Histórias marginais, alteridades e críticas epistêmicas | Fronteiras – Revista de História I 2021

O olhar interdisciplinar e interseccional presente nesse dossiê é fundamental para refletir como a necropolítica e o neoliberalismo atuam sobre as “minorias” na história. Estas seguem tendo sua vida violentada simbólica e concretamente por regimes de dizibilidade – por um “tanatos-político”, ou seja, a produção da morte legitimada pela negligência do estado. Vivemos a perversidade da imbricação entre neoliberalismo, racismo e desigualdade operando sob nossas vidas.

Pensar e visibilizar historias marginalizadas pela episteme colonial é tornar visíveis as injustiças históricas que já vinham sendo vivenciadas nos corpos de mulheres e homens negros e indígenas – corpos racializados. O racismo foi e continua sendo o eixo principal do sistema patriarcal e dominante que administra o poder e mantém povos historicamente oprimidos em situações injustas. Os efeitos do racismo e do sexismo na atualidade são tão brutais que acabam por impulsionar reações capazes de recobrir todas as perdas já postas na relação de dominação. Leia Mais

História, Sujeitos Marginalizados e Alteridades / História Revista / 2020

O dossiê História, Sujeitos Marginalizados e Alteridades que apresentamos na História Revista da Faculdade de História e do Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade Federal de Goiás traz para a reflexão, no campo das ciências humanas e sociais, a partir da relação dialógica entre a exclusão e a indiferença, a problemática da alteridade e da marginalização na história e na historiografia. Partindo da crítica às epistemologias das narrativas hegemônicas que privilegiaram a manutenção do status quo e a interpretação factual e determinista do contexto sócio‐histórico, os autores apoiam‐se nas contribuições críticas que remontam às contribuições dos Annales, dos estudos culturais e da decolonialidade.

A teoria da enunciação de Bakhtin nos ensinou que é a partir do dialogismo e da alteridade que nos relacionamos com o outro, nos constituindo e transformando, constantemente, nessa interação. Portanto, somente através das relações dialógicas com outros sujeitos, discursos, saberes, que podemos nos constituir. Existimos a partir do diálogo com o outro, como afirma o autor: “Eu só pode se realizar no discurso, apoiando‐se em nós” (BAKHTIN, 1926, p.192). Partindo dessas reflexões, reunimos nesse dossiê produções narrativas das ciências humanas que rompem com as perspectivas hegemônicas acadêmicas que obliteram as vozes e / ou narrativas dos interlocutores, quase sempre marginalizados, e os reconhecem como coautores da pesquisa numa relação dialógica entre os sujeitos pesquisador / interlocutor, possibilitando assim a produção de vozes polifônicas em suas escritas. Os textos trazem para o centro as visibilidades dos sujeitos e seus saberes em relação a suas regiões, espaços, lugares e não‐lugares, e trânsitos imersos nas práticas socioculturais das diferenças. Refletindo sobre os processos de marginalização dos sujeitos, dos marcadores da diferença que operam exclusões, das resistências, da produção / diluição de identidades, aspectos necessários para compreensão da sociedade local‐global contemporânea.

Esses estudos são de suma importância pois fraturam a fronteira entre cultura de elite e cultura de massas e favorecem a visibilidade de outros sujeitos nas narrativas histórico‐ sociais. Permitem‐nos pensar como a construção do “outro”, que ocupou e ocupa a outra margem das imaginárias linhas abissais, pôde em um espaço ambivalente e intersticial construir estratégias de (re) existência e sobrevivência. Nesse espaço da produção da diferença e da diferenciação como sinalizou Homi Bhabha, nos é possível refletir nestes textos: o agenciamento de sujeitos e movimentos sociais que se articulam a partir do gênero e da sexualidade; uma história a contrapelo dos sujeitos indígenas; as relações de alteridade entre colonizadores e nativos que resistem em terras africanas e ou palestinas. Ainda, no local da cultura e da resistência, podemos refletir sobre como a lógica colonizadora se imiscuiu nas sociedades contemporâneas que, a partir de processos de racialização dos corpos que habitam a preferia do Maranhão, dos homens e mulheres encarcerados na Guiana francesa, vítimas da necropolítica estatal, ou dos trabalhares candangos que foram e são sistematicamente apagados da memória pública do Distrito Federal, cobram da história uma luta pela humanização num sentido freiriano.

