História das mulheres e do gênero em Minas Gerais / Cláudia Maia e Vera L. Puga

Escrever a história das mulheres e do gênero ainda é uma tarefa ousada. Desde os anos 1980, o tema chega ao Brasil e se consolida como um campo definido de pesquisa para as/os historiadoras/es ganhando visibilidade, apesar de ainda sofrer restrições no interior das instituições acadêmicas. O número significativo de publicações revela gradativo fortalecimento desse campo, como atesta o crescimento das publicações de livros, artigos em revistas especializadas, teses, dissertações e simpósios temáticos versando sobre o tema. O que significa escrever uma história das mulheres e do gênero? A história se tornou o lugar a partir do qual o feminismo questionou o sujeito universal moderno (homem, branco, heterossexual e cristão), fazendo emergir uma vasta gama de sujeitos históricos em suas especificidades de gênero, étnico-raciais, sociais e sexuais.

O livro História das mulheres e do gênero em Minas Gerais, organizado por Cláudia Maia (UNIMONTES) e Vera Puga (UFU) resulta de uma parceria de longa data entre as organizadoras, que são pesquisadoras conceituadas e bastante atuantes nos simpósios sobre “História das mulheres e do gênero” na Associação Nacional de Professoras/es Universitários de História (ANPUH). Cláudia Maia é doutora em História pela Universidade de Brasília, na área de Estudos Feministas e de Gênero, e pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Atua como professora adjunta do Departamento de História e dos Programas de Pós-graduação em História e de Letras/Estudos Literários, da Universidade Estadual de Montes Claros. Vera Puga é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), desde 1998, e atualmente faz parte de algumas comissões: do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (ENADE-Formação Geral) e da Secretaria de Políticas para as Mulheres (Comitê Técnico-Institucional, questões de gênero). É professora Associada II da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), onde atua no Programa de Mestrado e Doutorado em História Social, no Núcleo de Estudos de Gênero e Mulheres (NEGUEM) e na Revista Caderno Espaço Feminino, como editora.

O livro em questão conta ainda com a participação de pesquisadoras/es de vários estados brasileiros que se debruçaram sobre  diferentes momentos da história das mulheres em Minas Gerais, partindo de variados tipos de fontes e abordagens metodológicas. Foi publicado pela Editora Mulheres e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Trata-se de uma coletânea de 552 páginas, organizada em quatro partes que indicam os múltiplos olhares sobre as mulheres mineiras: 1) transgressoras e insubmissas mineiras; 2) damas, donas do sertão; 3) saberes e fazeres femininos; 4) casamento e maternidade: mecanismos de um destino social.

A primeira parte da obra é constituída por textos que tratam das variadas ações de mulheres mineiras em diferentes temporalidades e espaços, para romper com as amarras das tradições patriarcais. Através da escrita sensível da pesquisadora Diva do Couto Muniz, conhecemos professoras mineiras cujo conjunto de ações “insubordinadas, indóceis e indisciplinadas” fincaram um marco de resistência ante o conjunto das estratégias elaboradas nas Minas oitocentistas, para circunscrevê-las a um ideal de mestra, recatada e submissa. Encontramos também as mulheres que ousaram contrariar regras “sagradas” e constituíram famílias com padres, mesmo estando sujeitas a sanções sociais, conforme divisou Vanda Praxedes. Mulheres mineiras livres ou escravizadas com suas práticas e estratégias em favor da abolição, como a escravizada Catarina que se destacou pela “astúcia empreendida em seus projetos de liberdade” (p.87), são desveladas por Fabiana Macena. A mineira Maria Lacerda de Moura, sua trajetória e escrita libertárias compõem o texto escrito por Cláudia Maia e Patrícia Lessa. Os três últimos textos discorrem sobre a escrita feminina: Maura Lopes Cançado e sua vida marcada pela insanidade e transgressão das normas de gênero, cuja obra Hospício é Deus foi discutida de forma densa por Márcia Custódio e Alex Fabiano Jardim. Contribuindo para visibilizar as mulheres negras e suas escritas, Constância Duarte nos presenteia com uma análise belíssima de parte da obra da escritora mineira Conceição Evaristo. Nos contos analisados, as personagens negras nos convidam a conhecer suas trajetórias, nas quais a intersecção entre gênero, etnia e classe se fazem presentes nas suas estratégias, vivências e resistências cotidianas. Fechando a primeira parte, conhecemos Márcia, prostituta de Pouso Alegre, cujas cartas são analisadas por Varlei do Couto a partir da noção foucaultiana de escrita de si. Vivendo e lutando num contexto em que as campanhas de moralização e higienização sociais têm como foco seu local de trabalho e residência, Márcia elabora táticas de resistência, enquanto troca correspondências com pessoas de sua estima, nas quais fala de si e de sua posição frente à sociedade em que vive.

Na segunda parte da obra, intitulada “Damas, donas do sertão”, os olhares das/os pesquisadoras/es se voltam para as regiões consideradas mais distantes de Minas Gerais: os sertões longínquos, tradicionalmente considerados como espaços do desmando e poderio falocêntricos, agora são relidos sob novo viés. Assim, conhecemos por meio do texto de Gilberto Noronha as imagens contraditórias construídas sobre Joaquina de Pompéu e sua atuação no Oeste de Minas Gerais, entre os séculos XVIII e XIX. Em alguns discursos, ela é a mulher reta, recatada e justa; em outros, figura como “caudilho de saias” ou “sinhá Braba”, colérica, descomedida sexualmente e cruel com seus subordinados. Dona Tiburtina de Andrade Alves é outra mulher cuja posição ativa suscitou inúmeras representações: seu envolvimento em episódio sangrento da política de Montes Claros, no início do século XX, foi lido e relido ao longo do tempo a partir de várias perspectivas, sendo ora louvada, ora criticada, conforme destacam as autoras Maria de Fátima Nascimento e Filomena Cordeiro Reis. Correndo mundo através da literatura, as personagens femininas de Guimarães Rosa, tão vivazes quanto os viventes de carne e osso, em suas ações destecem o tecido da tradição falocêntrica e conduzem os destinos por caminhos por elas mesmas traçados. Zidica, Rivília e “Dlena, aranha em jejum” apresentam possibilidades de “desarticular o estabelecido” e nos são apresentadas com sua astúcia, pela pena sutil de Telma Borges.

Os textos que compõem a terceira parteda obra, denominada “Saberes e fazeres femininos”, têm em comum o cuidado das/o autoras/res em ouvir as próprias mulheres acerca de seus conhecimentos e práticase das formas pelas quais atuaram em suas comunidades. As falas das narradoras são permeadas de satisfação em rememorar suas trajetórias de vida e, ao mesmo tempo, reiteram sentidos tradicionais sobre as atividades consideradas como apanágio feminino ou masculino. Através do texto de Lúcia Helena da Costa, acessamos as narrativas das parteiras do norte de Minas Geraiscujas práticas de partejar sofreram a interferência dos médicos no processo de medicalização da saúde das mulheres e dos recém-nascidos, a partir dos anos de 1950. No texto de Cairo Katrib e Fernanda Naves, nas memórias de mulheres congadeiras em Ituiutaba se entrelaçam trajetórias pessoais e a prática cultural do Congado. Durante muito tempo silenciadas pela tradição judaico-cristã, as vozes das mulheres que atuaram na fundação de Igrejas pentecostais no Norte de Minas Gerais são enfim ouvidas por meio da pesquisa de João Augusto dos Santos. A ligação entre os fazeres considerados como femininos ligados à cozinha e aos hábitos alimentares mineiros são discutidos por Mônica Abdala. Ainda sobre saberes, temos as narrativas das mulheres trabalhadoras rurais no Triângulo Mineiro, visibilizadas por Maria Andréa Angelotti. A exclusão feminina do acesso à educação formal é discutida por Leila Almeida, que se debruça sobre as narrativas de mulheres de Januária acerca de suas trajetórias de escolarização. As hierarquias de gênero que comumente estabelecem restrições diversas às mulheres marcaram a vida de muitas das narradoras, que foram impedidas de estudar durante a juventude por maridos ciumentos e obrigações domésticas. Encerrando a terceira parte, conhecemos a luta pela terra travada pelas mulheres negras remanescentes de um Quilombo em Paracatu, através da pesquisa de Maria Clara Machado e Paulo Sérgio da Silva.

O casamento e a maternidade têm sido apontados enfaticamente como formas de aprisionamento das mulheres, transformados em destinos social e biológico circunscrevendo as mulheres na esfera da casa e da família, submetidas a cerceamentos e violências. A quarta e última parte do livro se caracteriza por discutir os dispositivos sociais responsáveis por restringir as mulheres às funções de esposas e mães, bem como as estratégias encontradas por muitas para se livrarem de situações de violência em casamentos infelizes. Helen Ulhôa Pimentel examina documentação do século XVIII do tribunal eclesiástico instalado em Paracatu. A autora estuda o papel da Igreja quanto ao casamento e a possibilidade de anulação do mesmo. Entre a documentação encontrou vários casos nos quais as mulheres resistiram às imposições da Igreja e a procuravam buscando se livrar de situações intoleráveis, como casamentos violentos, o caso, por exemplo, de Joana de Souza Pereira. Na sequência, também tratando de casamento e divórcio, temos o texto de Dayse Lúcide Santos, que discute a legislação brasileira, do final do século XIX e início do século XX, acerca do tema e analisa alguns processos de separação ocorridos em Diamantina. Uma das conclusões a que chega é a de que havia um descompasso entre as normas instituídas pelo Estado e pela Igreja e as vivências de homens e mulheres, o que levava a transgressões da norma. Os discursos produzidos no início do século XX sobre os papéis das mulheres na formação dos cidadãos nas regiões do triângulo mineiro constituem foco da pesquisa de Florisvaldo Ribeiro Júnior. As mulheres eram “alvos de prescrições físicas e morais de jornalistas, médicos, intelectuais, políticos e padres”, que procuravam estabelecer normas e controle sobre os seus corpos e condutas. Temos, aqui, excelente análise a respeito da relação entre as representações de gênero e os projetos de Nação Moderna do período. Na sequência, os discursos de mães adolescentes sobre maternidade e casamento, em Uberlândia, são analisados por Carla Denari, que percebe um descompasso entre os discursos do Estado acerca da gravidez na adolescência e os sentidos positivos que as mães adolescentes atribuem à maternidade e ao casamento. A educação enquanto espaço de produção das diferenças de gênero é objeto de Vera Lúcia Puga que percorre criticamente o processo educacional dicotômico, desde o século passado, com os internatos separados por sexo, até o presente, com a permanência da educação binária que se evidencia pelo funcionamento da escola deprincesas em Uberlândia.

