Histórias de abandono: infância e justiça no Brasil (década de 1930) | Silvia Maria Fávero Arend

As duas últimas décadas do século XX, no Brasil, marcam um aumento significativo de estudos no campo da infância e da juventude, em diversas áreas das Ciências Humanas. Histórias de abandono é uma contribuição imprescindível ao campo no âmbito da História, narrando com sensibilidade as transformações, na vida das famílias pobres, decorrentes da implantação do Juizado de Menores em Florianópolis, na década de 1930. Utilizando uma vastidão de fontes documentais, com centralidade nos Autos, relatórios e ofícios produzidos por este Juizado, Silvia Maria Fávero Arend analisa sob a perspectiva de diferentes personagens o cenário social da Florianópolis do período, e nele, como viviam meninos e meninas sob os auspícios do abandono.

O livro foi produzido sob a forma de tese de doutoramento em História, estando dividido em cinco capítulos. O primeiro, chamado “Na cidade os primeiros parentes são os vizinhos”, decorre sobre a territorialidade espacial, étnica e de classe, dos meninos e meninas que ingressaram no programa social assistencial executado pelo Poder Judiciário. A historiadora demonstra que as transformações urbanas de caráter civilizatório, ocorridas na cidade nas primeiras décadas do século XX, bem como o movimento migratório de famílias rumo à Capital catarinense, fosse pela busca de emprego, fosse seguindo os passos da parentela, em caráter temporário, acabou originando todo um grupo de pessoas que não estava inserido nas redes tradicionais de auxílio da cidade. A partir deste dado são narradas as experiências migratórias, as condições de moradia e as formas de inserção social dos descendentes de açorianos e madeirenses, dos afrodescendentes e das famílias recém-chegadas à cidade, grupos cujas crianças são protagonistas dos Autos emitidos pelo Juizado, entre os anos de 1936 e 1940.

O capítulo aborda, ainda, a atuação da rede assistencial de amparo, tanto de entidades filantrópicas quanto de indivíduos ligados ao grupo político que comandava a cidade no período, que se centrava nos habitantes do perímetro urbano, dada a necessidade de um maior controle social deste espaço com relação aos distritos. Da mesma forma, o conjunto de Autos utilizado para escrita desta narrativa aponta, também, uma maior intervenção do Poder Judiciário em famílias que habitavam a região urbana.

Os arranjos familiares e as condições de subsistência das famílias são analisados na tentativa de compreender o processo de transferência das crianças e dos jovens aos lares substitutos, através da mediação do Poder Judiciário. Esta temática, foco do segundo capítulo, nos leva a conhecer as representações de gênero e as possibilidades do mundo do trabalho entre as camadas pobres de Florianópolis, valores que seriam levados em conta para que as crianças e os jovens fossem considerados, ou não, abandonados.

Os valores da norma familiar burguesa norteavam as ações do Juizado de Menores. Também em outras esferas este discurso estava sendo disseminado, como nas peças de teatro, no rádio, nos cultos religiosos e nos espaços de labor femininos e masculinos. No entanto, diferentemente do que ocorreu em outros países, no Brasil a exigência de inserção das pessoas nos valores burgueses da família e do trabalho não veio acompanhada de aumento salarial ou de possibilidades reais de ascensão social. A situação de pobreza das famílias é um dado que caracteriza, neste momento, a participação no programa assistencial do Juizado de Menores.

Uma dissolução nas relações provocava, geralmente, o “desaparecimento” dos homens. A incapacidade de sustentar um novo lar juntamente com a prole da relação antiga, muitas vezes provocou este desaparecimento dos pais consanguíneos do convívio com os filhos. Em outras situações, os homens “escapavam” de assumir um casamento ou coabitar com as jovens que engravidaram por uma questão de lealdade, moral e material, com a parentela com a qual habitavam. Já no que tocava às mulheres – as chamadas “mães solteiras” – uma vez envolvidas em novas relações, eram vistas com maus olhos pelos profissionais do Juizado de Menores, que as consideravam vivendo em “situação contrária aos bons costumes”. Nestes casos, a falta do pai provedor, aliado à condição de suposta desonestidade da mãe levava à necessária intervenção na família, sendo os filhos do casal considerados abandonados.

A narrativa nos leva a conhecer um pouco as formas de pensar e de agir dos grupos populares, evidenciando uma série de práticas perpetradas pelos progenitores quando desejavam que seus filhos e filhas fossem considerados abandonados e, assim, enviados à casa de guardiões. Esta maneira de proceder buscava a sobrevivência das crianças e dos jovens e tinha, para os pais consanguíneos, um caráter temporário. Silvia Maria Fávero Arend mostra como, para atingir este objetivo, estas pessoas se apropriavam estrategicamente dos valores da norma familiar burguesa, demonstrando algum conhecimento sobre os valores esperados pelos operadores da lei. Homens e mulheres que se afirmavam sem recursos para prover a prole, por exemplo, e que solicitavam que seus filhos fossem tutelados por guardiões apareciam de maneira positiva aos olhos do Juiz de Menores, que julgava a atitude como zelosa com relação ao futuro dos filhos. A historiadora afirma que, “para os representantes do poder judiciário, mesmo que não fosse conforme a configuração propalada pelos discursos da norma familiar burguesa, estas pessoas acabavam cumprindo o que era esperado delas, ou seja, responsabilizar-se pela criação de seus filhos” (AREND, 2011: 118). A esta densa discussão sobre a família dos grupos populares a autora intitulou “Os filhos da mãe”.