É possível pensar ainda como a diferença se manifesta nas representações culturais seja para analisar a exclusão dos negros e latinos nas políticas educacionais dos EUA ou as experiências de reconstrução da democracia no Chile pós‐ditadura por meio do cinema. Em perspectiva semelhante, as contribuições de Raymond Williams para uma revisão da leitura marxista sobre a cultura atestam a possibilidade de pensar culturas alternativas ou de oposição no interior da cultura dominante, como no caso dos sujeitos marginais das “subculturas” jovens das grandes cidades, a exemplo da cena heavy metal do ABC paulista. Pelo viés decolonial os estudos se voltam, ainda, para necessidade de pensar os corpos da juventude negra brasileira e das mulheres negras e trabalhadores na sociedade brasileira.

Assim, Aguinaldo Rodrigues Gomes, Robson Pereira da Silva e Antônio Ricardo Calori de Lion em Educação & emancipação pela agência dos movimentos sociais de sexualidade e de gênero refletem sobre uma pedagogia da diferença que desafia a “machocracia” e indica a capacidade de agenciamento dos movimentos sociais pautados pelo gênero e pela sexualidade. Tiago Duque apresenta um percurso semelhante em uma sensível leitura sobre um regime de (in)visibilidade (reconhecimento) que envolve pessoas trans e não trans, utilizando a categoria analítica da “passabilidade” no texto Epistemologia da passabilidade: dez notas analíticas sobre experiências de (in)visibilidade trans”. Bruno Rodrigues, no texto O contrapelo da história: os negros e indígenas nos caminhos fluviais até o Mato Grosso nas narrativas elaboradas pelos viajantes (séculos XVIII e XIX), valendo‐se das contribuições benjaminianas, analisa a menção e abordagens dos negros e povos indígenas em obras produzidas por viajantes que transitaram pelo Mato Grosso entre os séculos XVIII e XIX, especialmente através das rotas fluviais. Refletindo sobre a colonialidade das relações e seus impactos na construção da alteridade em Moçambique, o texto A missão civilizadora como factor de construção da alteridade colonial em Moçambique, de Denisse Omar, demonstra como os portugueses conseguiram o direito de civilizar os povos considerados atrasados ignorando / silenciando suas histórias. Fabio Bacila Sahd, em Edward Said e os paralelos entre a ocupação da Palestina e o apartheid na África do Sul, analisa as obras saidianas pela chave do colonialismo, estabelecendo comparações recorrentes entre a ocupação israelense e o apartheid sul‐africano. Ainda pensando as apropriações contemporâneas da colonialidade do poder os textos de Vinícius Pereira Bezerra e Luiz Eduardo Lopes: O “Comando Organizado do Maranhão” (C.O.M) e a guerra de facções na periferia maranhense; de Dinaldo Silva Junior: Enseigner en prision: Un devoir d’histoire; de Karolline Santos: Entre a cidade imaginária e a cidade sensível: breve análise da imaginação museal no Distrito Federal; de Pedro Barbosa: A violência social e o genocídio da juventude negra do Brasil, focalizam de maneira competente e acurada como essa lógica produz a violência, o encarceramento, o apagamento das memórias e o genocídio da população negra e pobre no Brasil contemporâneo.

No espectro de uma pedagogia cultural que capta sentidos produzidos na educação histórica ou aprendida nas representações culturais cinematográficas ou musicais, os autores e títulos que apresentamos a seguir se propuseram a refletir sobre as relações entre o pensamento intelectual, as linguagens e o campo histórico / político / cultural. Assim, Rodrigo de Oliveira Soares, em O papel do aprendizado histórico na construção do sujeito na obra de Paulo Freire: desenvolvimento da consciência histórica, dedica‐se às contribuições de Paulo Freire para o processo de aprendizagem pela via da historicidade enquanto ferramenta de conhecimento que permite pensar a história dos excluídos. Leandro Candido de Souza, em seu texto Cartografias da cultura underground: o surgimento da subcultura heavy metal no ABC paulista e os deslocamentos da identidade suburbana, inspirado pelos Estudos Culturais, pensa a cena heavy metal como uma “subcultura” e sua relação com a consolidação da indústria cultural no Grande ABC. Ao lado disso Flávio Trovão e Roberto Moll Neto, no artigo Conservadorismo e política nos Estados Unidos no filme “Curtindo a vida adoidado”, discutem, principalmente no campo da educação, como as políticas conservadoras da década de 1980 atingiram as comunidades negra e latina no país. Também refletindo sobre a relação cinema e história, Thais Vieira e João Pedro Rosa Ferreira, em Política cool, humor fun: o código humorístico e a perda da dimensão coletiva no filme No, de Pablo Larraín, discorrem sobre o papel do humor nas relações da sociedade do espetáculo e do consumo na política latino‐ americana, a partir do filme “No”, de Pablo Larraín, no qual se apresenta uma leitura sobre o plesbicito de 1988, quando os chilenos decidiram não perpetuar a ditadura de Pinochet. Cleonice Elias da Silva, em Mulheres negras em cena, analisa os documentários “Mulheres Negras: Projeto de Mundo” (Day Rodrigues; Lucas Ogasawara, 2016) e “Sementes: Mulheres Pretas no Poder” (Éthel Oliveira; Júlia Mariano, 2020), refletindo sobre o feminismo negro e as experiências cinematográficas de construção de outras narrativas por mulheres negras brasileiras.

