo de elaboração de sua tese de doutorado defendida em 2006, o autor, em O reencontro com o general e o meu labirinto: sobre a releitura de uma tese, reflete sobre os meandros da pesquisa, suas motivações e principalmente os processos de delimitação do enfoque teórico. Avelar destaca que apesar de focalizar na trajetória de um individuo, isso não o excluiu “das preocupações propriamente biográficas” (AVELAR, 2018. p. 131). Sua noção de trajetória não se opõe à de biografia. Trata-se de uma forma da compreensão de um personagem através de uma proposta especifica ou um fio condutor em especial, que em seu caso foi a leitura da produção de Macedo Soares como modo de entendimento da estabilização dos processos de consolidação do capitalismo industrial brasileiro.

Dando seguimento ao relato de Avelar, Francisco Martinho aborda sua relação com o português Marcello Caetano, pensando os percursos que o levaram a produzir uma biografia política e intelectual sobre essa figura. Marcello Caetano: sobre a travessia de uma pesquisa é um relato de pesquisa primoroso no sentido que demonstra não apenas o processo de elaboração da biografia, mas compartilha as angústias e os desafios desse gênero de produção, especialmente com sujeitos que viveram em outros países que não o de origem do biografo. Abordando os limites e dificuldades da pesquisa, inclusive de acesso a documentações no exterior, Martinho lembra ao leitor a importância de se reconhecer a impossibilidade de apreensão total da vida de um sujeito, principalmente de maneira linear.

Em seguida, o brasilianista James Green nos presenteia com um relato sobre os bastidores de sua obra recentemente publicada pela Editora Civilização Brasileira. Green faz uma analogia direta aos próprios dilemas que perpassam a segunda seção da coletânea ao intitular seu texto como “Herbert Daniel: revolucionário e gay, ou é possível captar a essência de uma vida tão extraordinária”. Pensando a relação biografo e biografado, o historiador compartilha dilemas muito semelhantes aos dos dois textos anteriores, mas aponta outro elemento: a proximidade temporal e pessoal com o tema, marcada especialmente pelo potencial uso da história oral. Narrando, por exemplo, suas tentativas de diálogo com parentes de Daniel, o autor destaca como um personagem é construído, através dos rastros e das memórias, pelo próprio pesquisador apenas no decorrer da própria pesquisa.

A questão dos rastros é retomada em seguida por Jorge Ferreira em Escrevendo João Goulart. Autor de uma das obras de não ficção mais vendidas de 2011 (FERREIRA, 2016), o pesquisador destaca seus processos de pesquisa, assim como os acasos e momentos inesperados de acesso da documentação. Apesar dos pontos de contato com os relatos anteriores, Ferreira atenta algumas questões próprias de pesquisadores da área de história política e econômica. Nesse sentido, uma das principais contribuições de seu texto é reforçar que o sujeito é, não apenas relacional com seu contexto, mas também “conformado por estruturas econômicas ou pelas ideias de classe social” (FERREIRA, 2018. p. 182).

A temática da autobiografia é discutida nos dois textos seguintes da coletânea. Laura de Mello e Souza, em “Vitório Alfieri, a vida e a história”, mergulha em suas memórias com Vitório Alfieri e sua obra autobiográfica Vita produzindo um ensaio sobre a trajetória e o desenvolvimento intelectual de um dos autores que mais a intrigaram. Nesse sentido, mais do que pensar o procedimento de uma biografia escrita por ela, Mello e Souza reflete também sobre os processos de construção autobiográfica do escritor do século XIX.

Em seguida, “autobiografia, gênero e escrita de si: nos bastidores da pesquisa”, de Margareth Rago, constrói uma reflexão autobiográfica de seu envolvimento com o tema das autobiografias apresentando ao leitor suas inspirações, motivações, estratégias e referências. Seu capítulo propõem ao leitor compreender as tecituras da composição dos sujeitos, que nunca se veem totalmente excluídos de processos e estruturas maiores como o gênero, ou ainda a dimensão coletiva existente na própria produção de si.

O último texto da seção é, certamente, um dos mais intrigantes. Temístocles Cezar, em “Bartleby e Nulisseu: a arte de contar histórias de vida sem biografia”, brinca em um eterno jogo entre realidade e ficção ao narrar a história de Nilusseu, uma jovem estudante de história encantada com Bartleby, personagem do conto de Herman Melville, publicado em 1853. Em uma trama instigante e reflexiva, permeada por referências a teóricos como Marx, Hegel, Foucault, assim como estudiosos das teorias da biografia como Sabina Loriga, Cezar provoca o leitor a refletir sobre as possibilidades de escrever uma história de vida sem fazer biografia.

Colocando sob sua mira a própria ideia dos indivíduos serem ou não únicos, o autor nos instiga a refletir sobre quem determina essa individualidade e protagonismo dos sujeitos. Mais que isso sua trama possibilita pensar a ideia de ilusão biográfica, ao intrigar o leitor com a jovem Nilusseu que se confunde ao seu próprio mundo de leituras.

A pergunta inevitável que marca esse capítulo – e penso não ser a toa os organizadores o terem colocado como o último texto do volume –, seria: é possível contar histórias de vida sem biografia, se afinal existem histórias no plural? Penso que a estruturação da obra caminha para esse ponto central. A coletânea, O que pode a biografia não fornece um manual prático sobre como trabalhar ou pesquisar o gênero. Ao mesmo tempo, sua intenção também não é o que o título poderia sugerir: um manifesto acerca das regras e diretrizes do campo. A obra organizada por Avelar e Schmidt convoca a uma reflexão sobre um campo aberto e de fronteiras móveis.

Apesar das conexões, cada texto elencado apresenta pontos de vista únicos sobre o fazer biográfico. “Pode a micro-história dialogar com a biografia? São campos iguais?” “Somente historiadores produzem biografias?” “Não seria toda forma de escrita uma auto-biografia?” “Biografia e trajetória são campos distintos?” são apenas algumas das reflexões provocadas, não tendo por objetivo fornecer respostas definitivas. Passando da teoria a prática, os textos demonstram a impossibilidade do próprio pesquisador ver esses dois campos como dimensões dissociadas. Em momentos de crise da história e de consolidação e crescimento da história pública O que pode a biografia é um sopro renovador ao campo.

Referências

AVELAR, Alexandre de Sá; SCHMIDT, Benito Bisso (Orgs.). Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica. São Paulo (SP): Letra e Voz, 2012.

FERREIRA, Jorge. De volta ao público: João Goulart, uma biografia. MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Janiele Rabêlo de; SANTIAGO, Ricardo (Org). História Pública no Brasil: Sentidos e Intinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016. p. 121-131.

HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e Experiências do Tempo. Belo Horizonte, Mg: Autêntica, 2014.

OLIVEIRA, Márcia Ramos de Oliveira. Reflexões sobre o gênero biográfico: literatura, ilusão e disputas de memória. In: GONÇALVES, Janice (Org.) História do Tempo Presente: Oralidade, memória, mídia. Itajaí: Casa Aberta, 2016. p. 101-116.

Nota

1 Em um texto recente, a pesquisadora Márcia Ramos de Oliveira (2016), também discutiu os embates em torno do gênero biográfico ocorridos na sociedade brasileira a partir de 2015. Apesar de ambos focalizarem temáticas semelhantes, a autora destaca principalmente os diferentes embates de memória, ligados a narrativa, focando especificamente no caso de Paulo Cesar de Araújo.

Igor Lemos Moreira – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Bolsista CAPES-DS e Integrante do Laboratório de Imagem e Som. E-mail: [email protected]. Número do ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6353-7540. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

Memórias e combates: uma história oral do anticomunismo católico no Rio Grande do Sul – RODEGHERO (HO)

RODEGHERO, Carla Simone. Memórias e combates: uma história oral do anticomunismo católico no Rio Grande do Sul. São Paulo: Letra e Voz, 2017. 264 p. Resenha de: MONTYSUMA, Marcos Fábio Freire. Uma história do medo: o anticomunismo católico no Rio Grande do Sul. História Oral, v. 21, n. 2, p. 177-180, jul./dez. 2018.

Antes de me dedicar ao conteúdo principal da obra Memórias e combates: uma história oral do anticomunismo católico no Rio Grande do Sul, chamo a atenção para a peculiaridade de sua capa. Criada e diagramada pelo Estúdio Xlack, apresenta uma foto (de 1941) que retrata o dormitório do Seminário de Gravataí, com aproximadamente treze jovens em posição de sentido entre as camas. A capa é composta em preto e branco, sob película plástica transparente, vazada pelo símbolo do comunismo – foice e martelo cruzados. Os jovens que essa imagem dá a ver estão entre aqueles que seriam preparados para retransmitir a mensagem de combate ao comunismo.

Carla Rodeghero inicialmente apresenta as circunstâncias sob as quais a obra foi concebida e executada, e expõe o conteúdo que ocupa lugar central na sua investigação: o anticomunismo praticado pela igreja católica. Ele consiste em “uma postura católica que teve abrangência espaço-temporal bem mais ampla do que tal decorre – se manifesta em situações concretas e em temas relacionados ao período em questão” (p. 21). A seguir, demonstra como se processou a “construção de um imaginário [que] […] demarcava o campo dos ‘inimigos’ do catolicismo e da civilização ocidental, inimigos representados por […] comunistas ou [o que era] encarado como comunismo” (p. 21).