Enfim, o livro como um todo oferece uma importante contribuição paraa história eos estudos de Gênero; seu diferencial é a abordagem centrada nas mulheres mineiras de várias regiões do estado, suas atuações em cada contexto ondese inseriram na luta pela liberdade de existir e agir. Se por um lado a obra congrega estudos variados que pretendem visibilizar as ações das mulheres mineiras, por outro tem nessa diversidade de perspectivas a emergência de alguns problemas: em alguns textos percebe-se que as mulheres estão subsumidas nas condições históricas de suas sociedades, em outros é possível vislumbrar a ideia de predestinação de determinadas mulheres para a atuação política em seus contextos. Notam-se também algumas lacunas no que tange às mulheres indígenas e às lesbianas, denotando uma ausência de estudos sobre essas mulheres em Minas Gerais e apontando, por outro lado, para a possibilidade de exploração destes campos pelas novas levas de historiadoras/es feministas. As brechas apontadas não diminuem o mérito da obra, visto que, nós historiadoras/es feministas somos conscientes de que todo texto histórico é parcial. Nesse sentido, as organizadoras na apresentação explicam que o “livro não teve a pretensão de percorrer o conjunto dos estudos que têm sido desenvolvidos sobre mulheres e gênero em Minas Gerais no campo da História, mas é uma pequena mostra desses estudos”1. Dentro do proposto, o livro contribui imensamente para que se conheça um pouco mais da história das mulheres mineiras.

Rosana de Jesus dos Santos – Doutoranda em História na Universidade Federal de Uberlândia.Bolsista Fapemig.E-mail: [email protected].


MAIA, Claúdia; PUGA, Vera Lúcia (Org.). História das mulheres e do gênero em Minas Gerais. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2015. 552p. Resenha de: SANTOS, Rosana de Jesus. História histórias. Brasília, v.3, n.6, p.223-227, 2015. Acessar publicação original. [IF]

Histórias de abandono: infância e justiça no Brasil (década de 1930) | Silvia Maria Fávero Arend

As duas últimas décadas do século XX, no Brasil, marcam um aumento significativo de estudos no campo da infância e da juventude, em diversas áreas das Ciências Humanas. Histórias de abandono é uma contribuição imprescindível ao campo no âmbito da História, narrando com sensibilidade as transformações, na vida das famílias pobres, decorrentes da implantação do Juizado de Menores em Florianópolis, na década de 1930. Utilizando uma vastidão de fontes documentais, com centralidade nos Autos, relatórios e ofícios produzidos por este Juizado, Silvia Maria Fávero Arend analisa sob a perspectiva de diferentes personagens o cenário social da Florianópolis do período, e nele, como viviam meninos e meninas sob os auspícios do abandono.

O livro foi produzido sob a forma de tese de doutoramento em História, estando dividido em cinco capítulos. O primeiro, chamado “Na cidade os primeiros parentes são os vizinhos”, decorre sobre a territorialidade espacial, étnica e de classe, dos meninos e meninas que ingressaram no programa social assistencial executado pelo Poder Judiciário. A historiadora demonstra que as transformações urbanas de caráter civilizatório, ocorridas na cidade nas primeiras décadas do século XX, bem como o movimento migratório de famílias rumo à Capital catarinense, fosse pela busca de emprego, fosse seguindo os passos da parentela, em caráter temporário, acabou originando todo um grupo de pessoas que não estava inserido nas redes tradicionais de auxílio da cidade. A partir deste dado são narradas as experiências migratórias, as condições de moradia e as formas de inserção social dos descendentes de açorianos e madeirenses, dos afrodescendentes e das famílias recém-chegadas à cidade, grupos cujas crianças são protagonistas dos Autos emitidos pelo Juizado, entre os anos de 1936 e 1940. Leia Mais

Estudos Feministas e de Gênero / Cristina Stevens, Susane R. Oliveira e Valeska Zanello

Entre os dias 28 e 30 de maio de 2014 foi realizado na Universidade de Brasília (UnB) o II Colóquio de Estudos Feministas e de Gênero: Articulações e Perspectivas. O evento, de caráter interdisciplinar, recebeu pesquisadoras/es de diversos lugares do país e contou com a apresentação de inúmeros trabalhos que tem como foco as mulheres, os feminismos, a sexualidade, as identidades e relações de gênero. Os trabalhos apresentados por professoras/es e pesquisadoras/es doutoras/es nas sessões de conferência e mesas redondas foram selecionados, avaliados e reunidos em um livro digital, organizado pelas professoras Cristina Stevens, Susane Rodrigues de Oliveira e Valeska Zanello. Este livro, intitulado Estudos Feministas e de Gênero: Articulações e Perspectivas, lançado em 2014 pela Editora Mulheres de Santa Catarina, contou também com o apoio da CAPES, da Universidade Livre Feminista e do CFEMEA. A obra está disponível gratuitamente para download, em formato PDF, no site do CFEMEA e do Colóquio (www.coloquiofeminista2014.com).

A realização desse Colóquio e, consequentemente, a publicação dessa obra, evidenciam que os questionamentos feitos pelos movimentos sociais continuam em vigor. Ao conquistar espaço no universo acadêmico, as reivindicações feitas por ativistas e simpatizantes encontram a oportunidade de não apenas contestar o que ocorre nas ruas e na vida cotidiana, mas também o que ocorre dentro das Universidades. Dessa forma, são apresentados novos pontos de vista e novos saberes que certamente contribuirão para a renovação das ciências. Os textos reunidos nessa coletânea seguem a tendência da intersecionalidade ao trabalhar, também, com questões raciais e de classe, tão discutidas atualmente pelos feminismos. Segundo as próprias organizadoras,

A surpreendente conclusão que podemos tirar a partir da leitura desses textos multifacetados é a de que as perspectivas feministas e de gênero nas produções acadêmico-culturais são bastante diversas em suas articulações com questões de raça, etnia, geração, sexualidade, religião, classe, dentre outras. Os textos que integram este livro incorporam novos idiomas críticos, visões políticas e ferramentas teórico-metodológicas na abordagem do binômio Feminismos-Gênero em áreas diversas como Antropologia, Artes, Cinema, Direito, Educação, Filosofia, Física, História, Literatura, Psicologia, Publicidade e Sociologia. Sem dúvida, os trabalhos são testemunhos positivos do dinamismo promissor desta relativamente recente área de estudos, experiências e práticas acadêmico-culturais [1].

O livro apresenta quarenta e sete capítulos e está dividido em sete partes, sendo elas: 1) Perspectivas feministas na pesquisa acadêmica; 2) Corpo, violência e saúde mental; 3) Mulheres e literatura: do medievo à contemporaneidade; 4) Educação, ciência e diferenças de gênero; 5) Imagens, cinema, mídia e publicidade; 6) Ações, direitos e políticas; 7) Identidades, experiências e narrativas.

A primeira parte da obra apresenta os textos de cinco conferencistas brasileiras que possuem larga experiência de pesquisa e produção intelectual feminista, são elas Débora Diniz, Susana Funck, Tania Swain, Sônia Felipe e Sandra Azerêdo. Débora Diniz apresenta as “Perspectivas e articulações de uma pesquisa feminista”. A autora defende que o gênero é um regime político que encontra na família sua instituição reprodutora e cuidadora. Diniz também recupera o conceito de patriarcado tratando-o como uma tecnologia moral. Segundo ela, é possível retomar esse conceito e ser sensível “às expressões locais de sua governança pelo presente histórico” [2]. Com isso, a autora propõe que toda pesquisa sobre gênero será feminista, uma vez que tal empreendimento é capaz de desafiar o regime político de sexagem dos corpos.

Susana Funck fala dos desafios atuais dos feminismos, com ênfase nos estudos literários e culturais e suas influências em outros campos do saber. Desse modo, a autora ressalta que, embora, muitas das agendas feministas já estejam incluídas nos estudos acadêmicos e nos movimentos sociais de grande parte das nações contemporâneas, suas metas de igualdade e diversidade ainda estão longe de serem alcançadas. Nesse sentido, observa que um dos maiores desafios talvez seja o de desmistificar a prática feminista como uma unanimidade monolítica e fazer valer as várias facetas da categoria gênero, perpassadas como são por vetores de raça, classe, nacionalidade, sexualidade, faixa etária e tantas outras diferenças.

A historiadora Tania NavarroSwain, em seu texto “Por falar em liberdade…”, analisa os dispositivos que se colocam em ação para sustentar a diferença sexual, os chamados subsistemas constitutivos do patriarcado. Segundo a autora, a diferença sexual, que é implantada no imaginário ena materialidade de corpos sexuados, constitui motor de ação patriarcal e exercício de poder. Assim, destaca que o patriarcado se impõe pela violência, pela persuasão/amor e por uma sexualidade que se impõe como centro identitário e de significação do ser.

A filósofa Sônia Felipe apresenta uma importante reflexão sobre o feminismo antiespecista. Nesse caso, o termo “especismo” pode ser compreendido como similar ao “machismo” e ao “racismo”. O termo foi elaborado pelo cientista e filósofo inglês Sir RichardRyder ainda o século XX para descrever a discriminação e exploração perpetradas pelos seres humanos contra outros animais sencientes. Para Ryder, usar, “abusar, explorar e matar animais para consumo e divertimento humano é uma forma de posicionar os seres humanos acima de todos os animais e de alimentar o padrão machista e racista que rege as relações de poder entre os humanos”. Por fim, Sônia Felipe propõe como opção ética uma perspectiva ecoanimalista do feminismo, afinal “Os machistas tratam as mulheres de forma especista: como animais. E as mulheres, incorporando e emulando o mesmo especismo, tratam os animais como matéria destituída de espírito, portanto, inferiores” [3].