Em A Hidra nos trópicos: trabalhadores britânicos nas margens da ordem, Rute Andrade Castro desconstrói a imagem idealizada dos trabalhadores europeus e da imigração, evidenciando, a partir da documentação de época, um processo de resistência ao trabalho por parte desses trabalhadores que “estavam nas ruas das cidades, nas áreas rurais do país, nas praias, nos bares ou em qualquer lugar onde desejassem estar”. Finalmente, também na esteira das contribuições de feministas negras, no texto Ela era doméstica: trabalhadoras domésticas e donas de casa no Triângulo Mineiro‐MG, Jorgetânia Ferreira da Silva nos traz reflexões sobre experiências de trabalhadoras domésticas e donas de casa da região do Triângulo Mineiro, indicando a importância de compreender as trajetórias dessas sujeitas.

Transpondo a linha artificial, pós‐abissal, já aludida por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Menezes, que invisibiliza os corpos das mulheres negras, seja na vida ou nas representações cinematográficas – ou simplesmente apaga e elimina os corpos da juventude negra brasileira e subalterniza os corpos das mulheres trabalhadoras domésticas – buscamos apresentar uma história revista pelo viés da alteridade. Esperamos que os leitores apreciem, desfrutem e divulguem!

Aguinaldo Rodrigues Gomes – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul / Aquidauana. E-mail: [email protected]

Magdalena López – Universidade de Buenos Aires / CONICET. E-mail: [email protected]

Murilo Borges Silva – Universidade Federal de Jataí. E-mail: [email protected]


GOMES, Aguinaldo Rodrigues; LÓPEZ, Magdalena; SILVA, Murilo Borges. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 25, n. 3, set. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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História: identidades, diversidades e alteridades / Revista Trilhas da História / 2015

A presente edição da revista Trilhas da História é, em parte, resultado da XVI Semana de História e II Jornada de História Antiga e Medieval, trazendo algumas colaborações de autores que participaram do evento, ocorrido em agosto de 2015.

Neste sentido, a pluralística de temas e temporalidades na divisão dos artigos é evidente ao observarmos textos que discutem no seio da Antiguidade Tardia a imagem dos cristãos e sua identidade entre si e os outros, uma abordagem sobre propaganda no Brasil na segunda metade do século XX, um olhar sobre o ensino de História e a constituição de sujeitos leitores, uma exímia reflexão acerca dos temas da ruralidade e festa na Grécia Clássica e, por fim, uma problematização sobre a questão do trabalho docente entre dominação e resistência.

Em continuidade, como resultado do evento, há o Ensaio de Graduação do acadêmico Fernando Lucas Garcia de Souza, que discute de forma interdisciplinar a questão da tatuagem no município de Três Lagoas, evocando importantes questões culturais acerca dessa arte de desenhos corporais.

Na última parte da edição, seguem os artigos de fluxo contínuo, discutindo o espaço do distrito industrial de Jupiá junto a ideia problematizada de progresso e o artigo que busca mostrar a percepção da divisão do estado do Mato Grosso através do periódico Folha de São Paulo.

Cabe, ao lançamento desta edição, evidenciar a importância que a Revista Trilhas da História soma aos meios de divulgação de conhecimento científico no estado do Mato Grosso do Sul e sua perseverança ao continuar existindo mesmo diante dos entraves classificatórios que são colocados aos periódicos no Brasil frente as suas formas de avaliação. Por isso, a revista Trilhas da História agradece aos seus colaboradores pelo interesse e disposição em contribuir com a divulgação de suas pesquisas nesta casa.