“Um poder sobre a vida”, terceiro capítulo da obra, aborda a trajetória assistencial voltada à infância e à juventude em Florianópolis nos séculos XVIII e XIX, até a implantação das políticas públicas levadas a cabo pelo Estado brasileiro na década de 1930. A autora nos leva a conhecer as características das ações sociais neste período, em que as relações entre as entidades católicas, dos representantes do Poder Judiciário e do Poder Executivo estaduais, culminaram na implantação da Roda dos Expostos, na Caixa de Esmolas e no Asilo de Órfãs São Vicente de Paulo, por exemplo. Este Asilo, criado em 1910 a partir dos esforços da Irmandade do Divino Espírito Santo, junto com a paróquia Nossa Senhora de Desterro e do Governo do Estado de Santa Catarina, inaugura as chamadas políticas sociais de abrigamento, um modelo de política social que vigorou no Estado, no âmbito leigo e religioso, até meados da década de 1990.

Não escapa aos olhos da historiadora a relação complexa entre a rede assistencial de amparo existente em Florianópolis, através das instituições asilares e caritativas e as tentativas de controle social dos pobres urbanos, que colocavam em cena a atuação das elites, não no sentido de proporcionar possibilidades de ascensão social, mas no de fornecer, sob a lógica da dádiva, proteção nos planos material e simbólico à população pobre. Da mesma forma, as ações do Juizado de Menores na capital catarinense foram levadas a cabo a partir da bandeira das políticas sociais de assistência implementadas pelo primeiro governo de Getúlio Vargas para os trabalhadores urbanos e não da alegada função de “salvar as crianças do Brasil”, como ocorreu em alguns estados do país, no mesmo período.

O quarto capítulo aborda as práticas de nominação de uma parcela dos pobres urbanos de Florianópolis no início do século XX. Neste momento, a prática de nominar a parentela a partir da utilização do sobrenome não era uma norma entre os grupos populares. Com relação aos descendentes de madeirenses e açorianos, era muito comum a prole receber como segundo nome o primeiro nome do genitor do mesmo sexo, ou seja, as meninas tinham como segundo nome o primeiro nome da mãe e os meninos, o primeiro nome do pai. Já entre os afrodescendentes, tanto os meninos como as meninas levavam como segundo nome o primeiro nome do pai. Silvia Maria Fávero Arend sugere que, entre os citadinos urbanos, esta prática se referia à importância do reconhecimento das relações de filiação expressa no segundo nome. Ou seja, dadas as relações de ajuda mútua que se estabeleciam entre uns e outros, a identificação da filiação era mais importante do que o reconhecimento pelo sobrenome de toda uma parentela.

Num segundo momento somos levados/as a conhecer o universo jurídico das práticas voltadas à infância e à juventude em Florianópolis através dos chamados inquéritos sociais. Nesta documentação a historiadora desvenda as estratégias dos operadores do direito na “qualificação” dos casos, mediante análise das qualidades morais e materiais dos pais, com o objetivo de deixar, ou não, uma possibilidade para que estes reavisem seus filhos e filhas no futuro. Quando o magistrado inseria os menores no Inciso II do Capítulo IV, Artigo 26 do Código de Menores de 1927, por exemplo, ele estava enquadrando os pais como impossibilitados momentaneamente da criação dos filhos e filhas, por motivo de pobreza, doença ou ausência, situação que poderia ser revertida. Em algumas situações, como no caso das meninas Madalena e Margarida, a mãe poderia ter considerado um alívio a intervenção do Juizado através do programa social colocação familiar, uma vez que, sozinha, ela não conseguia prover o sustento da família nem resolver a questão da indisciplina das filhas. Já a situação de José e Leôncio foi considerada pelos pais como um ato de grande arbitrariedade, pois os meninos, que auxiliavam financeiramente em casa, foram “sequestrados” pelo Poder Judiciário.

A suspensão do Pátrio Poder, conforme a redação do artigo 395 do Código Civil de 1916, previa a tutela do Estado brasileiro aos considerados abandonados, como os meninos e meninas cuja história nos conta este livro. A historiografia que aborda a temática da assistência à infância e à juventude no Brasil designou estas pessoas “Os filhos do Estado”, título deste quarto capítulo.