A obra abrange o período que se estende de 1945 a 1964, e está dividida em cinco capítulos. O primeiro trata das fontes orais – as perspectivas teóri­cas e metodológicas em que se apoia a construção de fontes –, e discute como ocorre a recepção e reprodução dos discursos anticomunistas, percorrendo a literatura relativa ao tema. O segundo capítulo discute aspectos relacionados à Espanha e México, em cujos territórios ocorreram embates envolvendo a igreja e suas posturas concernentes ao comunismo – as lembranças externam conteúdos relacionados às recepções da campanha anticomunista. O ter­ceiro capítulo, Esse tal comunismo, aborda como a mensagem sobre “comu­nismo” ou “anticomunismo” é discutida num grupo de leigos católicos no Rio Grande do Sul – suas lembranças e seus interlocutores. O quarto capí­tulo aponta os conteúdos interpretados pelos líderes católicos como ameaças comunistas e a sua transmissão aos fiéis e aos católicos em formação clerical. O quinto capítulo deslinda os combates entre católicos e comunistas, mais precisamente entre a Liga Eleitoral Católica (LEC) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Carla Rodeghero se preocupa em historicizar brevemente os partidos comunistas PCB e PCdoB, atuantes no Brasil, para que seus leitores possam compreender a temática do comunismo naquele contexto.

A historiadora inicia a revisão literária com Rodrigo Patto de Sá Motta, que pesquisa o anticomunismo na história brasileira. Motta indica que ocor­reram ondas anticomunistas no Brasil, e registra dois momentos de abran­gência, de 1935 a 1937 e de 1961 a 1964. O anticomunismo esteve presente de modo mais contundente nos meios empresariais, católicos e militares, e também vicejou na grande imprensa.

Rodeghero também recorre ao estudo de Dulce Pandolfi, para quem o PCB, no governo Goulart, desempenhava destacado papel político. A res­peito das preocupações do empresariado em combater o comunismo, dialoga com a brasilianista Bárbara Weinstein. Essa pesquisadora pontua a criação do chamado Sistema S, Serviço Social da Indústria (Sesi) e Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), na qual é possível distinguir preocupações que podem ser entendidas como de prevenção ao comunismo. Dos trabalhos de René Dreifuss, a autora destaca certo modus operandi de organismos como o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que promoviam campanhas de desestabilização do governo Goulart, com o fim de criar caos econômico e político. Aponta que Carlos Fico encontrou vasto material produzido pelos órgãos de segu­rança do regime civil-militar de 1964 a 1985, escritos que expressavam pre­conceito ao se reportarem aos autores de teatro, jornalistas, cinema, TV, clas­sificando o ambiente cultural e de notícias como dominados por comunistas. Rodeghero salienta ainda o trabalho de Carla Luciana Silva, que examina políticas anticomunistas em outros períodos.

Carla Rodeghero sinaliza que as ondas de combate ao comunismo são muito mais dinâmicas e extensas que o apontado inicialmente, donde se pode interpretar que o chamado anticomunismo seria uma condição permanente na vida política brasileira. O estudo é muito bem-fundamentado teórica e metodologicamente. Através da história cultural, deslinda o modo como seus entrevistados agiam, movimentando-se “entre as maneiras de representar o que é comunismo e formas de combatê-lo” (p. 35). Rodeghero ancora-se em Roger Chartier para discutir o conceito de representação, um marco que dá sentido à análise das narrativas dos sujeitos que entrevistou, e alinhava, assim, um diálogo que facilita ao leitor compreender as diversas perspectivas conti­das nos discursos e práticas sociais.

O conceito de imaginário social, de Cornelius Castoriadis, é também útil para interpretar o discurso anticomunista. Essa prática discursiva con­siste em evocar imagens que, expressas pelos mecanismos de linguagem, constroem sentido para um certo objeto. O discurso anticomunista obser­vado pelo prisma do imaginário social toma forma concreta no quotidiano da sociedade interiorana sob análise, conforme se demonstra claramente através dos relatos apresentados.

Bronislaw Braczo é acionado para proporcionar a compreensão da ocor­rência dessa imaginação que enuncia e significa o discurso anticomunista, que aponta como determinados conteúdos são associados ao comunismo. O fenômeno social (combate ao comunismo) ocorre no tempo presente, mas se relaciona ao mesmo tempo a uma projeção do “[…] futuro e à construção/ reconstrução do passado” (p. 37). A pessoa que enuncia combina aspectos e acontecimentos que não necessariamente tinham aquele sentido histórico, mas com aquele sentido são trazidos para o presente e assinalados como peri­gosos para o futuro – como se aquele sentido tivessem, porque nas imagens descritas no discurso anticomunista passam a ter aquela explicação.

O texto de Carla Rodeghero é claro quanto ao perfil constitutivo do dis­curso anticomunista, que ocorre carregado de sentidos, emoldurando grupos, sujeitos e situações como comunistas. Esses aspectos são facilmente demons­trados em fontes variadas, mas aparecem sobremaneira nos relatos orais. A autora estuda o fenômeno da recepção dos discursos anticomunistas ampa­rada em Michel de Certeau: “[…] o ensaio de Certeau sobre leitura permite questionar o papel da escrita e da leitura no âmbito da Igreja […]” (p. 39). Recorre consistentemente à história oral também para explorar esse aspecto, e aproveita o ensejo para fundamentar esmeradamente o uso da metodolo­gia. O texto indica compreensiva bibliografia de referência, com autores de renome nacional e internacional que, ao descrever suas efetivas práticas de pesquisa, aportam ao campo relevantes contribuições.

Estamos diante de um rico e bem-acabado trabalho de história oral. Ainda que o estudo seja de um aparente caráter local (concentrado no Rio Grande do Sul), ele se projeta nacional e internacionalmente. O comunismo e o anticomunismo construídos através dos discursos do medo carregam um apelo que transpõe fronteiras. Posto que esses discursos e a consequente pre­gação de ódio se mostram bem vivos na onda conservadora que assola o Brasil (e o planeta), arrisco dizer que a autora tem tema permanente para a conti­nuidade de suas pesquisas.

Marcos Fábio Freire Montysuma – Professor das disciplinas de História Oral e História do Brasil Contemporâneo no Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected].

 

Com Som, Sem Som – Liberdade políticas, liberdades poéticas – VALENTE; PEREIRA (RTA)

VALENTE, Heloísa de A. Duarte; PEREIRA, Simone Luci. Com Som, Sem Som – Liberdades políticas, liberdades poéticas. São Paulo: Letra e Voz/FAPESP, 2016. Resenha de: MOREIRA, Lemos Moreira. Canções, Projetos e Expressões Políticas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.24, p.621-627, abr./jun., 2018.

Capaz de produzir sensações, presenças e despertar sentimentos, a música, entre suas várias possibilidades, é capaz de mobilizar indivíduos e grupos sociais. No Brasil, uma série de pesquisadores, como Marcos Napolitano (2002), Miriam Hermeto (2012) e Márcia Ramos de Oliveira (2002), pontuam a capacidade da música e da canção de não apenas representarem um período vivido, mas também como um caminho de reflexão sobre a opinião pública, a circulação de ideias e seu caráter de mobilização social. É nesse sentido que as pesquisadoras Heloísa de Araújo Duarte Valente1 e Simone Luci Pereira2 propuseram a organização da obra “Com Som! Sem som… Liberdade políticas, liberdade poéticas”, publicada em 2016, pela editora Letra e Voz e dividida em quatro partes.

Fruto de parte das reflexões do 10º Encontro Internacional de Música e Mídia (2014)3, o livro é a oitava publicação do Centro de Estudos em Música e Mídia (MusiMid), o qual as organizadoras integram. Articulando pesquisas acadêmicas e relatos de experiência, a coletânea reúne pesquisadores/as que fizeram parte da programação do evento com outros/as convidados/as posteriormente, através de um objetivo em comum: refletir acerca das redes de produção e circulação de músicas ibero-americanas entre os séculos XX e XXI através de discussões que gravitassem em torno das relações entre música, mídia, repressão e liberdade.

A primeira parte do livro, Educação dos sentidos. O sentido de liberdade…, reune dois textos em torno da noção de liberdade. O primeiro deles, intitulado Arte, criatividade e vida do espírito: O que a liberdade de expressão tem a ver com isso?, é assinado pela pesquisadora Daphne Patai, conhecida principalmente por seus estudos na área de História Oral. Em seu texto, a autora faz uma breve reflexão sobre o status da 1 Doutora em Comunicação e Semiótica, Heloísa de Araújo Valente é especialista nas relações entre música, cultura e mídia em perspectiva interdisciplinar, articulando principalmente campos como a comunicação social, a semiótica da cultura e a música. Atualmente, é professora da UNIP, atuando no Programa de Pós-Graduação em Cultura Midiática, e é fundadora do Centro de Estudos em Música e Mídia.

2 Doutora em Ciências Sociais, com formação também na área de História, é especialista na área de música, comunicação e antropologia voltada especialmente aos estudos sobre práticas musicais-midiáticas. Atualmente é professora da UNIP, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Cultura Midiática, e vice-coordenadora do Centro de estudos em Música e Mídia.