Já a psicóloga Sandra Azeredo, no texto “O que é mesmo uma perspectiva feminista de gênero?”, destaca que o gênero, como uma categoria central na teorização feminista que problematiza as noções de sexo e sexualidade, tem necessariamente que incluir outras categorias, especialmente a categoria raça, em suas teorizações, de modo a contribuir para práticas de emancipação. No encerramento do texto a autora ressalta que

(…) uma perspectiva feminista de gênero significa partir da igualdade, nos abrindo para o encontro com as outras pessoas (inclusive os animais não humanos), com respeito, nos rendendo, mútua e voluntariamente, aos ditames da intersubjetividade [4].

A segunda parte do livro reúne os textos de Érica Silva, Gislene Silva, Valeska Zanello, Ionara Rabelo, Marcela Amaral, Ana Paula de Andrade, Gláucia Diniz e Cláudia Alves. Trata-se de estudos desenvolvidos no campo da psicologia e da literatura, sobre a saúde mental feminina. No texto “Gênero e loucura: o caso das mulheres que cumprem medida de segurança no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios”, Érica Silva analisa os casos de dezesseis mulheres que cumprem medida de segurança no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. A autora destaca a prevalência de mulheres pobres, de baixa escolaridade, negras e pardas que estão sob a tutela do Estado. Por terem algum transtorno mental –geralmente em decorrência do uso de álcool e/ou drogas –, elas são consideradas inimputáveis ou semi-inimputáveis pela Justiça e destinadas à Ala de Tratamento Psiquiátrico localizada na Penitenciária Feminina do Gama, ou ao tratamento ambulatorial na rede pública e privada de saúde. Silva faz importantes questionamentos sobre o tratamento dado a essas mulheres que se encontram em um contexto de marginalidade e invisibilidade na sociedade brasileira. Por sua vez, o texto de Ana Paula de Andrade tem o objetivo de problematizar os atravessamentos das questões de gênero na política pública de saúde mental em seus diferentes níveis. Já o texto “Saúde mental, mulheres e conjugalidade”, de Valeska Zanello, ao tratar do caso clínico de uma mulher internada em um hospital psiquiátrico, cujo sintoma que se destacou foi “choro imotivado”, busca apontar o que a chancela do diagnóstico psiquiátrico “depressão” escondia.

A terceira parte, “Mulheres e literatura: do medievo à contemporaneidade”, reúne textos de Cíntia Schwantes, Cristina Stevens, Janaina Gomes Fontes, Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne, Virgínia Maria Vasconcelos Leal, Wiliam Alves Biserra e Nadilza Martins de Barros Moreira. O texto de Cristina Stevens avança, especialmente, no debate e reflexão sobre as representações literárias da violência contra as mulheres; focalizando a mudança radical de tratamento desta temática na contemporaneidade, quando as mulheres assumem a posição de sujeito dessas construções ficcionais e abordam o tema da violência como consequência da injusta dominação masculina na produção do conhecimento. Sobre as mulheres na literatura, Nadilza Moreira tece um esboço comparativo entre as obras de Nísia Floresta e Júlia Lopes de Almeida, ambas reconhecidas pelo pioneirismo na luta feminista ainda no século XIX. Em seu trabalho, Moreira vai elucidar que diversas mulheres do Brasil oitocentista se dedicavam à atividade intelectual e à escrita, inclusive resistindo às campanhas contrárias dos homens escritores que temiam a concorrência. Ao concluir, Moreira faz uma provocação: que mulheres como Nísia Floresta e Júlia Lopes de Almeida continuem sendo redescobertas pela Academia, pois elas “aguardam por mentes laboriosas, por pesquisadores desafiadores que queiram lhes dar a devida relevância, para colocá-las visíveis nas prateleiras da contemporaneidade” [5].

A participação feminina na educação e as questões de gênero nas ciências, especialmente nas disciplinas de física e história, são exploradas na quarta parte do livro. Diva Muniz, no texto “Memórias de uma menina bem comportada: sobre a experiência da alfabetização e a modelagem das diferenças”, apresenta uma análise de suas próprias experiências vividas na infância, nos anos cinquenta, no processo de alfabetização. Muniz revoluciona a narrativa historiográfica ao se colocar como sujeito da própria história, utilizando a própria memória para fazer considerações sobre todas as “tecnologias de gênero” que estiveram presentes em sua vida, bem como as formas de subversão e resistência à própria realidade. Assim escreve a autora,

Submetida a esse processo de disciplinarização escolar, fui sendo “fabricada” como menina educada e aluna aplicada aos estudos. Apesar e por conta desse processo, também me produzi como pessoa crítica, questionadora e independente e até mesmo impertinente. Afinal, somos assujeitadas às prescrições sociais e escolares, mas nunca de modo pleno: resistimos, negociamos, agenciamos outros termos, condições, posições e alianças; fazemos escolhas e recusas na constituição de nossas histórias e na configuração de nossas subjetividades [6].

Valéria Silva, com base nas teorias feministas, analisa as representações das mulheres nos livros didáticos escolares. Por sua vez, Susane Oliveira trata de questões relacionadas à inclusão da história das mulheres nos currículos escolares, atentando para as demandas dos movimentos feministas e delineando algumas propostas para a efetivação dessa inclusão, tendo em vista o potencial educativo da história das mulheres na promoção da cidadania e igualdade de gênero. A autora aponta que, para os avanços existentes ocorrerem, como no caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), foi necessária a mobilização dos movimentos sociais no processo. No caso do ensino da história,

Tais mudanças, somadas às inovações que ocorreram na historiografia e nas tendências pedagógicas na segunda metade do século XX, impuseram à história, enquanto disciplina escolar, um papel fundamental no reconhecimento e valorização das identidades e memórias de diferentes grupos sociais, especialmente daqueles que haviam sido marginalizados e/ou silenciados nos discursos históricos tradicionais, como as mulheres, os jovens, os trabalhadores, as crianças, os idosos, as etnias e minorias culturais [7].

Patrícia Lessa analisa os escritos da educadora Maria Lacerda de Moura, produzidos na primeira metade do século XX, cujas ideias sobre a libertação das mulheres e dos animais não humanos é bastante atual. O texto de Ademir Santana analisa a participação masculina no movimento feminista a partir de experiências na Física. Já Adriana Ibaldo versa sobre a desigualdade de gênero nas ciências exatas e a dificuldade que as mulheres precisam enfrentar para permanecerem na área. A autora apresenta dados sobre a produtividade feminina na física, que ainda é tímida –entre 6% e 25% –e relembra as situações cotidianas que podem levá-las à interrupção da carreira nos mais diversos níveis, como o machismo arraigado em ambientes majoritariamente masculinos e o estereótipo de que mulheres são inaptas às ciências exatas. Para a transformação desse cenário, a autora propõe medidas que incentivem o ingresso de jovens alunas aos cursos de física, como o projeto Atraindo meninas e jovens mulheres do Distrito Federal para a carreira em física, financiado pelo CNPq com foco em estudantes do Ensino Médio da rede escolar.

A quinta parte do livro, “Imagens, cinema, mídia e publicidade”, reúne oitos textos. O primeiro, de Maria Pereira analisa imagens de mulheres artistas no ocidente medieval. O texto de Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro dedica-se às representações imagéticas de mulheres negras no Brasil oitocentista em “Corpos negros no/do feminino em três movimentos: um exercício de (des) construção” analisando três imagens da época: duas fotografias e um quadro. Em seu trabalho, Carneiro tece importantes considerações sobre a intersecionalidade entre gênero e raça e como os corpos das mulheres negras eram representados no século XIX. Suas palavras elucidam que no interior dessa maquinaria “política ocidental corpos negros e cativos exibem marcas de sexo-gênero e de raça, extraídas e significadas como diferenças construídas na arquitetura da dominação do patriarcado escravocrata” [8]. Os textos de Liliane Machado, Mônica Azeredo e Sulivan Barros analisam as perspectivas de gênero nas produções audiovisuais (filmes e documentários). Os textos de Sandra Machado, Ana Veloso e Cynthia debatem os processos sociais engendrados pela publicidade e propaganda que tornam as mulheres imagens-espetáculo, fetiches e objetos de consumo, impondo padrões de comportamento e preconceitos socioculturais que esvaziam o sentido político das contestações dos grupos feministas.

A sexta parte do livro apresenta seis textos que versam sobre direitos e políticas públicas para as mulheres, desenvolvidos pelas/os autoras/es Ela Wiecko, Soraia da Rosa Mendes, Wanda Miranda Silva, Camila de Souza Costa e Silva, Lourdes Maria Bandeira, Tânia Mara Almeida, Carmen Hein de Campos, Ana Liési Thurler, Sônia Marise Salles Carvalho, Nelson Inocêncio, Umberto Euzébio e José Zuchiwschi. Os textos, das oito primeiras autoras, abordam, teórica e empiricamente, estratégias atuais de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres brasileiras, a partir de um campo interdisciplinar de conhecimentos científicos, redes interinstitucionais e movimentos sociais. São discutidas abrangências e limitações na aplicação da Lei Maria da Penha frente a paradigmas, valores e práticas fundadas em representações sexistas, bem como em identidades essencializadas e referenciadas pela articulação de múltiplas desigualdades (grupos de mulheres indígenas, pobres, negras, dentre outros). Já o texto de autoria dos quatro últimos autores/as, mencionados acima, trata da proposta da Universidade de Brasília na criação da Diretoria da Diversidade no Decanato de Assuntos Comunitários, que propõe reforçar o direito à diferença e o respeito à diversidade na comunidade acadêmica.