O quinto e último capítulo deste Histórias de abandono narra, por fim, as experiências das crianças e dos jovens nas casas dos guardiões. A permanência, durante o século XIX e início do XX, da prática de acolher os filhos das famílias pobres estava associada, de acordo com uma série de estudos abordados pela historiadora, à necessidade de suprir a falta de mão de obra doméstica. Por outro lado, na Florianópolis deste momento, tal objetivo se confundia com a prática da caridade e também, da estratégia de controle social dos despossuídos.

A utilização da mão de obra dos menores na morada dos guardiões era um dado rotineiro dentre os casos analisados. As meninas, a partir dos 7 anos, eram socializadas nos lares substitutos como babás ou inseridas nas tarefas domésticas. A pesquisadora infere que era mais fácil para os pais consanguíneos, por esta razão, encontrar lares substitutos para as meninas do que para os meninos. A possibilidade de fazer as meninas circularem por vias informais, realizando os trabalhos domésticos na casa da parentela ou conhecidos talvez explique o número bastante inferior do sexo feminino entre os Autos de Abandono Administrativos de Menores, naqueles anos. Os meninos, por sua vez, eram escolhidos para serviços cuja força física era um requisito, ou em atividades comerciais ambulantes. Enquanto que, nos anos 1930, havia um forte movimento contrário ao trabalho fabril infantojuvenil, este estudo nos mostra que, outras atividades, como as circenses, domésticas e também as relativas ao comércio eram toleradas, pois, de acordo com o discurso vigente, não comprometiam o bom desenvolvimento físico e mental dos infantes e dos jovens.

Com relação aos guardiões, ou seja, as famílias que recebiam as crianças e os jovens em suas moradas, Silvia Maria Fávero Arend identifica três grupos: um, formado por funcionários públicos de baixo escalão, comerciantes e policiais militares, além de um pequeno número de profissionais liberais; outro, composto por mulheres idosas, celibatárias ou viúvas, em geral, que viviam sozinhas; e um terceiro grupo formado por pessoas das camadas populares da cidade, mais comumente, neste caso, tios, primos ou vizinhos da família consanguínea da criança ou do jovem. A historiadora considera importante frisar que, além de se valer da mão de obra dos meninos e meninas, estes guardiões, até a inauguração do Abrigo de Menores na capital catarinense, em 1940, recebiam a soldada, ou seja, um montante de dinheiro que deveria suprir os gastos dos mesmos com “Os filhos de criação” – designação que dá título a este capítulo. As correspondências e os relatos das mães consanguíneas, bem como de sua prole, demonstra que a relação simbólica de ser pai ou mãe “de criação” não ameaçava as representações de filiação entre as mães e filhos consanguíneos. Talvez estas mães pobres entendessem que os laços “de sangue” falariam mais alto na construção e manutenção dos vínculos. Da mesma forma, o status dos filhos e filhas de criação não se confundia com aquele da prole consanguínea dos guardiões; de fato, em nenhum dos casos analisados pela historiadora efetivou-se a adoção das crianças e dos jovens por suas famílias substitutas.

A implantação do programa social colocação familiar, executada pelo Juizado de Menores em Florianópolis a partir de 1936 pretendia muito mais, no plano das ações sociais, do que garantir a subsistência dos/as menores considerados abandonados. No entanto, a rede assistencial de amparo da cidade, como abordada neste livro, tinha outras motivações, que se referiam, em grande parte, à questão da necessidade de mão de obra, sobretudo doméstica. Silvia Maria Fávero Arend considera que “estas concepções diferentes em relação aos infantes tornaram, do ponto de vista dos representantes do Juizado de Menores, o programa social relativamente ineficaz” (AREND, 2011: 303). A historiadora infere que a opção por uma política social de abrigamento levada a cabo pelo Estado brasileiro nas décadas posteriores, está associada, em parte, às experiências relativas à colocação familiar, como esta narrada na capital catarinense. Apesar de grande parte dos menores terem, em algum momento, frequentado grupos escolares, por exemplo, estas experiências tiveram curta duração, em geral, não os capacitando mais do que para ler e escrever, precariamente. Estas histórias de abandono acabaram por reproduzir, para seus protagonistas, os lugares e os papéis de classe e gênero de suas famílias de origem.

A partir da sensibilidade que esta temática suscita, Joana Maria Pedro prefacia a presente obra pontuando o minucioso trabalho de articulação realizado pela autora, que instrumentaliza os conceitos de classe, gênero, geração, etnia/raça, cujo resultado é uma narrativa inovadora, que emociona e faz pensar. A apresentação do livro, por sua vez, ficou a cargo da historiadora Maria Teresa Santos Cunha. Em um breve texto, esta estudiosa contribui no sentido de recordar que, estudos como este, à luz de problemáticas do tempo presente, esmiúçam um outro mundo, mas contribuem para entender as precariedades crônicas do nosso país.


Resenhista

Camila Serafim Daminelli – E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

AREND, Silvia Maria Fávero. Histórias de abandono: infância e justiça no Brasil (década de 1930). Florianópolis: Editora Mulheres, 2011. Resenha de: DAMINELLI, Camila Serafim. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 8, n. 15, jan./jun. 2014. Acessar publicação original [DR]

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