3 Os Encontros Internacionais de Música e Mídia são promovidos pelo MusiMid anualmente, reunindo pesquisadores e estudiosos dedicados às interfaces entre música e mídia nas mais distintas áreas do conhecimento. Para saber mais: <http://musimid.blogspot.com.br>.  liberdade de expressão na atualidade, tomando como base sua experiência docente. Defendendo a liberdade de expressão, a autora aponta novos grupos e modos de silenciamento desta questão a partir de estudantes que se sentem desconfortáveis em tratar de determinados assuntos. Na visão da autora, a liberdade de expressão teria passado por uma mudança de sentido. Se antes fora alvo de repressão, hoje seria alvo de vigilância por movimentos étnicos e de gênero, especialmente o feminismo, do qual a autora é estudiosa. Já o segundo texto, Tempo de tocar, tempo de cantar, tempo de calar, tempo de inventar: Notas a respeito do percurso da Educação Musical no Brasil, de Marisa Trench de Oliveira Fonterrada, propõe uma análise da história da educação musical no país partindo das relações entre múltiplos tempos e focos do ensino de música nas escolas. Sua abordagem visa, para além de relatar como o ensino foi sendo moldado e, em alguns casos, censurado, destacar a confluência de várias temporalidades no modo de ensinar música no final do século XX e início do XXI.

Intitulada Liberdades políticas e poéticas: A música brasileira, a segunda parte do livro reune três artigos que discutem não apenas a música nacional, mas que dialogam com o plano internacional e/ou global, tomando como fio condutor o universo das linguagens. Lina Noronha, autora de A música como linguagem e os conceitos de música universal e música nacional, discute as relações entre o conceito de música universal e música nacional partindo do pressuposto que a música, enquanto linguagem, não se limitaria apenas ao seu caráter linguístico, mesmo sendo constituída por determinados elementos deste. O foco principal da autora está em analisar a maneira como, no período do “culturalismo”, as representações simbólicas da música seriam fundamentais para compreensão de projetos nacionalistas desde romantismo alemão no século XIX.

Em O papel do compositor em debate na imprensa escrita: Brasil, décadas de 1920 a 1960, André Egg dá seguimento à discussão da linguagem musical relacionada a projetos nacionais, porém focando no caso dos compositores. Partindo da imprensa escrita, o autor afirma que mais do que debater a função do compositor, os veículos levantavam a problemática do que isso significava no cruzamento entre as expectativas políticas e as próprias demandas de construção de identidades nacionais em diferentes contextos. Egg parte da preocupação com a utilização de veículos midiáticos na compreensão das redes de sociabilidades do ramo musical brasileiro a partir do que poderíamos considerar como um estudo voltado à nova história política (SIRINELLI, 2003). Laan Barros segue as mesmas discussões sobre fontes “impressas” em Sambas de Adoniran em HQ: Narrativas transversais na cultura midiatizada, dando atenção especialmente às Histórias em Quadrinhos impressas e/ou digitais. Partindo da análise de discurso e das representações narrativas, este capítulo foca as questões estéticas de tais obras e seus desdobramentos na percepção inserida no contexto das apropriações e da elaboração de novas representações.

A terceira seção do livro, Liberdades políticas e poéticas ibero-americanas, pode ser considerada como a sua parte mais volumosa em número de textos – um total de cinco. Heloísa Valente abre a seção debatendo uma das principais abordagens da obra: O viés político da música, dando atenção ao gênero da canção de protesto. Em Grândola, Vila Morena, o povo unido jamais será vencido! A canção de protesto como memória midiática da cultura, Valente se propõe a pensar, a partir de canções dos compositores Sergio Ortega e José Afonso, a importância da música nos períodos de repressão de direitos e de tomada do poder no cenário das ditaduras Chilena e Portuguesa. A análise objetiva pensar de que maneira a canção de protesto, dotada por um forte poder evocativo, é incorporada à memória auxiliando na compreensão de emoções e sentimentos vividos em cada contexto em que ocorreria sua performance. Com foco semelhante, a etnomusicóloga Susana Sardo e o compositor José Mário Branco discutem a canção como dispositivo de militância ideológica em casos brasileiros e portugueses. Intitulado Canções mensageiras: A cumplicidade entre Brasil e Portugal na construção das democracias, o texto versa sobre diferentes composições que circularam, em ambos os países, em seus períodos ditatoriais e também durante sua redemocratização a partir de figuras como Chico Buarque, José Afonso e o próprio José Mário Branco. A especificidade deste texto, que o difere da abordagem de Valente, é centrar a análise em cantores que são compositores de suas canções, o que permitiria investigar uma intencionalidade própria manifestada na criação e articulação entre palavra e sonoridade.

Os três artigos seguintes abordam a música popular especialmente no Uruguai e na Argentina. Marita Bordolli, em seu texto Música Popular, migración, exilio, diáspora: uruguay en los siglos XX y XXI, discute as relações entre a música popular uruguaia e os movimentos migratórios, dando foco aos trânsitos culturais frutos dos processos migratórios e da diáspora. Propondo-se a pensar entre múltiplos marcos, pontuando questões desde o século XX, a autora chega até o contexto dos meios digitais, especialmente da web para pensar as músicas uruguaias e latino-americanas em grupos diaspóricos. Mercedes Liska, autora do capítulo Un comunista atípico: Osvaldo Pugliese, um caso paradigmático de censura musical en la Argentina del siglo XX, analisa a trajetória de Osvaldo Pugliese, um dos principais nomes do tango argentino, levantando os processos de censura ao compositor, que foi filiado ao Partido Comunista. Uma das principais contribuições do trabalho é pensar a repressão ao artista, não apenas durante a ditadura militar argentina (1960 e 1970), mas igualmente nas décadas de 1940 e 1950 – no governo populista conhecido como Peronismo.

O último texto da seção, Tecnologías del sonido más allá de la urbe, assinado por Miguel García, alia as temáticas dos dois artigos anteriores. Ao analisar as práticas musicais do povo Pilagá, desde a década de 1950 até a atualidade, o autor transita por conceitos como cena musical e performance, chegando a debater, por exemplo, o contexto da década de 1970 com o crescimento do chamado folklore evangelico. Além disso, García, ao aproximar seu recorte temporal da atualidade propõe que, para o povo Pilagá, a tecnologia tem sido vista como uma extensão da sua música e um espaço de experimentação.

Com som! Sem som… Memórias musicais, em primeira pessoa, última parte da obra, reune dois textos que aliam produção científica e relatos testemunhais. Alfonso Padilha narra sua trajetória durante a ditadura Chilena em La música en una cárcel de la dictadura chilena, especialmente refletindo sobre de que maneira o contexto ditatorial vivido por ele contribuiu para sua visão do potencial político da música. Participante de movimentos comunistas no Chile desde a juventude, e exilado na Finlândia em 1975, Padilla destaca, entre vários pontos, a presença da música dentro dos campos de concentração de presos políticos, criados muitas vezes em estádios de futebol chilenos. Segundo o autor, espaços desse tipo, diferentemente do que se poderia pensar, foram permeados de canções e expressões artísticas inclusive unindo as pessoas ali presas. O professor de composição Paulo C. Chagas, apresenta no texto Observar o inobservável: Música e tortura no oratório digital A geladeira um projeto encomendado pelo Centro Cultural de São Paulo e do Núcleo Hespérides em função dos 50 anos do golpe militar de 1965. Seu foco foi o de expressar a memória e experiência do próprio Paulo Chagas que, aos 17 anos, foi torturado no contexto da ditadura civil-militar brasileira. Em seu texto, o autor faz uma análise que busca demonstrar as relações semióticas entre música e denúncias de tortura ao apresentar a sua obra afirmando que a música tem o poder de tornar visível o invisível. De acordo com o autor, a intenção, com A geladeira, foi de dar visibilidade à tortura, porém reconhecendo que a mesma seja impossível de se observar.

De modo geral, os textos reunidos no livro Com som! Sem som…- Liberdade políticas, liberdades poéticas buscam trazer um panorama geral da música ibero-americana no final do século XX e início do XXI sob o viés político. Alguns de seus textos observam a canção de protesto, a música dentro dos movimentos sociais e denúncias contra regimes de opressão. Outros adotam perspectivas mais gerais, pensam a função política e social dos indivíduos e da música em sociedade, dando especialmente destaque aos papéis sociais de alguns grupos, como os compositores. Contudo, o que permeia a totalidade deste trabalho é sua contribuição polifônica entre música e mídia, especialmente na compreensão desta última como parte da própria construção de ritmos, carreiras e sujeitos artísticos. Deste modo, a canção não é interpretada na obra apenas como uma expressão de arte por ela mesma, mas que cantar/tocar/compor significa estar permeado por sujeitos, projetos e contextos que são também políticos.

Referências

HERMETO, M. Canção popular brasileira e ensino de história: palavras, sons e tantos sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

NAPOLITANO, Marcos. História & música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

OLIVEIRA, Márcia Ramos de. Uma Leitura Histórica da Produção de Lupcínio Rodrigues. Tese de Doutorado – UFRGS, 2002.

SIRINELLI, Jean-François. Os Intelectuais. RÉMOND, René,. Por uma história política. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2003.

Igor Lemos Moreira – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Bolsista CAPES-DS. Florianópolis – SC – BRASIL. E-mail: [email protected].

História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários | Ana M. Mauad, Juniele Almeida e Ricardo SAnthiago

Este texto pretende resenhar o livro História pública no Brasil: Sentidos e itinerários, obra organizada por Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo de Almeida e Ricardo Santhiago. Nesta importante publicação, os organizadores reúnem textos de alguns dos principais pensadores sobre história pública no Brasil e em outros países. O livro passa a ser uma referência imprescindível por ser plural e apresentar várias perspectivas sobre o tema.