Já a sétima e última parte da obra, intitulada “Identidade, experiências e narrativas”, reúne os textos de Águeda Aparecida da Cruz Borges, Juliana Eugênia Caixeta, Lia Scholze, Maria do Amparo de Sousa, Lia Scholze, Cláudia Costa Brochado, Gilberto Luiz Lima Barral e Tania Swain. O texto de encerramento, “Histórias feministas, história do possível”, de Tania Navarro Swain expõe uma crítica às narrativas historiográficas que muitas vezes silenciam e excluem a participação feminina na história. Sua proposta se baseia em resgatar as histórias que, apesar de possuírem vestígios materiais e simbólicos, foram negligenciadas pelos historiadores. Segundo ela, esses profissionais “enclausurados em um imaginário androcêntrico, não conseguem pensar e nem ver aquilo que se abre à pesquisa, um mundo onde o feminino atuava como sujeito político e de ação” [9].

Enfim, a obra Estudos feministas e de gênero: articulações e perspectivas reúne uma amostra bastante significativa da produção intelectual feminista que vem se desenvolvendo nas universidades brasileiras, nas mais diversas áreas de conhecimento. Trata-se de uma produção reveladora da dimensão política dos estudos feministas e de gênero, que contribui não só na denúncia e crítica às desigualdades de gênero presente nos mais diversos espaços sociais, mas também na renovação dos saberes, oferecendo novos horizontes de expectativas à produção científica.

Notas

  1. STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Estudos Feministas e de Gênero: Articulaçõese Perspectivas. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2014, p. 9.
  2. DINIZ, Débora. Perspectivas e articulações de uma pesquisa feminista. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 12.
  3. FELIPE, Sônia. A perspectiva ecoanimalista feminista antiespecista. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 59.
  4. AZEREDO, Sandra. O que é mesmo uma perspectiva feminista de gênero? In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 84.
  5. MOREIRA, Nadilza Martins de Barros. Os manuais femininos/feministas de Júlia Lopes de Almeida dialogam com “(…) uma alma brasileira” de Nísia Floresta: esboço comparativo. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 249.
  6. MUNIZ, Diva do Couto Gontijo. Memórias de uma menina bem comportada: sobre a experiência da alfabetização e a modelagem das diferenças. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 260.
  7. OLIVEIRA, Susane Rodrigues de. Ensino de história das mulheres: reivindicações, currículos e potencialidades pedagógicas. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 260.
  8. CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro. Corpos negros no/do feminino em três movimentos: um exercício de (des)construção. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 356.
  9. SWAIN, Tânia Navarro. Histórias feministas, história do possível. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 613.

Ana Vitória Sampaio Castanheira Rocha – Doutoranda em História na Universidade de Brasília.


STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Estudos Feministas e de Gênero: Articulações e Perspectivas. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2014. 620p. Resenha de: História histórias. Brasília, v.2, n.4, p.200-206, 2014. Acessar publicação original. [IF]

Transparências da memória/estórias de opressão: diálogos com a poesia brasileira contemporânea de autoria feminina – SOARES (CP)

SOARES, Angélica. Transparências da memória/estórias de opressão: diálogos com a poesia brasileira contemporânea de autoria feminina. Florianópolis: Editora Mulheres, 2009. Resenha de: BRITTO, Clovis Carvalho. Mulheres e memória poética: opressão à flor da letra?. Cadernos Pagu, Campinas, n. 35, Dez. 2010.

A árvore da literatura de autoria feminina lança-nos mais um fruto: o recente livro de Angélica Soares sabiamente intitulado Transparências da memória/estórias de opressão: diálogos com a poesia brasileira contemporânea de autoria feminina. Fruto cujo sabor vem sendo experimentado reiteradas vezes pelo trabalho crítico e sensível da pesquisadora que já apresentou análises inspiradoras a exemplo das inauguradas em A paixão emancipatória: vozes femininas da liberação do erotismo na poesia brasileira (1999). Nas frestas entre lembranças e esquecimentos, a autora realiza uma ação duplamente significativa: sublinha o valor de punhos líricos femininos na literatura brasileira e, ao mesmo tempo, se destaca como uma legítima representante desse ofício na atividade crítica. Questão relevante quando relembramos que as mulheres por muito tempo (e porque não dizer ainda hoje) tiveram suas vozes embargadas no campo literário, enfrentando trajetórias de opressão ao ousarem modificar o silêncio ou os exíguos espaços que lhes eram destinados.

Vivenciando variadas formas de sujeição e dependência devido ao quadro implacável de assimetria nas relações entre os sexos, as mulheres, aos poucos, têm lutado pelo reconhecimento como protagonistas na cena intelectual brasileira. Uma atualização das dificuldades narradas por Virgínia Woolf quando relatou a luta que instituíram pelo acesso a voz no cenário literário inglês em Um teto todo seu (2004) e/ou um esforço para problematizar as muitas “zonas mudas” relacionadas à partilha desigual dos traços, da memória e da história, conforme os indícios demonstrados por Michelle Perrot em As mulheres ou os silêncios da história (2005). Nesse sentido, para além de relatar a opressão das mulheres poetas no campo literário brasileiro, Angélica desenvolve um esboço teórico-metodológico para identificar como tais estórias de opressão foram ficcionalizadas. Se não bastasse essa instigante co-relação entre mulher e memória, a pesquisadora fortalece a tradição crítica iniciada tardiamente entre nós por Lúcia Miguel Pereira, galgando espaços para que tanto as mulheres poetas quanto as críticas literárias adquiram visibilidade e reconhecimento na vida literária brasileira. Para tanto, destaca, de antemão, a opção epistemológica por não somente apontar a diferença das mulheres, mas atentar para a diferença nas mulheres.

Analisando a memória literária de diferentes mulheres, nos convida a observar indícios da opressão vivenciada historicamente no cotidiano feminino. Em uma espécie de arqueologia da escritura memorialística, a autora revela os modos como as poetas transparecem os efeitos da dominação masculina: do inconsciente reprimido à instituição de uma fala marcadamente provocadora, do agir mimeticamente ao homem à busca de uma atuação singular, entre exílios e máscaras à instituição de um lugar de fala e de uma fala própria. Examinando um caleidoscópio de vozes polifônicas, a partir do processo da reelaboração da memória, demonstra como a poesia contribui para materializar memórias desterritorializadas. A proposta dialoga com a metodologia de Kátia Bezerra, outra analista da lírica de autoria feminina e sua relação com a memória, especialmente quando compreende o ato de revisitar o passado como subversivo:

transmuta-se numa ferramenta crucial para compreender e denunciar os vários componentes que estruturam e oprimem a sociedade. Intenciona-se, assim, considerar a forma como esse projeto de escrita interroga o passado (Bezerra, 2007:13),

para melhor compreender as relações de força que se insinuam no presente.

Nessa linha de força ou relativamente recente tradição de pesquisa, se inserem os trabalhos de Angélica Soares. Na tensão entre lembrar e esquecer, reúnem reflexões sobre memória, memorialismo poético e questões de gênero, ressaltando diferentes instâncias e formas de opressão feminina poematizadas como escritas do eu que ao mimetizarem

estórias (individualizadas), acabam por remeter, metonimicamente, a histórias (coletivas), pela recriação lírico-dramático-narrativa de fatos verificáveis em documentos e trabalhos de pesquisas sociológicas (Soares, 2009:14).

Embora reconheça que a poesia de autoria de mulheres também registra situações e experiências de vida bem sucedidas, optou por destacar aspectos que demonstrem a mulher como objeto de domínio físico ou simbólico, visto que dialogariam com situações recorrentes na vida das mulheres em sua condição histórica de duplamente colonizada: pelo sistema social de sexo-gênero e por sofrer a colonização decorrente de uma visão dualista e oposicional na qual a mulher representa o pólo negativo.

O gênero se torna uma importante categoria analítica para a crítica literária e, nas palavras da autora, as estórias de opressão recriadas na poesia demonstram que, para além das diferenças de classe, etnia e orientação sexual, as mulheres compartilham uma situação opressiva variável. Pelas transparências da memória apresenta-nos as relações entre constituição da identidade e memória, movimentos de desconstrução das oposições binárias, procedimentos coercitivos e figurações relacionadas a resistências e clausuras, culminando na análise das opressões comumente vivenciadas nas trajetórias femininas: da solidão infantil às representações do envelhecer. Acertadamente a pesquisadora dialoga com Pierre Bourdieu (2005) ao examinar como a memória poética entrevê e explicita a dominação masculina, especialmente quando destaca mecanismos com vistas à integração, embora em espaços limitados ou pautados por rígidos controles. Mecanismos muitas vezes “perturbadores”, a exemplo do erotismo na escrita feminina que aciona nuanças políticas ao deslocar as mulheres da condição de meros objetos para uma posição de enunciadoras do desejo.

A primeira estação do itinerário analítico contempla poetas cujas obras emanam aberturas à metamemória, ou em outras palavras, autoras cujos projetos criadores demonstram acentuada preocupação com o conhecimento sobre os processos e monitoramento da memória, além de sentimentos e emoções relacionadas com o lembrar/esquecer. Nesse primeiro bloco, investiga as poéticas de Cecília Meireles, Adélia Prado, Marly de Oliveira, Helena Parente Cunha, Astrid Cabral, Arriete Vilela e Renata Pallottini, autoras de diferentes faixas etárias, regiões e condições sociais. A memória ao conduzir reflexões sobre sua própria dinâmica demarcaria as obras de acordo com especificidades. Cecília e a constituição de uma “encenação do esquecimento”; Adélia e o fugidio modo de experienciação; Marly e a impossibilidade de recuperar o passado exatamente como foi vivenciado; Helena e sua memória circular; Astrid e a mobilidade temporal da recordação; Arriete e os dinamismos míticos; Renata e a indissociabilidade entre tempo e espaço. Ao inventariar alguns versos desse conjunto heterogêneo e ao investigar aspectos da poesia memorialística contemporânea empreendida por mulheres, Angélica Soares se une a essas vozes, e sua obra, assim como as analisadas, se torna, ela própria, metamemória. Mas de que memórias essas mulheres falam, ou melhor, que memórias a pesquisadora selecionou da seleção empreendida pelas poetas? Resposta explicitada inicialmente no título da obra: estórias de opressão.

