História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários | Ana M. Mauad, Juniele Almeida e Ricardo SAnthiago

Este texto pretende resenhar o livro História pública no Brasil: Sentidos e itinerários, obra organizada por Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo de Almeida e Ricardo Santhiago. Nesta importante publicação, os organizadores reúnem textos de alguns dos principais pensadores sobre história pública no Brasil e em outros países. O livro passa a ser uma referência imprescindível por ser plural e apresentar várias perspectivas sobre o tema.

A proposta tem dois momentos. No primeiro, pretendo constituir um panorama geral do livro naquilo que, na minha perspectiva, é mais importante para a história pública. No segundo momento eu proponho uma pequena reflexão/contribuição já que participei dos dois simpósios retratados no livro1 e também por que sou membro da Rede Brasileira de História Pública.

Um panorama geral do que é tratado no livro

Na introdução os organizadores chamam a atenção para a importância do papel da história como uma das bússolas orientadoras da vida política, social e cultural contemporânea diante da dificuldade de lhe dar com tantas informações que são despejadas nas mais variadas redes e mídias sociais e que criam uma enorme desorientação. Esta necessidade de orientação relaciona-se à duas questões fundamentais para a história pública e para a história de maneira geral: a questão da memória e da consciência histórica.

Na primeira parte, que se intitula “História Pública, Questões Gerais”, o texto de Ricardo Santhiago analisa a consolidação da História Pública no Brasil e tenta abarcar todas as instâncias de atuação do historiador público. No segundo artigo Renata Schittino nos pergunta sobre o significado do conceito de público: Que público é este que aparece na noção de história pública? A historiadora nos sugere então que “é possível pensar uma ideia de história pública onde a história científica não encarna a posição de juiz do passado, (…), e não toma para si a tarefa de desenvolver a consciência histórica levando conhecimento ao público leigo”. (SCHITTINO, 2016: 29) A História pode ser pensada a partir do conceito de compartilhamento, que é uma das maneiras de vislumbrar o significado daquilo que é público e que alimenta o diálogo com o mundo comum. Juniele Rabêlo de Almeida assume o parentesco “de maneira radical” entre a história oral e a história pública. Almeida considera que não se trata de substituir a ciência histórica em favor da pública, mas estabelecer um diálogo entre os espaços interessados em produzir história. Michael Frisch, sempre uma referência quando se trata deste tema, também colabora no livro com o artigo que tem um título bem sugestivo: “história pública não é uma via de mão única, ou, De A Shared Autority à cozinha digital, e vice-versa”. Frisch foi o criador do conceito de autoridade compartilhada, termo que retoma neste artigo, pedindo para que se reflita sobre o verdadeiro significado que se atribui ao conceito que passou a ser utilizado de forma generalizada. Linda Shopes dialoga com Frisch, também demonstrando que a história pública e história oral guardam parentesco e se aproximam pelo predomínio da história social, a preocupação com as audiências e o desenvolvimento das mídias digitais. No debate com Frisch sobre o compartilhamento da autoridade no fazer histórico, Shopes demonstra a preocupação de que o historiador possa se transformar num mero “amanuense”, falhando “em exercer a autoridade da compreensão histórica fundamentada, em levantar questões difíceis, em trabalhar contra o grão da incompreensão popular”. (SHOPES, 2016: 65). Mesmo elogiando o impulso democrático da ética da colaboração, ela diz que o historiador não pode se isentar da autoridade da compreensão histórica fundamentada em um trabalho exigente e rigoroso. Apenas o compartilhamento ou disponibilização de um determinado material nem sempre ajuda na reflexão crítica. Por outro lado, um acesso sem mediação pode “aumentar exponencialmente as chances de má interpretação, intencional ou não”. (SHOPES, 2016: 65)