A proposta tem dois momentos. No primeiro, pretendo constituir um panorama geral do livro naquilo que, na minha perspectiva, é mais importante para a história pública. No segundo momento eu proponho uma pequena reflexão/contribuição já que participei dos dois simpósios retratados no livro1 e também por que sou membro da Rede Brasileira de História Pública. Leia Mais

História oral como arte da escuta

PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. Trad. Ricardo Santhiago. São Paulo: Letra e Voz, 2016. 196 p. Resenha de: MENIN, Assis Felipe. Por uma escuta sensível na história oral. História Oral, v. 20, n. 1, p. 241-244, jan./jun. 2017.

O mais recente livro de Alessandro Portelli, professor de literatura e historiador oral, traz ao leitor uma coletânea de artigos publicados em diferentes épocas de sua longa carreira de professor e pesquisador. O livro se divide em três partes, com três artigos cada. A escrita de História oral como arte da escuta é rica em detalhes históricos e memórias carregadas de sentimentos.

O livro não se destina apenas aos interessados na metodologia da história oral – historiadores e acadêmicos em geral –, mas certamente também aos interessados em histórias de homens e mulheres e em suas diferentes versões e impressões da história.

A primeira parte do livro é metodológica, diz respeito a como fazer e pensar a história oral. O autor ensina a trabalhar a oralidade, mostrando a importância de se manter uma relação “dialogal” entre historiador e narrador.

No dizer de Portelli, as fontes orais são cocriadas a partir da relação entre entrevistador e entrevistado. Por isso, as fontes orais carregam o inesperado, o inusitado e até mesmo o contraditório. Para exemplificar, ele fala sobre o momento em que, supostamente terminada a entrevista, o gravador é desligado: são frequentes os casos em que se escutam histórias tão interessantes quanto as do registro gravado ou ainda mais surpreendentes. Apesar de consciente do compromisso do entrevistador de proteção à sua privacidade, o entrevistado, mais relaxado nessa “informalidade”, se permite confidências inesperadas. O autor faz referência a episódios relativos à Segunda Guerra Mundial, a casos de assédio sexual, a histórias de mulheres durante a guerra e a práticas homoeróticas.

A história oral, além de ser dialógica, é performática, afirma o autor, já que ela não pode ser separada da linguagem e das expressões empregadas na narração. Esses aspectos exigem da história oral a arte da escuta, que ajudará o historiador a aprender mais e a ter diferentes visões do fazer história oral.

No segundo texto, Autoetnografia da prática de pesquisa, Portelli debate uma questão de metodologia a ser pensada pelo historiador: não é somente na performatividade do outro que a narração pode esconder significados, mas na do próprio historiador. A entre-vista se caracteriza pelo ato de duas pessoas olharem uma à outra. O entrevistador, portanto, não pode se manter neutro.

Portelli percebeu, em sua longa carreira de pesquisador de história oral, que o silêncio do entrevistador provoca no narrador desconfiança e, com isso, cria nele estereótipos sobre o seu próprio relato e sobre a pessoa do pesquisador.

No terceiro artigo, Portelli alerta para as especificidades e usos da memória: a memória involuntária, a memória perturbadora e a memória- -monumento. Para o autor, a memória não pode ser caracterizada como “boa” ou “má”, pois ela simplesmente é. O esquecimento faz parte da memória: esquecemos o que não nos afeta ou não possui significados. Existe, porém, um esquecimento que é caracterizado pelo “excesso de significados”. Para melhor explicar tal esquecimento, seriam necessárias memórias repletas de fantasmas que perturbam o presente. São as chamadas memórias involuntárias, que surgem de diferentes maneiras e em variadas circunstâncias. Portelli cita o caso de uma mulher ex-escravizada que, ao caminhar por verdes e floridos jardins e sentir o odor de lavanda das flores, se recorda dos momentos dramáticos e dos abusos sofridos naqueles campos. A memória perturbadora, por sua vez, é como um fantasma, insiste em aparecer mesmo quando não é querida por perto; é o que ocorre com os traumas, por exemplo. Por fim, a memória-monumento é aquela celebrada pelas instituições, que recorda de um passado considerado laudatório, mas que pode trazer dor e ressentimentos a algumas pessoas. Os três tipos de memórias estão interligados.

Na segunda parte do livro, As formas da memória pública, Portelli trabalha com um tema muito caro aos historiadores, que criticam, por um lado, a disputa e o mau uso das memórias e, por outro, incentivam uma visão interdisciplinar do fazer histórico e de múltiplos saberes, que todos podem ajudar a construir. É o que o autor defende no artigo sobre a Casa da Memória e da História de Roma, um local construído por diferentes setores da sociedade – acadêmicos, políticos, representantes da comunidade e pessoas que participaram ativamente dos acontecimentos – para lembrar o massacre das Fossas Ardeatinas1 e o fascismo, bem como suas consequências para o governo progressista de Roma na época. O espaço se transformou em local de disputas por memória, história e, consequentemente, por políticas diferentes: de um lado, o anticomunismo; de outro, os direitos humanos.

No artigo sobre imigrantes na Itália, a sensibilidade de Portelli com os entrevistados, provenientes de países asiáticos e africanos, assim como sua persistência para encontrá-los, mostra como contornar as adversidades de um projeto. Os imigrantes são vistos como mera força de trabalho na sociedade capitalista; por isso, são indivíduos em trânsito, que não conseguirão evitar a condição de provisoriedade, conforme afirma Sayad (1998), ou de outsider, de Elias e Scotson (2000), e ser reconhecidos como cidadãos na sociedade que os recebe. Ao reconectar as canções dos imigrantes e suas memórias, Portelli consegue trazer à tona as emoções e as saudades dos que deixam a própria terra e os seus para tentar a vida em outro país, onde nem sempre são bem recebidos – como é o caso dos imigrantes atualmente na União Europeia.

Com esse propósito, o autor apresenta três entrevistas, nas quais também mostra que os imaginários sobre a Itália (ou qualquer país de destino) são compostos de representações sociais, econômicas e culturais. Ao relatar a saudade, os imigrantes se encontram em um entre-lugar: estão aqui, longe dos seus, deslocados de seu país, e, ao mesmo tempo, não fazem parte deste lugar, estão permeados por um sentimento de não lugar.

No terceiro artigo da segunda parte, Portelli trabalha a adaptação da história oral para o teatro. Não há preocupações quanto à sequência da narrativa teatral e de sua performance, pois a narrativa oral é diferente a cada vez que é contada – basta lembrar a performance da tradição oral nas sociedades africanas. É a partir desse termo (performance – pela liberdade de interpretar) que a história adquire novas conotações: quando sai do escrito e volta para a performatividade da fala, ela retorna ao seu status, e isso envolve o performer, o ator e a audiência. As adaptações teatrais reativam silêncios e traumas que em alguns casos são esquecidos ou silenciados pelas instituições; democratizam, assim, a experiência da memória, levando a mensagem a plateias que possivelmente não teriam acesso ao seu conteúdo por outro meio.

Na terceira e última parte, Portelli desenvolve questões referentes à guerra e à memória. Além das violências e traumas que a guerra causa, ela produz em quem a vive imaginários de “como seria se...”, misturados aos sentimentos de mágoa. No primeiro artigo, Portelli se debruça sobre os imaginários dos partigiani, sobre as violências e violações que sofreram das tropas fascistas na guerra de Poggio Bustone.

No segundo artigo, sobre genocídio, o autor entrevista sobreviventes da guerra sobre seus medos, fantasmas e fantasias: ao invés de descartá-los por suas incongruências e contradições, ele trabalha com essas imaginações e relatos.

Não importa o que os narradores realmente tenham feito ou vivido, mas o que eles sentiram e sentem a respeito de determinado episódio. Sentimentos de violações e injustiças se misturam e são recriados, segundo o autor. Essas histórias podem ser interpretadas pelo apagamento e pelo silenciamento dessas memórias pelo discurso oficial.

Por fim, Portelli apresenta a memória em meio a uma guerra de narrativas que envolve imaginários, emoções, racismo, fascismo, disputas. O autor desenvolve a narrativa dos fatos através das entrevistas com as pessoas que viveram na catástrofe da ocupação alemã de Hitler. Geralmente em uma guerra se avaliam as perdas materiais e humanas, quantitativamente. Portelli, com suas entrevistas, busca mostrar que há outras vítimas, certamente inocentes.

O livro de Alessandro Portelli é um aprendizado para quem trabalha com a metodologia da história oral. Como ele próprio afirma: “A história não termina quando o gravador é desligado, quando o documento é depositado, quando o livro é escrito; ela começa a viver naquele dia” (p. 43).

Referências

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998.

1 Massacre que ocorreu na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, em 1944, quando nazistas fuzilaram 335 civis italianos.

Assis Felipe Menin – Mestre em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail: [email protected].

História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários | Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo de Almeida, Ricardo Santhiago

A tentativa de compreensão e a elaboração da noção de “História Pública” são dois movimentos recentes dentro do campo historiográfico brasileiro, o que, no entanto, não significa que tal debate esteja ausente de outras iniciativas que tangenciam a construção do conhecimento histórico ao longo do tempo produzido no país – inclusive aquelas encabeçadas por sujeitos que não são institucionalmente reconhecidos como historiadores. O livro História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários lançado recentemente, no ano de 2016, segue este percurso que busca trazer à cena a reflexão da história e seus inúmeros públicos – considerando também a multiplicidade de significados desse último termo. Já na apresentação da obra é evidente o desejo de fugir de uma simplificação do que seria a História Pública, buscando assim constituir um campo de estudos que permita desenvolver esta concepção, inclusive, assumindo a sua multi e interdisciplinaridade. Leia Mais

História pública no Brasil: Sentidos e itinerários – MAUAD et al (RTA)

MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO, Ricardo (orgs.). História pública no Brasil: Sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016, 348p. Resenha de: FRAZÃO, Samira Moratti. História pública no Brasil: espaço de apropriações e disputas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.19, p.374-379. set./dez., 2016.