De posse dessas informações encaminha o leitor para uma segunda vereda relacionada a questões ideológicas de gênero e a consciência poética da exclusão histórica das mulheres. Subsidiada pelas reflexões de Teresa de Lauretis (1994), especialmente na concepção de que o pessoal é político, reafirma a importância de se pensar a diferença de mulheres e não só o diferente de Mulher. Denunciando as tecnologias de gênero e os discursos institucionais como responsáveis pelo campo de significação social, torna a categoria gênero como fundamental para a análise dos textos literários que, a partir de enfoques feministas, possibilitaria compreender as recriações de mulheres, oprimidas de incalculáveis maneiras em virtude da ideologia patriarcal. Essa leitura se aproxima de Michelle Perrot quando concebeu ser a memória, assim como a existência de que é prolongamento, profundamente sexuada. Seguindo essas considerações, Angélica Soares examina como a temática da opressão feminina comparece nos versos de Adélia Prado, Sílvia Jacintho e Astrid Cabral, espécie de cartão de visitas para um posterior aprofundamento na relação gênero, identidade e memória. Nessa ordem de ideias, destaca como emerge constantemente no memorialismo literário de autoria feminina um processo alienante, “falocêntrico”, a partir da identificação de bloqueios e limites ao autoconhecimento. Comprovando esse argumento rastreia exemplos desse processo em algumas imagens tecidas nos versos de Helena Parente Cunha, Myriam Fraga, Lara de Lemos, Marly de Oliveira, Lya Luft e Hilda Hilst. Contradições integrantes da constituição de identidade pelas mulheres, metaforizadas no jogo entre o fluido e o consistente, a fuga e o encontro consigo mesmas.

Se a dominação masculina acompanha historicamente a trajetória das mulheres e se a categoria gênero auxilia a visualização dessa opressão nas memórias líricas femininas, nada mais coerente do que encerrar o livro analisando o modo como as autoras poetizam as duas pontas da vida: a infância e a velhice. Não por acaso, os capítulos finais são dedicados a examinar poemas relativos à reconstrução da solidão infantil e às representações do envelhecer. A memória como testemunho cultural da opressão na infância, a partir das imagens criadas por Marly de Oliveira, Lya Luft e Neide Arcanjo, e como testemunho da opressão na velhice, nas obras de Adélia Prado, Diva Cunha, Alice Ruiz e Renata Pallottini.

O conteúdo das imagens selecionadas como corpus da obra é um convite para o reconhecimento da importância e para a leitura da poesia de autoria feminina contemporânea desenvolvida no Brasil. Do mesmo modo, o arcabouço teórico-metodológico criado por Angélica Soares é um estímulo a todos os pesquisadores que desejem compreender as implicações entre gênero, identidade, memória e opressão, com vistas a “avaliar, pela força do literário, as contradições e os avanços no percurso emancipatório feminino” (Soares, 2009:17). Itinerários de opressão muitas vezes silenciados e que as autoras, sentindo-os à flor da pele, transpareceram à flor da letra.

Referências

Bezerra, Kátia da Costa. Vozes em dissonância: mulheres, memória e nação. Florianópolis, Editora Mulheres, 2007.         [ Links ]

Bourdieu, Pierre. A dominação masculina. 4ªed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2005.         [ Links ]

De Lauretis, Teresa. As tecnologias do gênero. In: Hollanda, Heloísa Buarque de. (org.) Tendências e impasseso feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.         [ Links ]

Perrot, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru-SP, EDUSC, 2005.         [ Links ]

Soares, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas da libertação do erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro, DIFEL, 1999.         [ Links ]

Woolf, Virgínia. Um teto todo seu. 2ªed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2004.         [ Links ]

Clovis Carvalho Britto – Doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília. E-mail: [email protected].

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[MLPDB]

 

Uma casa sem cor – MUZART (REF)

MUZART, Zahidé Lupinacci. Uma casa sem cor. Florianópolis: Editora Mulheres, 2009. 28p. Resenha de: PAIVA, Kelen Benfenatti. Uma história de solidão. Revista Estudos Feministas v.18 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2010.

Conhecida pelo importante trabalho de resgate da literatura de autoria feminina no século XIX e pelo empenho em trazer à luz nomes esquecidos de mulheres de nossa história literária, Zahidé Lupinacci Muzart trilha, em 2009, caminhos ainda não percorridos por ela – a chamada literatura infantil – e publica, pela Editora Mulheres, Uma casa sem cor, livro de intensa sensibilidade poética, com belíssimas ilustrações de Márcia Cardeal.

Longe de seguir a antiga linha dos primeiros livros ditos infantis no Brasil, em que o tom pedagógico e moralizante predominava, Zahidé trata em seu livro – com total liberdade – de questões que por décadas foram evitadas para esse público leitor. A dor da perda, da ausência, da solidão e da morte será abordada em primeiro plano, bem como o será a capacidade da criança de sentir o mundo e os acontecimentos à sua volta. A autora vai, além de abordar um tema complexo, retratar a tentativa de aprender a viver e a conviver com a ausência.

Zahidé apresenta-nos, através da protagonista-narradora, uma menina de oito anos, a imagem de criança não como ser inocente e angelical, em processo de “vir-a-ser” ou um “adulto em miniatura”, mas um sujeito dotado de inteligência e sensibilidade, capaz de lidar, à sua maneira, com sentimentos e situações impostas pelas circunstâncias da vida e pelo mundo. Retrata a infância não como lugar da felicidade em que não há espaço para a morte e a dor, mas como lugar povoado por alegrias, curiosidades, tristezas e, sobretudo, solidão.

Sem ter ouvido dos adultos o verdadeiro motivo da partida do pai, ou seja, sua morte, a protagonista observa a casa, os objetos e as pessoas que a cercam para compreender essa ausência. A personificação da casa cinza, triste, de porta fechada, de “alma fechada”; as mudanças sofridas pela mãe de “olhos sempre doentes”, “eternamente vermelhos”; “mais quieta e sombria”, “o tempo todo fechada dentro de si mesma”; e as mudanças na rotina da família, como o fato de todos na casa não ouvirem mais música e só receberem “gente triste” ou não terem mais bolo nem arroz-doce aos sábados intensificam ainda mais o sentimento de falta experimentado pela menina.

As ilustrações predominantemente em tons escuros, acinzentados, criam com a narrativa o efeito de profunda tristeza. A grande metáfora da ausência será a falta de cores ou a predominância do cinza: “Se eu tivesse que dizer qual é a cor da nossa vida, Dona Zefa, diria que é cinza”, afirma a menina ao descrever a vida da família sem o pai.

A morte, temática tão recorrente na literatura, se abre nas páginas deste livro para trazer à tona outros temas, como a velhice, na figura da avó sempre se queixando de não ser ouvida pelo médico; a falta de dinheiro, quando a família perde seu mantenedor; o desejo da mãe de proteger a filha e de poupar-lhe o sofrimento, além da difícil tarefa de vivenciar a ausência.

A memória também terá papel de destaque neste livro, peça fundamental na vivência e convivência com a dor. Somente por meio dela se dá a possibilidade do reencontro, e aquele que partiu ressurge, revive e se presentifica nas rememorações da protagonista, “o som do seu riso, da sua voz, a alegria de seus gestos” e tudo o que lhe ensinou, como na ocasião em que lhe dissera que “bruxas são apenas mulheres que sabem mais do que os homens e que têm poderes de cura, poderes que os outros não têm e por isso falam mal delas […]”.

A criação de uma personagem que carrega consigo saberes populares deixa implícita a desierarquização dos saberes promovida pela autora, bem como evidencia os fragmentos da história das mulheres, como a perseguição daquelas que de alguma forma representaram uma ameaça aos padrões instituídos pelo poder. Ao deixar indícios dessa parte de uma história pouco lembrada, a autora reafirma sua concepção de criança como um ser capaz de apreender os diferentes saberes, entre os quais se encontra também o histórico.

À medida que a protagonista se aproxima da possibilidade de “reencontrar” o pai, ou seja, de saber por meio de Dona Zefa o motivo de sua partida, as cores claras e diversificadas surgem nas páginas do livro e voltam à vida da menina, que finalmente entende a morte dentro da vida.

Ao ler Uma casa sem cor, de Zahidé Lupinacci Muzart, o leitor pode constatar que adultos e crianças compartilham um mesmo universo complexo, povoado de alegrias e tristezas, e talvez por isso se possa afirmar que a autora, ao trilhar os caminhos da literatura infantil, fez um livro sem destinatário. É possível que adulto e criança se reconheçam e vivenciem essa história de solidão das mais diversas maneiras e intensidades, afinal a morte e a dor da ausência fazem parte de cada um de nós, inevitavelmente, em algum momento de nossas vidas.

Kelen Benfenatti Paiva – Universidade Federal de Minas Gerais.

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A construção dos corpos: perspectivas feministas – STEVENS; SWAIN (REF)

STEVENS, Cristina Maria Teixeira; SWAIN, Tânia Navarro (Orgs.). A construção dos corpos: perspectivas feministas. Florianópolis: Editora Mulheres, 2008. Resenha de: BENTO, Berenice. Corpo-projeto. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.17 no.1 Jan./Apr. 2009.

O que é um corpo? Hormônios, sangue, órgãos, aparelho reprodutor? A construção dos corpos, organizado por Cristina Maria Teixeira Stevens e Tânia Navarro Swain, reúne artigos que revelam muitos corpos sob o significado corpo. O livro é composto de 12 artigos escritos por sociólogas, historiadoras, psicólogas, educadoras e críticas literárias espalhadas entre Brasília, São Paulo e Rio Grande do Sul. Essa diversidade de áreas do conhecimento produz uma riqueza singular nas abordagens sobre o corpo, o desejo, a reprodução e a subversão das normas. Corpo dócil, inútil, domesticado, abjeto, celibatário, puro, lugar de produção de invisibilidade; corpos que resistem, subversivos. A urdidura dos artigos nos expõe a um léxico singular que marca um campo de estudos caracterizado por uma disputa com concepções naturalizantes e essencialistas sobre as identidades. O livro é resultado de trabalhos apresentados no Seminário Internacional Fazendo Gênero, em 2006.

