Histórias marginais, alteridades e críticas epistêmicas | Fronteiras – Revista de História I 2021

O olhar interdisciplinar e interseccional presente nesse dossiê é fundamental para refletir como a necropolítica e o neoliberalismo atuam sobre as “minorias” na história. Estas seguem tendo sua vida violentada simbólica e concretamente por regimes de dizibilidade – por um “tanatos-político”, ou seja, a produção da morte legitimada pela negligência do estado. Vivemos a perversidade da imbricação entre neoliberalismo, racismo e desigualdade operando sob nossas vidas.

Pensar e visibilizar historias marginalizadas pela episteme colonial é tornar visíveis as injustiças históricas que já vinham sendo vivenciadas nos corpos de mulheres e homens negros e indígenas – corpos racializados. O racismo foi e continua sendo o eixo principal do sistema patriarcal e dominante que administra o poder e mantém povos historicamente oprimidos em situações injustas. Os efeitos do racismo e do sexismo na atualidade são tão brutais que acabam por impulsionar reações capazes de recobrir todas as perdas já postas na relação de dominação.

Pensar a historiografia a partir de categorias como classe, gênero, identidade sexual, cor, raça e etnia, produzidas e interpretadas por uma rede de significados que cada sociedade e cultura constrói, é fundamental na definição dos corpos que serão úteis, inúteis, acolhidos, repelidos, tratados, maltratados, abandonados ou protegidos, curados ou que perecerão.

É preciso compreender que a depreciação da vida, do outro, é dada por dispositivos da “bio-necropolítica”, que não é algum tipo de distopia, mas é a produção racional de um sujeito neoliberal que não vê o outro, não sente o outro; é a produção de um indivíduo inerte ao mundo, à vida e ao real. Refletir sobre histórias marginalizadas, sobre a alteridade, é olhar para existências sem rastro, que não são vidas supérfluas, mas cujas existências invisíveis e desventuradas são destinadas a passar sem deixar vestígio.

Essas narrativas, memórias e experiências de vida, constroem uma “outra história”, uma história dos esquecidos, silenciados, subalternizados. Histórias essas estranguladas por uma historiografia “oficial” do Norte, eurocêntrica, pelo autoritarismo dos governos, pelas relações de poder, pelo esquecimento. É uma “história menor”, subversiva, uma história não contada, aquela que vai contra o preceito ou contra as mímicas disciplinares de um discurso colonial moderno.

Nesse sentido, podemos ver que o artigo “Cultura política, universalismo e relações de gênero como categorias históricas: um diálogo possível ?”, de Hélio Secretário dos Santos, reflete sobre as categorias da cultura política, universalismo e relações de gênero, identificando quais são os fundamentos das restrições que as duas primeiras tecem sobre as últimas e fazem “justiça” às pesquisas sobre relações de gênero.

“Decolonialidade e resistência nos processos culturais, de fé e cura na região das Missões do Rio Grande do Sul”, de Juliani Borchardt da Silva e Ivo dos Santos Canabarro, com foco em uma perspectiva decolonial e intercultural, interpreta as tradições culturais e religiosas na comunidade Miguelino – Região das Missões do estado do Rio Grande do Sul, contemplando os conceitos-chave de decolonidade e interculturalidade, a partir de depoimentos e imagens fotográficas das comunidades originárias.

Dando continuidade, em “Etimologia do puxirão de caboclos no oeste do Paraná”, Anderson Arilson de Freitas apresenta os suportes teóricos e metodológicos para a compreensão do puxirão de caboclos no interior do estado do Paraná, Brasil, em meados do século XX. A base interpretativa tem como sustentação a corrente historiográfica denominada nova história cultural de Lynn Hunt, Carlo Ginzburg e Roger Chartier, autores que se dedicam a abordar a cultura na história. Destaca-se a micro-história, que combina com a problematização de abordagens sobre a etimologia e os significados do termo “puxirão” dos indígenas, registrados durante o período colonial, para pesquisas e observações próximas ao contexto das organizações coletivas de caboclos no estado do Paraná.

“Formações de alteridades e identidades do Caribe insular: memórias e traços de africanidade nas Ilhas de San Andrés”, de Laura García Corredor, é uma reflexão sobre a formação de identidades no arquipélago das Ilhas de San Andrés. O sentido coletivo da identidade da população de raiz, especialmente a afrodescendente, influencia a configuração das alteridades em San Andrés, Providencia e Santa Catalina, mostrando como a narração histórica e etnográfica, construída metodologicamente a partir de elementos extraídos de fontes bibliográficas da história oficial das ilhas e as histórias dos colonos presentes na memória coletiva, são traços que permitem um trabalho de memória presente para a Colômbia.

Danielle Tega, em seu artigo “Histórias impertinentes: memórias políticas de mulheres no Brasil (1978-2014)”, torna visíveis as memórias das mulheres que lutaram na ditadura militar brasileira e nos aponta diversas fontes de pesquisa sobre os papéis fundamentais das mulheres nesse período. Este estudo nos questiona sobre o papel político e social do gênero feminino na época, e nos leva a entender por que a figura feminina é objeto de tanta repressão. Para a autora, é preciso olhar para as trajetórias femininas, as ferramentas utilizadas para a resistência, e Histórias marginais, alteridades e entender como a sociedade hoje tem dificuldade em desconstruir certos paradigmas, principalmente quando são determinados por instituições patriarcais de poder.

“Memórias Desobedientes: A prática poética e política do arquivo de dissidentes sexuais em Buenos Aires”, de Lucía Nuñez Lodwick, é um texto que nos leva a buscar contramemórias em relação aos arquivos patriarcais de poder que controlam a memória e a história do período militar argentino sob “corpos divergentes”. Principalmente sobre desobediência sexual e de gênero, corpos políticos transgressores e como o regime ditatorial por meio de um mecanismo de inteligibilidade heteronormativa tentou obstruir comunidades afetivas. Um texto poderoso que parte das epistemologias do Sul como um caminho enunciativo que recupera esse corpo-saber e que rompe a memória heteronormativa oficial.

Angerlânia da Costa Barros, em seu texto “O Conjunto do Ceará e a política de convivência na ditadura cívico-militar (1976-1985)”, nos mostra como a política habitacional no regime militar foi concebida sem o devido planejamento das regiões onde estava inserida, sem uma visão sistêmica de serviços públicos, zoneamento urbano e desenvolvimento econômico. A política habitacional dos militares era indiferente à diversidade existente em um país de dimensões continentais, e o BNH ignorou as peculiaridades de cada região, ignorando os aspectos culturais, ambientais e de contexto urbano, reproduzindo exaustivamente modelos padronizados.

Desejamos a todas/os uma boa leitura.


Organizadores

Losandro Antonio Tedeschi – Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) Docente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (PPGH/UFGD) Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]  orcid.org/0000-0002-7454-8349

Karina Andrea Bidaseca – Doutora em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (UBA) Docente de Pós-Graduação no Doutorado em Sociologia da Universidad Nacional de San Martín (UNSAM) Ciudad de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina. E-mail: [email protected]  orcid.org/0000-0001-7954-2854

Rosa Campoalegre Septien – Doutora em Ciências Sociológicas pelo Centro de Investigaciones Psicológicas y Sociológicas (CIPS) Docente do Centro de Investigaciones Psicológicas y Sociológicas (CIPS) La Habana, Cuba. E-mail: [email protected]  orcid.org/0000-0003-1838-2548


Referências desta apresentação 

TEDESCHI, Losandro Antonio; BIDASECA, Karina Andrea; SEPTIEN, Rosa Campoalegre. Apresentação. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.23, n.42, p.12-15, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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