Na contemporaneidade, momento em que a história é vista midiaticamente como uma bússola para questões políticas, sociais, religiosas e culturais que emergem no presente, como refletir a necessidade de revisitar o passado com abordagens que fogem às práticas históricas institucionalizadas? Como pode ser traduzida fora do ambiente acadêmico essa produção ou intenção de propor um conhecimento histórico que se encontra em circulação em diversos suportes e tecnologias? A história pública pode ser uma das respostas a essas e outras questões abordadas no livro “História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários”, lançado em 2016 pela editora Letra e Voz.

Para além de novas reflexões, a obra é uma continuidade ao trabalho empreendido em 2011, ano em que foi lançado o livro “Introdução à História Pública”, organizado por Juniele Rabêlo de Almeida e Marta Gouveia de Oliveira Rovai. Posteriormente os pesquisadores, entre historiadores, comunicólogos e especialistas de diversas áreas das Ciências Humanas e Sociais, formaram a Rede Brasileira de História Pública (RBHP), cujos membros – dos quais se destacam Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo de Almeida e Ricardo Santhiago, organizadores deste livro – propõem com “História pública no Brasil” conectar percepções atualizadas sobre a prática, considerada uma produção histórica “feita para, com e pelo público” (MAUAD, ALMEIDA & SANTHIAGO, 2016, p. 12, grifo dos autores). Leia Mais

História oral e arte – SANTHIAGO (HO)

SANTHIAGO, Ricardo (Org.). História oral e arte: narração e criatividade. São Paulo: Letra e Voz, 2016. 186 p. Resenha de: LIMA, Gabriel Amato Bruno de. Por uma história da arte e dos artistas com a história oral. História Oral, v. 19, n. 2, p. 213-216, jul./dez. 2016.

Certa vez, ao debater num curso de história oral a questão do retorno aos entrevistados, a colega com quem eu dividia a regência das aulas admitiu um impasse. Por entrevistar artistas, em especial “homens de teatro”, ela disse ter dificuldades em pensar formas de retornar aos entrevistados os resultados de suas pesquisas. Os textos acadêmicos, com suas exigências de linguagem e formato, pareciam a ela insuficientes, pois dramaturgos ou atrizes estão habituados a se relacionar com o mundo de forma inventiva. Restava a dúvida: como dizer aos entrevistados sobre a importância de suas contribuições? Pesquisando mais sobre as investigações que elegem a arte como tema e as entrevistas como método, descobri que há ao menos mais um pormenor no campo – desta vez, teórico. Ao resenhar livros sobre o tema, Elisabeth Stevens identificou um paradoxo das “entrevistas com e sobre artistas”.

Segundo a autora, elas “requerem que pessoas que escolheram meios não verbais para se expressar ainda assim expliquem a si mesmas, ou sejam explicadas, com palavras” (Stevens, 1990, p. 111, tradução livre). A própria decisão de entrevistar artistas já traria questões de fundo para o pesquisador: como não se limitar à busca por traduzir arte em narrativas de história oral? Como evitar o discurso pronto daqueles que criam narrativas públicas sobre si? Essas breves considerações sugerem a importância da coletânea História oral e arte: narração e criatividade, editada em 2016 pela Letra e Voz.

Pelo título, o leitor familiarizado com os debates da metodologia poderia intuir se tratar de novo capítulo da discussão acerca do estatuto epistemológico da história oral – se técnica, metodologia, disciplina ou arte. Mas não é nem à reivindicação da história oral como “arte multivocal” (Portelli, 2010), nem ao tratamento literário das entrevistas – a “transcriação” (Meihy, 2005, p. 195-203) – que o livro dedica sua atenção. Os textos de História oral e arte direcionam seus esforços para a afirmação de uma agenda de pesquisas em torno da produção, circulação e recepção dos trabalhos de músicos, artistas cênicos, pintores, escultores, arquitetos, literatos e cineastas (isso para nos limitarmos à enumeração das sete artes).

Organizado por Ricardo Santhiago, o livro é parte da coleção História Oral e Dimensões do Público, dirigida por Juniele Rabêlo de Almeida. Sua proposta editorial é uma relativização do diagnóstico elaborado pelo organizador três anos antes, segundo o qual “se não faltam profissionais que empregam o método da entrevista […] na abordagem das artes, poucos são os que engatam nesses estudos todo o lastro teórico e conceitual” da história oral (Santhiago, 2013, p. 166). Como indicam os oito artigos do livro, “só faltava abrir o jarro, parece, para que perspectivas instigantes sobre a relação entre história oral e as artes tivessem sua dimensão evidenciada” (p. 8). E, de fato, a leitura de História oral e arte ajuda a compor uma problematização dos usos possíveis dessa metodologia em pesquisas sobre o mundo artístico.

Um primeiro conjunto de estudos do livro se dedica à reflexão sobre o sujeito. Em Inovação e criatividade: a história de Dona Isabel Mendes, das panelas de barro às bonecas de cerâmica, Karen Worcman analisa a narrativa de uma ceramista cujo ofício foi reconhecido como arte pelo mercado. Segundo Worcman, a entrevista com Isabel evidencia como “um indivíduo alia seus desejos pessoais à tradição, destacando-se em sua criatividade e empreendedorismo ao ser estimulado por seu próprio contexto” (p. 22). Seu argumento indica um movimento de deslocamento de análise em história oral: das memórias coletivas às formas como sujeitos elaboram processos de recordação.

Em sentido análogo, está Tudo que o tempo deixou: as continuidades e rupturas da história bossanovista através da memória de Alaíde Costa, de Daniel Lopes Saraiva. O autor argumenta que a história oficial da bossa nova silencia os conflitos (inclusive de memória) entre os bossanovistas. Ela também invisibiliza a atuação de Alaíde Costa, uma “cantora negra, vinda do subúrbio carioca, que já era profissional à época quando a bossa nova surgiu” (p. 58). Sua memória, portanto, adiciona importantes nuances às narrativas sobre o movimento.

O enfoque nos sujeitos-artistas está presente também em O menino João das Neves: reminiscências de um amante da arte, de Miriam Hermeto e Natália Batista. Explorando a articulação entre experiência e expectativa na entrevista com o dramaturgo, as autoras identificam na memória de João das Neves os “múltiplos meninos-João, que se configuram temporalmente e constituem uma personalidade singular do velho-João” (p. 134). Outra característica instigante do trabalho são as considerações sobre a relação que se estabeleceu com João ao longo das entrevistas, que nos ajudam a localizar as subjetividades em jogo na produção de uma “história de vida”.

Um segundo grupo de textos questiona as coletividades e a construção de identidades. Em Circuitos operacionais das artes: memórias em torno da profissionalização dos artistas plásticos em Pernambuco nos anos 1960, José Bezerra de Brito Neto trata de uma entidade de artistas, concatenando memórias que formam um quadro de lembranças sobre identidades profissionais. O objetivo do autor é “analisar as fábricas políticas e culturais do status profissional no campo das artes plásticas de Pernambuco, na década de 1960” (p. 37), ainda que a especificidade da política cultural sob um Estado autoritário seja apenas apontada no trabalho. Também Haroldo Rezende, em Kukukaya: um grito de amor, um grito de dor, lida com questões identitárias ao analisar o circuito de apropriações de uma canção de Cátia de França. O autor observa que uma geração de músicos nordestinos dos anos 1970 criou uma rede de significados da memória, que é “refundada a cada execução, a cada gravação, a cada interpretação” da canção (p. 98).

Dayse Perelmutter, em A história oral como laboratório de sensibilização estética: memórias e marcas de artistas brasileiros de ascendência judaica, também se questiona sobre a identidade de artistas. A autora analisa “a maneira como o legado judaico foi transmitido e inscrito e a intensidade de sua reverberação na sensibilidade contemporânea de cada um” dos seus entrevistados (p. 107). Apesar do predomínio de debates teóricos, o texto é concluído com uma análise de depoimentos de artistas que articulam o par identidade/diferença em suas narrativas de história oral.

Por fim, dois textos trazem reflexões teóricas a partir da percepção da história oral como “prática reflexiva” (p. 9). Em História oral e história da arte: aproximações, Eduardo Veras analisa a produção de entrevistas com artistas e a fecundidade de questões próprias da história oral. Problematizar a “condição a posteriori das entrevistas” e “questionar a absolutização dos demais documentos de processo” criativo são, para o autor, contribuições da metodologia, em especial quando se considera “as entrevistas no contexto maior da longa tradição de convívio entre textos e obras de arte” (p. 146- 147). Ricardo Santhiago encerra a coletânea com A pergunta que não se faz: algumas ideias sobre história oral e canção. O ensaio levanta a possibilidade de se tratar canções como história oral, concluindo que “é o casamento entre ambas que pode promover uma compreensão mais profunda de determinado fenômeno, aliando a subjetividade narrativa e a subjetividade artística” (p. 168).