O artigo “A construção de corpos sexuados e a resistência das mulheres: o caso emblemático de Juana Inés de la Cruz”, de Ana Liési Thurler, é uma contribuição lapidar na luta pela visibilização de personagens femininas que afirmaram a importância da participação da mulher na vida política e pública. Juana Inés de la Cruz, mexicana, viveu entre 1651 e 1695, ingressou no Convento das Carmelitas Descalças aos 16 anos. Ana Liési aponta que a entrada para a vida religiosa pode ser entendida como uma estratégia de resistência, afinal, ali poderia ler, escutar música, escrever e conviver em um ambiente exclusivamente feminino. Nesse ambiente, Juana escreveu defesas do direito à educação da mulher e à interpretação das Escrituras.

Mediante a história de Juana Inés, Ana Liési nos revela a disputa que circulava nas sociedades ocidentais em pleno processo de reorganização do contrato social. Ela viveu em um contexto histórico marcado por redefinições das posições que os gêneros deveriam ocupar na redistribuição dos poderes. Essa releitura caminhava de mãos dadas com a mudança que também estava em curso para a interpretação dos corpos do isomorfismo para o dimorfismo. Será a suposta diferença natural entre os sexos que sustentará as teses de contratualistas para justificar a exclusão da mulher da vida pública. Juana Inés seria a prova de que teses fundamentadas na estrutura biológica eram determinadas não por descobertas revolucionárias das ciências, mas por interesses de gêneros.

Ana Liési, ao mesmo tempo que nos apresenta a obra e a vida de Juana Inés, discorre sobre o pensamento de John Locke, um dos fundadores do contrato social moderno. O projeto de estruturação dos estados modernos esteve atrelado a novas configurações dos gêneros e, simultaneamente, à produção da matriz heterossexual. Para Locke, o consentimento livre da esposa à subordinação ao marido, por meio do contrato do casamento, não seria uma imposição, mas algo natural, consentido. Os contratualistas são intelectuais responsáveis pela tessitura de um dos dispositivos discursivos que formarão a matriz heterossexual e que encontrarão inteligibilidade nas complementaridades sexual e de gênero.

Ao pôr em diálogo Juana Inés e John Locke, Ana Liési termina por nos revelar as disputas e resistências em torno das verdades para os gêneros que estavam em processo de mudança. Juana Inés fez de sua vida um contraponto às normas então produzidas para presidir a vida das mulheres. A polaridade Locke e Juana é uma síntese dos acontecimentos mais amplos que ocorriam nessa época.

O artigo “Corpos que escapam: as celibatárias”, de Cláudia Maia, dialoga com o de Ana Liési visto estabelecer genealogias que desnaturalizam a distribuição desigual de poder entre o masculino e o feminino. A autora analisa as estratégias discursivas articuladas pelas enunciações médico-científicas, nas primeiras décadas do século XX no Brasil, as quais tinham o corpo celibatário feminino como a negação da natureza feminina. A referência de normalidade é o corpo feminino procriativo, no âmbito de uma relação regulada pelo Estado. A autora analisa a crônica A tragédia das solteironas, escrita em 1937 por Berilo Neves, na qual as mulheres não procriativas são interpretadas como seres portadores de corpos defeituosos, doentes e inúteis. A matriz heterossexual atrelada à biopolítica do Estado, que teve nos contratualistas alguns dos seus idealizadores, estava em pleno funcionamento. Um dos pontos fortes do artigo de Cláudia Maia está em apontar as fissuras e resistências que o dispositivo da sexualidade, nesse momento histórico, encontrava. A autora resgata os trabalhos de Maria Lacerda de Moura e Ercília Nogueira, feministas que criticam os discursos hegemônicos que destinavam e aprisionavam a mulher ao papel exclusivo de donas de casa. Cláudia Maia observa que há um alcance limitado dessas críticas à medida que a maternidade, instituição fundante da heterossexualidade compulsória, não é objeto de desconstrução na obra das feministas.

Os artigos da coletânea têm movimentos internos similares. Ao apontar o corpo como um lugar saturado de discurso, de poder, destacam as possibilidades de resistências, de fissuras. Além dessa questão, pode-se notar que há um núcleo de autores que se repetem nas referências bibliográficas, com destaque para as obras de Michel Foucault e Judith Butler. Possíveis pontos de unidade não retiram a singularidade de cada artigo, tampouco se pode esperar leituras uníssonas sobre conceitos e experiências, a exemplo da discussão sobre a maternidade desenvolvida por Cláudia Maia e Cristina Stevens. A maternidade para Cláudia Maia é uma instituição política, daí a leitura que médicos fazem do corpo celibatário, doente, varonil ou frígido. Assim, não é consequente criticar a heteronormatividade, para a autora, sem considerar a maternidade como uma das formas privilegiadas de controle dos corpos femininos.

A maternidade, para Cristina Stevens, no artigo “O corpo da mãe na literatura: uma ausência presente”, tem uma potência subversiva que deveria ser recuperada como prioritária pelos discursos e estudos feministas. A experiência da maternidade é analisada mediante a leitura da escritora Michelle Roberts, que destacará as fantasias inconscientes sobre a maternidade presentes em sua obra. Os romances da autora são analisados por Cristina Stevens como uma tentativa de pensar a maternidade para além da dualidade natureza/cultura, o que possibilita repensá-la a partir de uma perspectiva que desconstrói a mística da maternidade como identidade institucional imposta, para afirmá-la, conforme Cristina Stevens, como admirável experiência inovadora. Outra obra interpretada por Cristina Stevens é a do autor D. M. Thomas. Nessa obra, a autora destacará o caráter performático dado à questão do corpo da mãe e da maternidade.

Afirmar a maternidade como uma experiência singular do corpo-fêmea não significa que a autora não esteja atenta às armadilhas criadas pelas idealizações para a realização feminina pela reprodução. Cristina Stevens recupera a discussão tensa entre natureza e cultura, e, ao apontar a positividade dessa experiência, não resvala nos essencialismos que apontam uma suposta condição feminina ancorada na diferença sexual.

Da mesma forma que as outras autoras privilegiam pontos de tensão para pensar as rupturas e a reprodução da ordem de gênero, Cristina Stevens destacará os significados contraditórios da maternidade, entendendo-a como um lócus de poder e opressão, autorrealização e sacrifício, reverência e desvalorização.

Outra riqueza dessa coletânea está na pluralidade das pesquisas e do material utilizado. Ana Liési faz um estudo histórico do impacto da obra de Juana de la Cruz; Cláudia Maia debruça-se sobre textos de literatura e de escritoras feministas brasileiras de década de 1940; Cristina Stevens lê obras literárias para pensar a representação da maternidade. No artigo de Diva Muniz, há um resgate da dimensão desnaturalizante e desencializadora que a introdução do conceito de gênero representou nos estudos feministas. É municiada com esse arcabouço teórico, previamente analisado, que Diva Muniz nos apresenta sua interpretação do filme “O segredo de Brokeback mountain”.

Nos artigos, “Sobre gênero, sexualidade” e “O segredo de Brokeback mountain: uma história de aprisionamentos”, Diva Muniz fará uma importante e competente defesa da categoria gênero. Para ela, a introdução dessa categoria possibilitou pensar mulheres e homens não como essências biológicas predeterminadas, anteriores à história, mas uma identidade construída social e culturalmente no jogo das relações sociais e sexuais pelas práticas disciplinadoras e pelos discursos/saberes instituintes. A autora afirmará que os estudos orientados pela categoria analítica gênero recusam os limites empobrecedores de uma abordagem descritiva e disciplinar. Dessa nova perspectiva advêm as possibilidades subversivas. Sua força desestabilizadora estaria na capacidade de desnaturalização e desencialização do binarismo que caracterizara os estudos sobre as mulheres.

Para Diva Muniz, a recepção ao gênero pelos estudos históricos processou-se sem a necessária problematização. Nessa adoção descritiva e despolitizada, gênero tornou-se sinônimo de mulheres, de estudos das mulheres. A autora estabelece uma aliança teórica com um campo que pensa gênero como produto e processo de diferentes tecnologias sociais, aparatos biomédicos, epistemologias, práticas críticas institucionalizadas e práticas da vida cotidiana. Nesse sentido, o gênero, assim como o sexo/sexualidade, não é algo existente a priori nas pessoas, mas um conjunto de efeitos que fazem corpos.

A segunda parte do seu artigo é dedicada à leitura do filme “O segredo de Brokeback mountain”. A autora nos oferece uma leitura dos mecanismos de produção/reprodução do sistema de gênero na história de amor, silenciamento, aprisionamento, homofobia internalizada e violência que marca as biografias do casal Ennis e Jack.

Se no artigo de Diva Muniz há uma defesa da força do conceito de gênero, Heleieth Saffioti, em “A ontogênese do gênero”, discutirá os limites desse conceito. A autora proporá a revitalização da noção de diferença sexual, assim como da importância de seguir adiante com os estudos sobre mulher. Isso se justifica à medida que a situação das mulheres não mudou substancialmente nas últimas décadas, segundo a autora. A ênfase do seu artigo está nas formas de reprodução das estruturas assimétricas de gênero. Em sua crítica à utilização do conceito de gênero, afirmará que há um esquecimento do caráter biológico que constitui o ser social. A leitura dos artigos de Heleieth Saffioti e de Diva Muniz nos revela que o gênero está em disputa no âmbito das relações sociais e entre as/os pesquisadoras/os. Não há consenso.

A diversidade dos gêneros, os conflitos e as violências que fundam as identidades de gênero revelam que gênero e biologia se comunicam na exata medida em que a própria biologia já nasce generificada. O que entendemos quando falamos de mulheres oprimidas? De estrutura biológica? Nessa taxionomia orientada pela biologia para dividir as espécies, onde caberiam as mulheres transexuais? E mais: onde estariam as mulheres lésbicas transexuais que trazem em suas biografias camadas sobrepostas de exclusão e violência?

Além disso, conforme apontou Diva Muniz, resgatando Judith Butler,1 ainda que os sexos pareçam não problematicamente binários em sua morfologia e constituição, não há razão para supor que os gêneros também devam permanecer em número de dois.

Heleieth Saffioti afirma que ” […] é exatamente este fundamento biológico o elemento não problematizado no conceito de gênero” (p. 175). A dimensão biológica aparece no conceito de gênero não como um dado, estático, mas permanentemente desconstruído, desnaturalizado, em suspeição.