A segunda parte do livro tem por nome ‘História pública e o universo da criação”. Ana Maria Mauad propõe em seu texto estabelecer tanto uma relação entre as artes visuais e a escrita da história pelos usos do passado quanto pensar como a geração de Rosângela Rennó dialogava com o que era chamado de “a morte da fotografia” e também de “fim da História”. Para a autora toda arte é histórica, e toda imagem possui uma historicidade que tem por esteio as práticas culturais e sociais, o que se traduz no conceito de Cultura Visual, noção que ela desenvolve ao longo da discussão. No próximo texto, Mônica Almeida Kornis, analisa as relações entre o cinema, a televisão e história pública comparando duas produções que criaram representações do governo de Vargas, uma feita para o cinema e outra para a televisão. Kornis examina as semelhanças e diferenças de ambas as narrativas, apontando que, pelos motivos apresentados ao longo da sua discussão, o tratamento televisivo foi mais instigante do que o cinematográfico. Em ambos os casos, a forma da matriz melodramática se faz presente, na chave de um thriller político que mobiliza a emoção do espectador de diferentes maneiras. O último ensaio desta sessão é o de Miriam Hermeto. Neste capítulo, chamado Brasis (en)cantados: Ensino de história e canção popular, territórios de uma história pública” a historiadora analisa um trabalho de extensão universitária que reflete sobre as possibilidades do fazer histórico, nos limites entre o ensino de história e a canção popular. Hermeto assume o risco de analisar um projeto do qual é parte constituinte, apresentando a cartografia das ações desenhadas para este, expondo as frentes de trabalho desenvolvidas e finalmente fazendo a reflexão sobre estas possibilidades, até apontar para uma abordagem do ensino da história em que a canção popular seja vista como um “território de produção”, um conhecimento construído por um diálogo, realizado de maneira não hierarquizada.

A terceira parte trata da relação entre a história pública e as comunicações. No texto de Marinalva Barbosa, intitulado Imprensa e História Pública, a autora debate os usos do passado pelos meios de comunicação e como se dá, como ela mesmo diz, a equação entre estes meios e a história. O segundo texto é de Rodrigo de Almeida Ferreira e o seu título é “O cinema na história pública: Balanço do cenário brasileiro (2011-2015). Nele se discute a relação entre cinema e história pública, identificando como historiadores, realizadores de cinema e outros profissionais que trabalham com filmes relacionam-se com a história. Anita Lucchesi e Bruno Leal Pastor de Carvalho escreveram juntos História digital: reflexões, experiências e perspectivas. Eles perguntam como as tecnologias digitais transformam a maneira de produzir a história e mesmo a historiografia. Por último nesta seção, David King Dunaway nos fala sobre a relação entre o rádio e a história pública, no texto intitulado Rádio, História Oral e História Pública. Na sua perspectiva a escuta radiofônica é um encontro intenso e emocional que representa uma possibilidade efetiva de se fazer história.

A quarta parte discute a relação entre história pública, educação e ensino de História. Everardo Paiva de Andrade e Nivea Andrade insistem, no texto chamado História Pública e educação: tecendo uma conversa, experimentando uma textura, na busca pelo diálogo e o reconhecimento da diferença na constituição de um conhecimento constituído em rede. Thais Nívea de Lima Fonseca julga ser necessário pensar na utilização de vários recursos, como as revistas, acadêmicas mas também as não acadêmicas, como suporte para o desenvolvimento do conhecimento da história. O texto as operações que tornam a história pública: a responsabilidade pelo mundo e o ensino de história, de Fernando de Araújo Penna e Renata da Conceição Aquino da Silva propõe um duplo objetivo, que são problematizar a relação entre o ensino de história, ou de qualquer outra disciplina, e o mundo político e também problematizar a ideia de que o historiador escreve apenas para os seus pares, “argumentando que o profissional da área de história pode realizar diferentes operações – em variados lugares sociais, através de práticas específicas e produzindo textos de natureza diversa – com inserções no mesmo mundo público”. (SILVA e PENNA,2016: 181) O quarto texto, da pesquisadora Sonia Wanderley tem por nome Narrativas contemporâneas de história e o ensino escolar. Nos diz que o historiador tem a função de se voltar para os mais variados espaços públicos onde a memória e a cultura histórica são importantes, para além dos limites da academia, onde os indivíduos possam encontrar uma auto compreensão ou sentido para as suas ações. Ela também analisa as várias formas de narração, como a midiática, marcada pela lógica da sociedade do consumo e do presentismo.