Em seu conjunto, os artigos de História oral e arte indicam possibilidades para pensarmos a história oral e o campo artístico a partir das ambiguidades dos sujeitos, das identidades profissionais e da análise dos produtos culturais e das narrativas sobre eles. Problemáticas peculiares costumam aparecer quando lidamos com grupos sociais diferentes em história oral – e não é diferente com os artistas. Evidenciá-las em pesquisas temáticas enriquece os debates, permitindo revisões de nossa prática e o alargamento de nosso repertório teórico – tarefa que o livro cumpre com êxito.

Referências

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 2005.

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010.

SANTHIAGO, Ricardo. História oral e as artes: percursos, possibilidades e desafios. História Oral, v. 16, n. 1, p. 155-187, jan./jun. 2013. Disponível em: <http://revista.historiaoral.org.br/index.php?journal=rho&page=article&op=view&path%5B%5D=278&path%5B %5D=309>. Acesso em: 3 set. 2016.

STEVENS, Elisabeth. Art, artists, and oral history. Oral History Review, v. 18, n. 1, p. 111- 115, primavera 1990.

Gabriel Amato Bruno de Lima –Mestre em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Núcleo de História Oral da mesma universidade. E-mail: [email protected].

 

 

 

 

Ensaios de História Oral – PORTELLI (HP)

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. 258 p. Resenha de: CARDOSO, Heloísa Helena Pacheco. História oral: questões e indicações para o debate. História & Perspectivas, Uberlândia, v. 24, n. 45, 14 dez. 2011.

Acesso permitido apenas pelo link original

Memória e diálogo: escutas da Zona Leste, visões sobre a história oral – MAGALHÃES; SANTHIAGO (HO)

MAGALHÃES, Valéria Barbosa; SANTHIAGO, Ricardo (Org.). Memória e diálogo: escutas da Zona Leste, visões sobre a história oral. São Paulo: Letra e Voz; Fapesp, 2011. 186 p. Resenha de: CORRER, André Bortolazzo. História Oral, v. 14, n. 1, p. 153-158, jan.-jun. 2011.

Memória e diálogo é resultado da preocupação e dos esforços que vêm sendo empreendidos para fomentar discussões sobre a Zona Leste de São Paulo, sua história e memória, e sobre a prática de pesquisa com narrativas orais e lembranças. Essa preocupação se refl ete nas discussões do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória (Gephom), da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP). Fundado pelos organizadores da obra em questão, no intuito de trazer ao ambiente acadêmico as preocupações com o entorno da universidade, o Gephom desenvolve pesquisas sobre movimentos migratórios na Zona Leste de São Paulo e sobre a história oral enquanto método de pesquisa, entre outros temas. O 1° Simpósio de História Oral e Memória: Memória da Zona Leste de São Paulo, realizado em junho de 2010, na EACH-USP, foi o ambiente de efervescência da obra, sendo que grande parte dos textos nela publicados foram apresentados no evento.

O subtítulo do livro – “escutas da Zona Leste, visões sobre a história oral” – revela sua primeira peculiaridade: uma divisão entre prática de pesquisa e referencial teórico, que ao fi nal acaba por constituir um todo emaranhado que se complementa e se cruza durante a leitura. Isso concede à obra como nova prática pedagógica que visa aumentar a interdisciplinaridade e quebrar com a prática secular que forma especialistas sem conhecimento do todo. Todas essas questões são apenas lançadas à tona pelos professores, uma vez que o tema ainda tem muito a ser discutido e aprofundado.

O texto do padre Ticão, militante dos movimentos sociais da Zona Leste de São Paulo, busca contar um pouco de sua trajetória e da história da região do ponto de vista dos habitantes locais. Padre Ticão faz uma análise da evolução dos movimentos sociais ao longo das últimas quatro décadas, com o surgimento da Teologia da Libertação, a ditadura militar, o papel da Igreja Católica nos movimentos sociais do período da repressão, a redemocratização da década de 1980. Finalmente, ele apresenta frutos desses movimentos, como a expansão do Sistema Único de Saúde (SUS), os movimentos de moradia, a conquista da universidade na região, além de apresentar as necessidades ainda prementes na região mais densamente povoada do município de São Paulo.

Valéria Barbosa de Magalhães, uma das organizadoras da obra, em seu texto “Memória e história da Zona Leste de São Paulo”, realiza uma refl exão acerca de sua pesquisa atual, enfatizando entrevistas já realizadas com a população da região, em sua maioria migrantes do Nordeste do país. A autora trata de questões sobre o método e sobre a memória regional, destacando a importância desse trabalho nos campi de universidades localizados na periferia.

Uma das características do projeto é seguir a tendência de registro e disponibilização online de entrevistas de história oral, visando privilegiar a articulação “memória-sujeito-identidade”.

Finalizando a primeira parte da obra, Mauro Alves Bonfi m descreve o projeto “Observatório de memória audiovisual, do CPDOC, núcleo de projetos da Fundação Tide Setubal, criado em 2008. O CPDOC tem por objetivo a constituição de um acervo de depoimentos e fotos dos moradores para a produção da memória local. O autor destaca que o centro busca criar uma referência local, especialmente para os moradores de São Miguel Paulista, incluindo o uso de mídias sociais, de plataformas colaborativas e de audiovisual.

Questões do método: teoria da pesquisa em história oral A segunda parte do livro compreende refl exões teóricas sobre o método – a história oral –, com textos de variados autores da área, entre os quais Leland McCleary, Alice Beatriz da Silva Gordo Lang, Maria de Lourdes Monaco Janotti, Richard Cándida Smith e Daphne Patai, além do texto de um dos organizadores da obra, Ricardo Santhiago.

O texto de McCleary trabalha com questões de língua e tecnologia e a relação da primeira como veículo narrativo e de comunicação. Passando pela discussão sobre gêneros textuais, o autor trata da entrevista como o mais adequado gênero para a história oral. A história oral acontece no âmbito da oralidade, mas também pode ocorrer em outras linguagens, como o exemplo destacado pelo autor de uma entrevista em libras, a linguagem de surdos.

Além da entrevista, há a transcrição, que se constitui como outro gênero textual, o escrito. Com o advento de novas tecnologias, no entanto, as possibilidades de interação se multiplicaram e inúmeros canais vêm surgindo para registros e bases de dado online, lançando novas possibilidades para o futuro da história oral.

Alice Lang aborda as propostas e perspectivas da metodologia de pesquisa para o estudo do tempo presente, a história oral. Nesse aspecto, avalia as variações da abordagem ao longo do tempo e nos diferentes grupos de pesquisa, com destaque para a história de vida, inspirada por Roger Bastide, e a história oral moderna americana, surgida no Oral History Research Offi ce, de Nova York. Basicamente, a autora identifi ca três tendências, que muitas vezes se imbricam: a história oral voltada para a pesquisa, a dirigida para a criação de documentos sobre o tempo presente e a militante. Em seguida, a partir da experiência do Centro de Estudos Rurais e Urbanos (Ceru), detalha os principais pontos do processo de pesquisa.

O texto de Ricardo Santhiago trata da polêmica questão da tradução na história oral e os problemas que podem ocorrer com a falta de cuidado nesse aspecto, gerando diferentes interpretações sobre posições de pesquisadores estrangeiros na área. Parte de seu projeto de doutorado, o texto passa pela chegada da história oral no Brasil, sua consolidação e variações, e a limitação das traduções nas primeiras décadas. Segundo o autor, grande parte dos textos-chave para o campo da história oral como método de pesquisa ainda não possuem, ou não possuíam até recentemente, tradução para o português.

Nessa abordagem, ele inclui também a crítica a propostas como a de “transcriação”. Richard Cándida Smith é o atual diretor do programa de história oral da Universidade da Califórnia – Berkeley, e trata em seu texto da questão da autoria no âmbito da historiografi a. Constrói seu texto colocando-se do outro lado da entrevista, numa inversão de papéis, uma vez que narra uma experiência que viveu como entrevistado sobre o ativismo estudantil na década de 1960. Cándida Smith destaca que essa inversão de papéis ocorreu apenas 25 anos depois de ter começado a trabalhar com história oral, enquanto entrevistador e pesquisador, o que lhe trouxe uma perspectiva totalmente nova com relação ao seu interlocutor. Diante dessa experiência, ao assumir o centro de história oral, traçou novas metas, como a publicação de todas as entrevistas na internet, o envolvimento dos estudantes nos projetos e o desenvolvimento de uma agenda de investigações temáticas e históricas.

Em “Pensando as implicações do testemunho na história oral”, Maria de Lourdes Monaco Janotti levanta alguns dos problemas existentes nas relações entre os vários tipos de testemunho e a história oral enquanto metodologia. Para tanto, a autora utiliza dois casos clássicos do uso da história oral em acontecimentos de importância política: a obra de Hanna Arendt Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal e o julgamento do general Aussaresses e suas publicações posteriores em forma de entrevista. Dentro dessa análise, trata da questão da interpretação dos testemunhos no interior de cada disciplina e as difi culdades que ainda se colocam no trato com as entrevistas, em especial na sua conversão para o texto defi nitivo.