O que significou os estudos sobre as mulheres em termos de naturalização foi discutido pelo artigo de Diva Muniz. Há pesquisadores/as que continuam operando o olhar sobre as relações sociais de gênero com o olhar binário dos estudos sobre as mulheres. A invisibilidade das mulheres com cromossomas XX, das mulheres transexuais, das travestis e das lésbicas é um fato, no entanto, ao se propor visibilizar as mulheres XX, mediante a recuperação da centralidade dos estudos sobre mulheres; seria importante dizer de que mulheres Heleieth está reivindicando visibilidade. Seria das mulheres heterossexuais brancas? Das mulheres negras lésbicas? Das mulheres transexuais lésbicas? Ainda que se saiba que as hierarquias de gênero produzem uma profunda exclusão do feminino, é limitador e produtor de novas invisibilidades equacionar mulheres XX como o feminino e homens XY como o masculino.

Quando a autora afirma “seja no sentido de ter muitos filhos ou de ter apenas um, o fato é que as mulheres são manipuladas, estando o controle do exercício de sua sexualidade sempre em mãos masculinas” (p. 156), termina por produzir a invisibilidade de mulheres que fazem a opção por ter seus/suas filhos/as sozinhas e de casais lésbicos que lutam na justiça pelo direito à adoção e que decidem ter seus/suas filhos/as em novos arranjos familiares. Essas novas configurações tornam temerário afirmar que “a natureza do patriarcado continua a mesma” (p. 157).

O conceito de gênero, para Heleieth Saffioti, pode representar uma categoria meramente descritiva, embora prefira a utilização de “categorias de sexo”. Concordo com Diva, quando afirma que “uma das razões, porém, do recurso ao termo gênero foi, sem dúvida, a recusa do essencialismo biológico, a repulsa pela imutabilidade implícita em ‘anatomia é o destino'” (p. 120). O conceito de gênero não é palatável ou confortável, principalmente no âmbito dos estudos queer, marco teórico que me orienta na leitura dos artigos desta coletânea. Nas últimas décadas, nota-se uma considerável produção de pesquisas sobre o caráter performático das identidades de gênero, com isso, a tese de que há identidades de gênero normais e outras transtornadas foi posta em xeque e abriu um tenso e intenso debate com o poder médico.

Para os estudos queer, gênero pressupõe luta, não há espaço para neutralidade, mas para disputas, inclusive com a visão heterocentrada, que orientou e segue orientando parte dos estudos feministas. Gênero não é a dimensão da cultura por meio da qual o sexo se expressa, conforme afirma Heleieth, pois não existe “sexo” como um dado pré-discursivo. O sexo, conforme Butler, sempre foi gênero.2 O artigo de Heleieth Saffioti é importante à medida que nos revela que “gênero” está em disputa.

A autora nos apresenta uma leitura pouco otimista das mudanças nas relações entre os gêneros, posição contrastante com outros artigos da coletânea, a exemplo do artigo de Margareth Rago e Luana Saturnino Tvardovskas.

Norma Telles, em “Bestiários”, leva-nos ao mundo mágico da obra das artistas Leonora Carrington e Remédio Varo. Os livros das bestas, populares durante a Idade Média, são recuperados pelo surrealismo, movimento artístico que as influenciou consideravelmente. As taxonomias das espécies cedem lugar aos hibridismos, aos devaneios na obra das artistas. Norma Telles analisa como o pensamento vai sendo deslocado para a vida animalizada. Todo o esforço da ciência moderna em separar o mundo humano do mundo animal é posto em xeque pelos surrealistas e, particularmente, pelas artistas. Ao analisar contos e quadros das artistas, a autora aponta para a interação de animais e humanos, o que resulta em um mundo fantástico, onírico, onde imperam a indeterminação e a incerteza. A irreverência está presente na criação de corpos femininos, marcados pela liberdade animalesca. O hibridismo das personagens e figuras, segundo a autora, supera as limitações definidoras, aproximando realidades distantes e desconstruindo os gêneros.

Para Norma Telles, o binarismo arraigado e disseminado por todas as esferas da sociedade é posto em suspeição quando a confusão e a perturbação são resgatadas como matéria-prima para a produção das artistas. A abjeção de corpos sem definição, meio animal, meio gente, cria um campo de reflexão sobre normalidade e patologias. As artistas, seus quadros e contos, não exigem provas nem verdades únicas. Apresentam novos arranjos, anedotas, para apresentar a maleabilidade do corpo, dos seres, das metamorfoses.

O horror à indeterminação e à confusão no processo de classificação dos gêneros resulta na ideia de que a normalidade dos gêneros está baseada na diferença sexual. A verdade do sexo não permite ambiguidades. Homem e mulher não se confundem nunca, afirma o saber médico. A confusão e o hibridismo, se existem, são expressões de corpos enfermos. Caberia à ciência corrigir os erros da natureza. Dessa forma, as transexuais e travestis seriam casos de hibridismo que encontram o único lugar possível de existência nos compêndios médicos. São experiências identitárias carimbadas como transtornos. Quando Leonora Carrington e Remédio Varo representam um mundo sem a suposta coerência linear e binária que estrutura o pensamento moderno, dizem-nos que há muitos mundos. O hibridismo não é algo externo ao humano, mas está presente em nossos sonhos, em nossos desejos e nas subjetividades.

Os artigos de Silvana Vilodre Goellner e Tânia Fontenele-Mourão apresentam resultados de pesquisas que analisam processos de construção de corpos femininos pautados pelas idealizações do gênero feminino. O artigo “Cultura fitness e a estética do comedimento: as mulheres, seus corpos e aparências”, de Silvana Vilodre Goellner, discute a cultura fitness como mecanismos que funcionam em torno da construção de uma representação de corpo como sinônimo de saúde e beleza. O corpo trabalhado é associado a termos plenos de positividades, dentre eles, “bem-estar”, “qualidade de vida” e “vida saudável”. Para Silvana Vilodre, a cultura fitness desdobra-se de diferentes maneiras e, de forma persuasiva, captura as mulheres com a promessa de felicidade.

Um dos pontos que podem ser destacados, a partir das reflexões da autora, é o caráter incluso da construção dos corpos generificados. A ideia de corpo-projeto materializa-se nas práticas que constituem a cultura fitness. O corpo apresenta-se como uma substância precária que precisa da confirmação e do reconhecimento da feminilidade e masculinidade, e que, nesse caso, encontra nas práticas de remodelação, fabricação e consertos dos “defeitos naturais” os dispositivos para tornar-se real. As idealizações de gênero nos levam para lugares inabitáveis, um não-lugar, mas que operam ações, opções e desejos. Já nascemos com débitos e teremos a vida inteira para consertar os erros originais. Esse me parece ser o eixo principal do artigo de Silvana Vilodre. Fazer dietas, aumentar ou diminuir partes dos corpos, injetar produtos, suar e suar, são práticas que revelam o caráter ficcional de um corpo feminino original que nasce pronto.

As múltiplas tecnologias de gênero estão em pleno funcionamento, determinando lugares específicos para se fazer o trabalho de reconstrução dos corpos: academias, clínicas, centros de estética, enfim, fábricas de produção de corpos inteligíveis. A experiência corpórea, materializada em determinadas performances, constitui as subjetividades de gênero, ou seja, a ideia ou promessa de felicidade está diretamente vinculada às formas corpóreas que se têm. Eis uma promessa que já nasce fadada ao fracasso.

No artigo “Mutilações e normatizações do corpo feminino – entre a bela e a fera”, Tânia Fontele-Mourão apontará outras tecnologias que produzem feminilidade, calcadas em sacrifício, dor, riscos. Escovas progressivas, dietas rigorosas, depilação, próteses, são práticas de reconstrução corporal, a exemplo da análise do culto fitness, que nos expõem com dureza o caráter ficcional de se pensarem identidades de gênero como uma substância, desvinculado das práticas, conforme discutirá Tânia Navarro em seu artigo. A proliferação de novas tecnologias de gênero e o crescente consumo pelos femininos e masculinos produzem uma inversão: práticas antes vinculadas exclusivamente a travestis e transexuais passam a ser rotinizadas em amplas esferas sociais. A proliferação do uso múltiplo do silicone seria uma marca das identidades protéticas que se caracteriza pela promessa de felicidade mediante reconstrução dos corpos.

Esses processos mais radicais e incisivos de intervenção/fabricação produzem novas formas, porém não originais, de refazer o feminino. São mulheres cromossomaticamente XX que parodiam práticas e performances vinculadas ao mundo trans. Nesse sentido, as pesquisas de Tânia Fontele-Mourão e Silvana Vilodre são fundamentais para pensar os canais de comunicação entre os muitos femininos, sem perder de perspectiva os aprisionamentos e as potencialidades de resistência que derivam da biopolítica contemporânea aliada às novas tecnologias de gênero que circulam pela sociedade.

Para Tânia Fontele-Mourão, o desejo de intervenções é interpretado como uma patologia feminina que potencialmente poderia gerar resistência e rebelião, mas que é manipulada para servir à manutenção da ordem estabelecida. Sintoma desse nível de patologia coletiva seria o fato de que nove em dez mulheres entre 15 e 64 anos querem mudar algum aspecto de corpo, principalmente peso e forma de corpo, conforme pesquisa realizada pela Dove.

A histeria, a agorafobia e a anorexia, para a autora, não são patologias individuais, mas expressões de um nível de sofrimento resultado dos aprisionamentos e controles do corpo feminino. Os corpos esqueléticos das anoréxicas, o desespero das histéricas, a ansiedade das agorafóbicas, são protestos inconscientes, incipientes e contraproducentes, pois são experiências corpóreas e existenciais que não se constituem em voz política, mas estão ali revelando os aprisionamentos de um sistema de gênero que prega, como se mantra fosse, que a felicidade está em ter um corpo adequado aos padrões estéticos. A doença como sintoma de um sistema de gênero que desvaloriza o feminino e captura seus corpos também é analisada por Tânia Navarro Swain, em seu artigo nessa coletânea, quando observa que a TPM seria uma fórmula de interiorização e controle das mulheres, agrilhoando-as a um corpo que dita seu comportamento e sua ação no mundo.