Hebe Mattos e Martha Abreu abrem a quinta parte do livro chamada de Políticas Públicas e Políticas Culturais. O texto das autoras, chamado “A história como performance: Jongos, quilombos e a memória do tráfico ilegal de escravizados africanos”, reflete sobre o processo de identificação de três comunidades negras do estado do Rio de Janeiro e sobre os processos de patrimonialização de manifestações culturais. Maria Gouveia de Oliveira Rovai, preocupa-se, em outro texto, com a reflexão sobre as políticas públicas que norteiam as ações culturais do Estado e da sociedade civil, no seu dever da memória e a obrigação da preservação, em combate ao presentismo. Lia Calabre fecha esta sessão discutindo a contribuição de políticas públicas para a ampliação de direitos e do patrimônio imaterial de culturas populares pesquisados a partir de vários jongos no sudeste.

Abrindo a sexta parte, que finaliza este amplo livro, Beatriz Kushnir, reflete sobre as iniciativas do Arquivo público do Rio de Janeiro, seus avanços e limitações para se tornar, a partir da perspectiva historiográfica e arquivísticas, um espaço mais democrático. O segundo texto é de Benito Bisso Schmidt e narra a experiência de coordenar a curadoria da exposição “Bom Fim: um bairro, muitas histórias”. O texto de Jorge Ferreira é muito instigante para a discussão sobre o significado da história pública. O título é: De volta ao ´público: João Goulart-uma biografia. Neste artigo ele fala, em primeira pessoa, sobre a repercussão da sua obra. Já Adriane Vidal Costa analisa o papel dos intelectuais públicos na revista cubana Casa de las Américas, mais especificamente o número 45, de 1967. O artigo de Daphne Patai é o último e o mais polêmico. O nome do texto é intelectuais públicos como propagandistas políticos. Ela defende a ideia de que a politização extrema da academia faz com que os acadêmicos abdiquem da sua obrigação com o conhecimento científico e se tornem propagandistas, e não educadores.

Finalmente o posfácio de José Newton Coelho Meneses vai muito além de amarrar, com muita maestria, todos os textos. Para ele a questão central é a questão das memórias sociais, muitas das vezes impregnadas das motivações ideológicas e vontades políticas, fora e dentro da academia, memórias que devem ser analisadas criticamente pelos historiadores públicos.

Pequenos apontamentos

A partir de agora pretende-se apresentar uma reflexão de tudo que foi lido aqui, fazendo uma retomada crítica de todos os textos. Parece ser consenso que os historiadores já praticavam a história pública há muito, na maneira como se relacionavam com outras áreas de conhecimento, trazendo o audiovisual para o debate historiográfico e também para a sala de aula, fazendo história oral, discutindo sobre memória e patrimônio, etc… A questão da consciência histórica e da memória, seus enquadramentos e apropriações são temas que perpassam a maioria dos textos de alguma maneira. Também é recorrente o reconhecimento de que outras formas de se fazer história são possíveis, outras escritas, outras narrativas, realizadas através da fotografia, do vídeo, nos museus e espaços de memória, ou mesmo as chamadas audiografias, uma maneira de se fazer história através dos sons2.

A História Pública reconhece que nós historiadores não somos os únicos capazes de produzir um conhecimento histórico “legítimo”. Nesta perspectiva Ricardo Santhiago nos chama a atenção para que sejamos capazes de “enfrentar” as mídias sem demonizá-las. Mas, por outro lado, Sonia Wanderley e Marinalva Barbosa, nos mostram que as mídias se acostumaram a ver o passado a partir da ótica de um eterno presente, ou de maneira sensacionalista e melodramática, como aponta o trabalho de Mônica Kornis.