Finalizando a obra de maneira destacável, Daphne Patai escreve em “Existe vida fora da história oral?” que o desafi o do pesquisador consiste em construir um conhecimento “multifocal, multidimensional, que não privilegie uma só metodologia, por mais sedutora que ela seja” (p. 174). Para além das entrevistas e transcrições, as análises histórica, política, social, econômica, entre outras áreas que se relacionam com a pesquisa, são essenciais para a construção de uma obra. A história oral não basta por si só; portanto, é mais uma metodologia que se complementa com outras formas de pesquisa. Finalmente, a autora destaca que a história oral, segundo sua visão, não necessariamente representa a voz dos oprimidos e nem deveria ser privilegiada com essa fi nalidade, pois, entre outros problemas, corre-se o risco de supervalorizar o papel e a capacidade de atuação do pesquisador.

Memória e diálogo, em seu conjunto, tem uma importância significativa por apontar os rumos da história oral atualmente no Brasil e no mundo, apresentando suas principais características como método de pesquisa. Além disso, por meio de textos de diversos autores, a obra problematiza posições consolidadas a respeito do método, em especial as posições que pretendem conceder à história oral um papel de disciplina acadêmica específica.

Outro fator de destaque é a capacidade de clarear a ideia de que a história oral pode ser feita e usada de diversas formas, para diversos fins e com diferentes temáticas de pesquisa, sem a pretensão e a necessidade de ser superior a outras formas de pesquisa, mas complementar.

Para além das questões metodológicas, a obra é rica por trazer à tona temáticas de discussão fundamentais para a Zona Leste da cidade de São Paulo, como os movimentos sociais, a universidade pública e sua localização, as questões emergentes locais, entre outras. Além disso, lança luz a algumas questões essenciais para a formação histórica e social da região, como a migração, a organização do espaço urbano e a industrialização.

Trata-se de um livro teórico e prático, ao mesmo tempo, conseguindo atingir diversos públicos e interesses, num todo coeso e de agradável leitura.

Uma vez que a história oral constitui-se como estudos sobre o tempo presente, seu uso para tratar dos problemas e desafios da Zona Leste foi muito bem aplicado.

Constituindo-se como leitura atualizada sobre os temas que se propõe a discutir, a obra atinge diversos públicos com interesses específicos. O primeiro deles compreende interessados na história da Zona Leste de São Paulo, em especial aqueles que trabalham com questões de imigração e formação social da região. Ao lado destes, historiadores interessados nas histórias de bairros e municípios, em especial na história da cidade de São Paulo, podem encontrar reflexões importantes. Um terceiro grupo para o qual a obra seria de grande utilidade é formado por pesquisadores, professores, alunos e comunidade da EACH-USP. Visto que a obra se propõe a discutir questões do ensino superior e da origem e construção da história da própria unidade, esses podem encontrar aqui pistas para compreender diferentes aspectos da realidade acadêmica da EACH e sua relação com o entorno.

Finalmente, o livro se destina a iniciantes e pesquisadores de história oral, pois apresenta interessantes debates e posicionamentos sobre o método, suas perspectivas, tendências e possíveis abordagens. É uma leitura importante para quem busca na história oral uma metodologia consistente e válida para pesquisas acadêmicas e extra-acadêmicas.

Rastros de histórias ou as Mortes de José Adelaide Gonçalves1 ALMEIDA, Nilton. Fortaleza Rebelde: cartografia das lutas dos trabalhadores ferroviários em Fortaleza. Fortaleza: Edições SECULT , 2012 História Oral, v. 1, n. 15, p. 255-260, jan.-jun. 2012 1 Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará Um livro pode ser lido de muitos modos. Aqui, a sensibilidade do leitor vai destrinçando os fios da trama a partir dos fragmentos de uma memória da dor nos depoimentos de familiares, filhos, amigos e viúvas dos trabalhadores ferroviários. Observe‑se a dimensão dos textos testemunhais em seu propósito político e educativo: transmitir experiências coletivas da luta política, assim como os horrores da repressão, em um intento de indicar caminhos e marcar com força o ‘Nunca Mais’, como na arguta abordagem de Elizabeth Jelin. Veja‑se, inclusive, como este estudo pode suscitar seguidas reflexões sobre certas grandes ausências nas narrativas, como é o caso das mulheres. Num mundo do trabalho predominantemente masculino, elas terão assumido apenas os papéis prescritos: professoras, escriturárias, assistentes sociais? Na fotografia do III Congresso Nacional Sindical, em 1960, no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, numa tomada do palco e da lateral do auditório, muitos engravatados e de paletó, outros em mangas de camisa e nenhuma mulher.

Neste livro, uma diversa cartografia da cidade de Fortaleza. O autor esquadrinha a cidade em direção às estações do trem, aos bairros cortados pelos caminhos de ferro, aos espaços de confraternização e organização da classe, engenheiro Couto Fernandes, em 1919, o Olímpico Football Clube, pois os engenheiros estão sempre à espreita querendo em tudo mandar, até chegar ao Ferroviário, time oficial, da empresa. Mas a história prega peças aos desavisados; o time da empresa vira o Ferrim dos comunistas e anarquistas, da resistência coral proclamada: “nem guerra entre torcidas, nem paz entre classes”; “nada diminui nossa paixão incendiária, ferroviário, orgulho da classe operária”. O Ferrão com seu grito e seu hino.

A alegria das lembranças é fato notável neste livro. Quando a memória é acionada para lembrar as invenções da política da classe, é com alegria que se lembra a força da novidade do Pacto Sindical no final dos anos 1950.

“Era um movimento bonito e animado”, no dizer de Zé Leandro. A luta era bonita e alegre! Era o tempo dos meetings, dos comicios‑monstro entoando os hinos do Jataí e dando vivas ao Partidão. Como atestam os instantâneos, registrando na fotografia uma celebração coletiva da vitória da classe, até ontem em pé de guerra, no dizer da manchete em vermelho do jornal Unitário, na greve do “fora Humberto Moura”, em 1961: piquetes, dormentes dos trilhos e blocos de cimento virando barricadas, carros de rodas para cima, barraca da resistência; na capital e no interior, como se vê nas fotografias em frente à oficina do Urubu, em Sobral ou no Ipu. Fotografias de gente no plural, encenando os coletivos e a coreografia da luta social.

Aliás, o sentido da luta como festa redentora é recuperado em outras passagens deste estudo. É de se ver a camaradagem, a conversa entre iguais e o dizer‑de‑tudo dos ferroviários ali no bar pertinho do sindicato, espécie de território livre, onde se encontravam e de tudo falavam. Nesse convívio, até os apelidos – o Cajarana, o Catita, o Caboclinho, o Sol Quente, o Sereno, o Macarrão – são os sinais da camaradagem atualizando as conversas. Dali, saíam confiantes para inventar as coreografias do protesto narradas neste livro. Passeatas contra a carestia, de solidariedade aos bancários e estudantes.

É de se imaginar a beleza dos braços dados acompanhando o vozeirão de José Jatahy e o som da radiadora tocando um hino de classe dos ferroviários.

A letra é luminosa, alvissareira, confiante e esperançosa. Num lampejo de memória, o Sereno diz que aquilo era uma época diferente… Era a maior festa… Bastava um grito: pára o trem! E pronto, a greve estava na praça, na rua. Aliás, a greve é rememorada como uma grande festa: da liberdade, do não ao patrão, de quando o trabalhador se manifesta, dá vazão a todo seu sentimento, como na recordação de Batistinha. Afinal, o aprendizado das greves desde os finais do oitocentos aumenta nos começos do novo século.

Ferroviários, marítimos, portuários e o “pessoal agrícola” do Chico Julião mobilizavam‑se em busca de direitos.

Em busca de direitos denegados. É outro mote deste livro. As tricas e futricas da política local emergem neste estudo por dentro das situações de impasse entre a organização dos trabalhadores ferroviários e a direção da RVC. Em alguns casos, a narrativa encaminha o leitor para uma história à maneira de “queda de braço”, como se vê no malogrado episódio da demissão do engenheiro José Walter. Era chegado o golpe civil‑militar. Tempos difíceis e cinzentos. Acabou a festa. Intervenção, demissão, perseguição, prisão. O vocabulário é outro. A desmesura do arbítrio não tem limite: os ferroviários mais à frente das lutas sindicais são proibidos até de passar por perto da empresa. E se pegos andando na estação central, cadeia neles! É a ordem do doutor engenheiro. A vida mudou demais para esses trabalhadores e suas famílias. Casas invadidas, perseguições, prisões, demissões, o cárcere, a vida virada de ponta‑cabeca. O controle, a vigilância, “os alcaguetes estavam por todo lado: disfarçados e traiçoeiros”.