Os artigos de Guacira Lopes Louro, “O ‘estranhamento’ queer”, e de Margareth Rago e Luana Tvardovskas, “O corpo sensual em Márcia X”, esboçam reflexões queer sobre identidades, corpo e desejo. Guacira Lopes Louro apontará a proposta dos estudos queer como uma bússola teórica que oferece fundamentos radicais para a desconstrução da heronormatividade e do binarismo de toda ordem. A autora reconhece a força do binarismo que opera em todas as esferas sociais, inclusive no interior dos grupos chamados minoritários. A política de identidade fixa uma identidade gay, uma identidade lésbica, uma identidade feminina. No campo da luta das minorias, também se produzem exclusão e invisibilidades. As margens produzem seus centros e periferias, hierarquizando performances, tornando uma expressão, ou jeito de estar no mundo, mais legítima.

A autora destacará a força das normas sociais regulatórias que pretendem que um corpo, ao ser identificado como macho ou fêmea, determine, necessariamente, um gênero (masculino ou feminino) e conduza a uma única forma de desejo (que deve se dirigir ao sexo/gênero oposto). O processo de heteronormatividade, ou seja, a produção e reiteração compulsória da norma heterossexual, inscreve-se nessa lógica, supondo a manutenção da continuidade e da coerência entre sexo/gênero/sexualidade.

A discussão teórica apresentada por Guacira Lopes Louro dialoga com a leitura queer que Margareth Rago e Luana Tvardovskas fazem da obra de Márcia X. As autoras destacam a força desestabilizadora da artista plástica, que, em suas instalações, brincava com objetos sagrados, a exemplo do terço, produzindo deslocamento de olhares, corpos, sexualidade e desejo. A sua crítica ao falocentrismo tem um forte componente queer, à medida que inverte polos, desloca olhares, cria instabilidades. Para as autoras, a obra da artista revela a capacidade de autonomia das mulheres e seu desejo de transformar sua economia desejante, desconstruindo os discursos misóginos masculinos, que visam impor-lhes uma identidade construída do exterior. Márcia X desenvolveu performances e instalações, questionando o estatuto da arte e do artista na sociedade, do corpo e da sexualidade, da normalidade e da perversão.

Em uma de suas performances, apresentou-se vestida com uma camisa e uma cueca, onde abrigava um volume que simulava o órgão sexual masculino. A imagem da mulher sensual era, em seguida, quebrada pela visão ambígua da genitália. Em outro momento, a artista apresenta uma instalação com muitos terços formando um pênis enorme. Embaralhamento das fronteiras instituídas, diluição das oposições binárias, são marcas na obra dessa artista, segundo Margareth Rago e Luana Tvardovskas, que destacarão que as mulheres, que já não são ingênuas nem castas, ousam brincar com o desejo, afirmar o prazer, insinuar e expor o corpo, borrando ou desfazendo insistentemente as fronteiras do normal e do perverso. A obra de Márcia X seria uma referência para essas mudanças.

Em “Reações hiperbólicas da violência da linguagem patriarcal”, Marie-France Dépéche realiza uma importante reflexão sobre a linguagem como criadora de realidades, principalmente os atos linguísticos violentos. Os atos da fala produzem invisibilidades e posições de poder. A força da linguagem com modalidade constitutiva das normas de gênero é um dos pontos fortes na análise e posição política dos estudos queer. A negatividade do insulto é invertida, transformando em parte estruturante das identidades. Portanto, recuperar a linguagem como um campo de disputa na luta pela transformação radical das relações assimétricas de gênero é uma estratégia fundamental. É dessa luta que nos fala Marie-France Dépéche. Conforme discorre, o conceito de linguagem não se restringe a um sistema de signos, fixos, a-histórico. A linguagem é uma instituição instável, um lugar de exercício do poder, de confronto entre forças adversas e, portanto, potencialmente violenta, principalmente quando define, a partir dos corpos, os lugares de fala e de inserção sociopolítica.

No debate sobre as formas de violências físicas e simbólicas contra a mulher, a autora destacará que a prostituição é a expressão maior dessas múltiplas violências contra as mulheres. No entanto, sua posição carece de uma escuta mais atenta das mulheres trabalhadoras sexuais, sujeitas que vivem, produzem, reproduzem e interagem no mundo do comércio sexual. Uma concepção que não lida com as muitas variáveis e imponderáveis que constituem esse campo social acaba por produzir uma reificação das relações que acontecem no seu interior. Parece-me simplismo transferir a responsabilidade exclusiva para os homens de práticas e relações continuamente negociadas. Se a realidade é multifacetada, escorregadia, quando se trata de trabalho sexual e trabalhadoras sexuais, esse nível de incertezas é potencializado.

As mulheres trabalhadoras sexuais não são desprovidas de agência. Uma das lutas dessas trabalhadoras é pelo reconhecimento profissional e acesso aos direitos e às obrigações previdenciárias. Diante dessa demanda, o que fazer? Dizer-lhes: não, a luta é pela extinção do trabalho sexual, pois esse trabalho é uma degradação da mulher? Esse argumento é o mesmo utilizado pelos defensores da família heterocentrada. Valeria perguntar qual a fonte explicativa para trabalho sexual masculino. Seria, então, apenas uma inversão dos polos, ou seja, os homens veem seus corpos “apropriados” pelo conjunto de mulheres?

Tânia Navarro Swain, em “Entre a vida e a morte, o sexo”, faz uma crítica radical à centralidade do sexo na vida contemporânea, alertando-nos sobre a força do dispositivo da sexualidade. Para a autora, diante do massacre a que somos submetidos/as diariamente com mensagens de que só é possível ser feliz com muito sexo, de que não existe vida fora da sexualidade compulsória, devemos denunciar que esses enunciados são estratégias a serviço da heterossexualidade compulsória e da heteronormatividade, ou seja, esses enunciados criam aquilo que dizem descrever.

Uma vigilância permanente, não aceitar o hegemônico, fazer do corpo um manifesto de recusa às idealizações, ao dispositivo da sexualidade e ao dispositivo amoroso, revelar os aprisionamentos e promover resistências capilares, reconstruindo o corpo como espaço de resistência e negação dos padrões hegemônicos, são questões que atravessam o artigo de Tânia Navarro. Seu texto tem cheiro, vida, suor, posicionamento. É prazerosa sua leitura porque produz reverberações na subjetividade da leitora. Os bons textos são aqueles que ao lê-los ficamos com a agradável sensação de que estamos sendo lidos, plagiando Mário Quintana. Eis a sensação que Tânia Navarro despertou-me ao analisar a necessidade de um mundo que funcione a partir de uma nova estética da existência que não produza dor, exclusão e violência contra os corpos construídos na condição de abjetos.

A autora articula seu desejo com uma discussão teórica que nos fala de deslocamento, nomadismo, inconformismo. A estética da existência leva a autora a pensar sobre a produção crítica de si, sujeito político e histórico, quebrando os grilhões do natural, da sexualidade compulsória e das novas servidões que se anunciam ao criar nossos corpos.

A radicalidade do seu texto está em relacionar sexualidade à posse, à traição, à honra, à autoestima, à emoção, valores que se confundem em torno de corpos definidos pelo poder de nomeação, pela performatividade dos comportamentos codificados pelo social, pelas condições de imaginação que esculpem modelos.

***

Uma ausência do livro refere-se às reflexões sobre os processos de construção dos corpos masculinos. Essa ausência pode gerar certo incômodo, pois pode sugerir que exclusivamente o corpo feminino foi objeto de reiteradas inversões discursivas para a construção da heteronormatividade e que os homens, os que formulavam essas estratégias, estivessem fora dessa matriz, como se fossem portadores de uma natureza que os predispõe à virilidade e à competição e tenham um desejo intrínseco pelo controle do feminino. Seria a produção da ideia de que o feminino está para a cultura e o masculino, para a natureza?

Essa ausência, no entanto, não retira do livro sua força e originalidade. Navegamos por um léxico que marca o campo de estudos sobre o corpo, desejo, poder, biopoder, e que está em disputa com o poder/saber médico e com as ciências psi. Muitos corpos nos são apresentados ao longo dos 12 artigos, o que faz cair por terra a ideia de que nascemos e vivemos com um único corpo. Mudamos, nossos corpos mudam. A imagem de uma humanidade com dois corpos, pautados na diferença sexual, evapora-se.

Vivemos em uma época pós-humana. O corpo é refeito, retocado, manipulado, seja para adequar-se às normas ou para subvertê-las. Um humano ciborgue, protético, revela-nos que a busca do masculino e do feminino, fundamentada em uma origem biológica, é um conto de fadas ou um conto de terror. Conforme apontou Norma Telles, vivemos em uma época dos corpos fragmentados, que desfazem e refazem a forma humana, sem uma fixação, mutável.

Os ciborgues sociais precisam de reconhecimento para ter vida. Não se reconstroem corpos para si mesmo. O desejo de reconhecimento, de felicidade, faz-nos seres para os/as outros/as. Estamos sempre em relação e em disputa. Nenhuma identidade sexual e de gênero é absolutamente autônoma, autêntica, original, facilmente assumida, isolada. Toda a maquinaria posta em movimento para fazer corpos dóceis ou corpos rebeldes só encontra sua eficácia se produz algum nível de reconhecimento. A identidade é um construto instável e mutável, uma relação social contraditória e não finalizada.

Notas

1 Judith BUTLER, 2003.

2 BUTLER, 2003.

Referências

BENTO, Berenice. A (re)invenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.         [ Links ]

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.         [ Links ]

FONSECA, Claudia Lee Williams. “A dupla carreira da mulher prostituta”. Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 7-34, 1996.         [ Links ]

HARAWAY, Donna. Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature. New York: Routledge, 1991.         [ Links ]

PISCITELLI, Adriana Garcia. “Entre as ‘máfias’ e a ‘ajuda’: a construção de conhecimento no tráfico de pessoas”. Cadernos Pagu, São Paulo: Unicamp, v. 31, p. 29-65, 2008.        [ Links ]

Berenice Bento – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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