Também a questão do crescente interesse pela história é uma recorrência nos textos. Então a discussão sobre história pública também passa pela necessidade premente de que a história firme-se como uma autoridade, bússola e guia, ou quem sabe como um suporte para que os vários atores a escrevam. A questão da legitimidade dos trabalhos acadêmicos continua a ser importante, a meu ver. O que se coloca em questão é uma certa postura arrogante que tratava a produção vinda da academia como a única capaz de ter um certificado, um lastro. Não se trata, portanto, de opô-la às produções com outros formatos, que podem dialogar com os vários públicos a que se destinam.

Por outro lado, parece ser um consenso que história pública é irmã da história oral, mas não se confundem, no entanto. A história oral é uma forma dialógica de se produzir história, de maneira compartilhada, também constituída no espaço público. A história pública, de maneira mais ampla e incorporando a história oral também, situa-se no cotidiano dos homens, “no diálogo entre interpretações memorialísticas, o conhecimento histórico e seu ensino, sua apropriação pelas mídias, sua apreensão em `lugares de memória´, o tratamento e guarda dos documentos orais, escritos e iconográficos, tudo isso e muito mais” (Meneses, 2016: 331), que permitem a apreensão das memórias sociais, e da história. A história aparece como uma conversa, um diálogo com suas várias instâncias de produção, inclusive na produção de documentos orais.

Finalmente o texto de Jorge Ferreira nos coloca uma pulga atrás da orelha. Alguns podem ver a história pública como um facilitador do conhecimento, uma tradução simplificada que possa chegar aos vários públicos a partir de uma linguagem mais acessível. Mas o sucesso de uma obra de tal fôlego como a deste autor não nos permite ter uma visão simplificadora da história pública, resumindo-a uma questão de escrever fácil ou escrever difícil. Daí o desafio das audiografias que estou propondo, na medida que ainda acho importante manter o rigor com as fontes e ter um compromisso ético com a própria história, mesmo narrando em um outro suporte, que tem lá as suas características.

As audiências são várias também e plurais. Foi muito acertada então a insistência de Rabelo para que Jorge Ferreira publicasse o seu texto. Mas temos que enfrentar estes desafios, se quisermos sair do que alguns dos autores chamaram de torre de marfim dos historiadores e reconhecer que se faz história também em outros lugares de memória.

Notas

1 Refiro-me aqui ao “I Simpósio Internacional de História Pública: A história e seus públicos”, realizado em 2012, na Universidade de São Paulo e ao “II Simpósio Internacional de História Pública”, realizado em 2014 na Universidade Federal Fluminense.

2 Sobre as audiografias, poderíamos citar dois projetos: o “Paisagens Históricas”, sob a coordenação do autor deste texto. Cf.: https://www.facebook.com/historicaspaisagens/ . Também poderíamos citar o projeto “No tempo do Samba”, desenvolvido e coordenado pelo pesquisador Antônio Marcelo Jackson. Cf.: https://www.facebook.com/notempodosamba/#

Referências

MAUAD, Ana M; ALMEIDA, Juniele R.; SANTHIAGO, Ricardo. (Orgs.). História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários. São Paulo, Letra e Voz, 2016.

ALMEIDA. Juniele Rabêlo; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Orgs.). Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.

CORREA, L. O. As audiografias: uma conversa histórica através dos sons. In.: Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura – dossiê História Pública. Campinas/SP: UNICAMP, n.22, v.28, 2014, p. 73-80.


Resenhista

Luiz Otávio Corrêa – É graduado em História (Licenciatura e Bacharelado) (1999) pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Possui Mestrado em Ciências Sociais pela mesma instituição (2002). Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense. Também possui pós-graduação em Comunicação Social: Criação e produção em Mídia Eletrônica pela UNI-BH.


Referências desta Resenha

MAUAD, Ana M.; ALMEIDA, Juniele R.; SANTHIAGO, Ricardo. (Orgs.). História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016. Resenha de: CORRÊA, Luiz Otávio. Os vários significados da História Pública. Revista Transversos. Rio de Janeiro, v. 07, n. 07, p. 253-260, set. 2016. Acessar publicação original [DR]

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