Por dentro desta narrativa emergem outras histórias dos militantes comunistas e de suas vivências no Partidão. Uma visada retrospectiva parece tudo compreender. Mas, bem vistas as coisas, não é assim. Para alguns militantes, a memória traz de volta uma história atribulada, lembrada com algum travo, de divergências, sectarismos, uma linha justa tirada lá em cima, no comitê central. Para outros, é uma história de autoesclarecimento, de aprender a ler, de estudar nas horas vagas para mostrar o valor da classe, de se tornar “jornalista da classe”. Aliás, este livro traz boas passagens para a história do jornalismo no Ceará. E do jornalismo da militância comunista, como aquele praticado por Jonas Daniel em franco combate à ditadura, fazendo funcionar em Croatá uma tipografia, melhor dizer, um mimeografo elétrico adaptado à função manual, donde saía o Voz Operária, a Estudos e Mundo em Revista e, de quebra, uns quantos panfletos, pois a luta também se travava por impresso. Sobre o fato, o jornal O POVO estampa, em abril de 1973: Imprensa comunista desmantelada no Ceará. A notícia, ao modo do jargão policial, indica os “elementos” presos e se fica sabendo que desmantelar é literal, levar tudo: máquina impressora, grampeador industrial, aparelhagem de fundição de chumbo, guilhotina, clichês, latas de tinta – e prender os ‘subversivos’. Rememorando aquele tempo, Dona Nazareth, viúva de Jonas Daniel, é daquelas que “viveu para contar”, e sua memória tem saudades e é alegre: terá valido a (a)ventura de ser comunista. Como é o caso também de Caboclinho Farias. Perguntado como se tornara comunista, responde depressa: por meio da leitura! A comprovar o dito, o processo na polícia traz o rol de sua literatura de formação: desde o manifesto comunista, compêndios de história, manuais de difusão do marxismo‑leninismo, boletins, até recuerdos de suas viagens militantes. Outras boas histórias de dedicados militantes comunistas: Mascarenhas, Zé Maria, Graciano, José Elias, Anário, Zé Duarte, entre tantos, em sua peleja até na cadeia! Este livro nos dá a pensar também sobre o capítulo da história da destruição dos livros nas ditaduras. Esse episódio terrível deve ser contado.

Terá sido uma hora de muita aflição, quando se sabia acuado pela repressão, enterrar ou queimar os livrinhos. Já os meganhas, quando chegam – e a qualquer hora – vão direto aos livros! Livro é prova do crime de pensar. A comprovar essa sanha contra a palavra impressa, estão aí os processos com extenso rol de livros. A ditadura prende os livros, confisca o pensamento, esse um capítulo de grande significado na história social da interdição do livro e da leitura.

Este livro‑documento terá cumprido largamente a tarefa abraçada desde o início da intenção de pesquisa. Tentar juntar os pedaços da história do ferroviário José Nobre Parente, 37 anos, preso, mantido incomunicável, assassinado na prisão. José perdeu a vida duas ou mais vezes: assassinado na prisão e apagado dos registros das vítimas da ditadura civil‑militar – seu processo na Comissão é parcamente documentado. Perde a vida e a memória é chafurdada. Dele se diz: fraco do juízo, é um suicida. Macabra e porca história tantas vezes falsificada nos prontuários de polícia. José, Manoel, Vladimir terão sido – e continuam sendo – as vítimas da tortura. Esse o nome do bicho, sobre o qual pesam os espessos silêncios convenientes da autoridade policial e o esquecimento deliberado e cúmplice da imprensa local. Amnésia e anistia. Quem matou José? É a pergunta que se faz o jornalista e historiador Nilton Almeida. Pinça da manchete de Última Hora, do jornalismo dissidente, constituindo esses desvãos de memórias persistentemente ocultadas e contrastando versões impressas dos terríveis atos da ditadura. Neste ponto, no âmbito do direito à memória, é de se proclamar a necessidade urgente de amplo inventário e divulgação de fontes do acervo dos documentos da polícia política do Ceará, o acervo do DOPS, sob a guarda do Arquivo Público do Estado do Ceará.

Este livro é trabalho meticuloso de um sincero historiador. Comprometido com a faina do ofício, Nilton Almeida tem no arquivo uma oficina e entende a escrita da história como prática laboriosa de desmontar versões oficialmente arranjadas sobre episódios e personagens, nomeadamente esses “notáveis” que nomeiam bairros, avenidas, logradouros, retirando de sua ação sobre os tempos e lugares os conteúdos do arbítrio, da repressão, do mando. Também é esforço bastante bem realizado de sair dos trilhos da história institucional da estrada de ferro em busca das outras histórias dos trabalhadores, de suas famílias, de seu jeito de viver e de aprender a soletrar as palavras da luta social. É também um respeitoso exercício de escuta das memórias do silêncio ou dos papéis oficiais, em particular, das mulheres‑viuvas, algumas de maridos mortos‑vivos. Mulheres que, às vezes, se acostumaram a andar de olhos baixos para não ver o dedo apontando o estigma do marido preso pelo crime de ser comunista.

André Bortolazzo Correr – Mestrando em Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória (Gephom). História Oral, v. 18, n. 1, p. 241-246, jan./jun. 2015.

Ensaios de história oral – PORTELLI (HO)

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. 258p. Resenha de: RIBERTI, Larissa Jjacheta. História Oral, v. 13, n. 2, p. 193-195, jul.-dez. 2010.

Prática reconhecidamente significativa como metodologia de investigação social, a história oral tem ganhado cada vez mais espaço nos meios acadêmicos devido ao seu papel de instrumento de luta política, capaz de revelar sujeitos e discursos geralmente ocultados nas análises históricas e de outras disciplinas. Diante de processos recentes de fragmentação e desenraizamento de modos culturais, a história oral vem se constituindo como uma boa alternativa metodológica para a compreensão das problemáticas dos sujeitos, das memórias, culturas e identidades. Esta prática é, portanto, uma alternativa crítica à análise das novas questões históricas e sociais que se colocam no século XXI.

É nesse contexto que Alessandro Portelli, atualmente professor de literatura norte-americana na Universitá di Roma “La Sapienza” e também fundador do Circolo Gianni Bosio, que incentiva e promove pesquisas sobre músicas e culturas populares, organiza uma seleção de textos – nos quais a metodologia da história oral é a via principal de investigação histórica e social – e publica-os com o nome de Ensaios de história oral. Diante dessas novas questões em debate, em que é necessário considerar discursos individuais e compartilhados como instrumentos do processo de formação das identidades, Portelli fornece refl exões sobre as implicações metodológicas e políticas do conhecimento que produzimos.

A importância da obra aqui considerada se dá justamente porque os ensaios nela contidos procuram discutir, separadamente, as formas de se utilizar o discurso oral como instrumento de pesquisa e análise histórica. Para além disso, Alessandro Portelli propõe um olhar crítico em relação às entrevistas que realizou, desmistificando discursos e abrindo novas possibilidades interpretativas.

Sobre a importância do trabalho metodológico a partir da história oral, Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado ressaltam que “na história oral, existe a geração de documentos (entrevistas) que possuem uma característica singular: são resultado do diálogo entre entrevistador e entrevistado, entre sujeito e objeto de estudo; isso leva o historiador a afastar-se de interpretações fundadas numa rígida separação entre sujeito/objeto de pesquisa, e a buscar caminhos alternativos de interpretação” (Ferreira; Amado, 2006, p. xiv).

A obra é iniciada com uma apresentação de Yara Aun Khoury e segue com a compilação de dez textos inéditos em língua portuguesa. Esses ensaios são o resultado de uma obra autoral que vem sendo construída desde 1970 e que revelam o olhar de Portelli sobre as relações entre memória e história. O autor também dá demonstrações de como os discursos pessoais, coletivos e ofi ciais constroem, de maneiras singulares, interpretações sobre determinada memória.

Logo no primeiro ensaio, “Sempre existe uma barreira: a arte multivocal da história oral”, o autor analisa como a relação entre história e memória toma forma na narração oral. Diz ele: “A ‘entre/vista’, afinal, é uma troca de olhares. E bem mais do que outras formas de arte verbal, a história oral é um gênero multivocal, resultado do trabalho comum de uma pluralidade de autores em diálogo” (p. 20). É dessa maneira que o autor recorre à história oral para entender como acontece a combinação entre narrativa em primeira pessoa com referentes espaciais e sociais coletivos que dão o suporte para que entendamos a construção de uma determinada memória cultural.

Sobre a formação de uma identidade coletiva, o autor escreve, por exemplo, o ensaio de número quatro, “Éramos pobres, mas… Narrar a pobreza na cultura apalachiana”, no qual examina os discursos de moradores das montanhas apalachianas do Tennessee. Neste texto, ele procura compreender como, na visão dos próprios moradores, a pobreza era uma situação que provocava um misto de raiva/vergonha e autonomia/orgulho. Encarada dentro de uma comunidade relativamente igualada pela subsistência e autonomia provocadas por uma economia não monetária, a pobreza era vista pelos moradores como um meio para a sobrevivência, já que era o motor dessas relações. Por outro lado, fora desse convívio supostamente igualitário, os moradores se sentiam ofendidos quando eram levados, por exemplo, a participar de uma economia monetária da qual não podiam fazer parte. Ao ouvir os discursos, o autor consegue entender por que, para essas pessoas, e dentro dessa comunidade, as relações de afeto eram mais importantes que as relações monetárias.

A questão das relações entre documentos individuais e realidades transindividuais é tratada no ensaio “O melhor limpa-latas da cidade: A vida e os tempos de Valtero Peppoloni, trabalhador”, no qual Portelli considera a trajetória de vida de um trabalhador de fábrica e de serviços em geral da cidade industrial do Terni, na Itália. Para o historiador, é necessário entender que a narrativa de Valtero Peppoloni recai em padrões, estruturas e motivos discursivos arcados em conjunto: “Há elementos coletivos e compartilhados nessa história que são sufi cientes para justifi car que a descrevamos como documento representativo da cultura da classe trabalhadora local” (p. 182).

Dessa forma, a obra de Alessandro Portelli tem significativa importância para os estudos de história oral. Analisando narrativas e interpretando diferentes discursos, Ensaios de história oral é uma referência importante para se compreender a memória, a oralidade, a cultura popular e os relatos de vida. É também crucial para aqueles que pretendem investigar, a partir da história oral, com um olhar crítico e preocupado com as questões metodológicas dessa prática.

Referências

FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006.

Larissa Jacheta Riberti – Mestranda em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).