Leandro Hecko

Caio Vinicius dos Santos

Organizadores da Edição

Setembro de 2015


HECKO, Leandro; SANTOS, Caio Vinicius dos. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.5, n.9, jul. / dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Deslocamentos e alteridades / História – Questões & Debates / 2013

O tema do dossiê do volume 58 de nossa revista é “Deslocamentos e Alteridades”, com quatro artigos que discutem questões contemporâneas de deslocamentos culturais, atrelados a imigrantes e viajantes, cuja presença desperta a reflexão sobre alteridades, estranhamentos e familiaridades entre indivíduos de diferentes nações e territórios.

No artigo “Eu nasci no Brasil mas o Líbano é o meu país – jovens descendentes de libaneses em Foz do Iguaçu: identidade plural”, da antropóloga Poliana Fabiula Cardozo, observamos os jogos identitários realizados pelos jovens em questão, tanto em suas comunidades de origem como no contexto brasileiro que os cerca e, ao mesmo tempo, perpassa-os, entre interditos e permissões islâmicos e brasileiros. A autora demonstra quando é conveniente para estes jovens ser brasileiro e ser libanês no espaço de Foz do Iguaçu.

O caso analisado por Poliana Cardozo é típico do contexto globalizado, no qual o Islã se insere de forma múltipla e dinâmica. Tal inserção é analisada pela primeira contribuição internacional a este volume, trazida pela geógrafa Shadia Husseini de Araújo, no artigo “O ‘Islã’ como força política na ‘Primavera Árabe’: uma perspectiva da teoria do discurso”. A estudiosa do Islã moderno analisa em que medida a religião do profeta Maomé pode ser considerada um aspecto importante da chamada “Primavera Árabe”, caracterizada pelas revoltas que derrubaram regimes autoritários no mundo islâmico desde janeiro de 2011. Em que medida os deslocamentos culturais em curso no mundo islâmico têm influenciado seus movimentos políticos?

O tema do deslocamento cultural predomina também no artigo “Imperialismo, missão e exotismo: narrativas de viajantes de língua alemã no Brasil nas primeiras décadas do século”, da historiadora Karen Macknow Lisboa, em que se destaca a questão da alteridade nos relatos de cinco viajantes alemães, nas três primeiras décadas do século XX: um político colonial, um escritor exotista, dois expressionistas e um membro do partido nacional-socialista alemão (NSDAP). Sua discussão também almeja contribuir para os estudos sobre a literatura de viagem da primeira metade do século XX a respeito do Brasil, um assunto ainda pouco explorado, sobretudo em relação aos viajantes de cultura germânica e que não eram antropólogos.

Encerramos este dossiê com um artigo que faz o sentido inverso da alteridade explorada no texto anterior – o historiador René E. Gertz, em “De Otto von Bismarck a Angela Merkel: do ‘perigo alemão’ ao ‘neonazismo’ no Brasil”, explora os medos que a presença alemã no Brasil despertou em diferentes momentos da história contemporânea. Ainda que a maioria dos neonazistas presos e identificados recentemente no Brasil não seja de origem germânica, o neonazismo é considerado pelo senso comum – e por vezes por trabalhos acadêmicos – como uma iniciativa de descendentes de alemães. Por que, após tantas décadas de presença de descendentes de alemães em solo brasileiro, determinados preconceitos ainda persistem?

Os estudos trazidos por este dossiê procuram responder a estas perguntas a partir de uma análise dos efeitos que os deslocamentos culturais suscitam nos últimos dois séculos.

Na seção de artigos, apresentamos três textos: o primeiro é da antropóloga Lisa Cligget, da Universidade de Kentucky, que traz a segunda contribuição internacional para nosso volume, com o texto “Componentes sociais da migração: experiências da Província Sul, Zâmbia”. O artigo revela a importância das estruturas do poder local – ao nível da comunidade e da família – para entender a migração, ao contrário das suposições comuns que atribuem causas econômicas e ambientais às decisões de migração. São examinados os processos migratórios na Província Sul da Zâmbia por meio do uso de informações coletadas de dois projetos de pesquisa qualitativa. Contextos locais econômicos e ambientais eram os fatores decisórios na migração das populações; o controle sobre os recursos da zona rural e a habilidade de mobilizar as redes de apoio social nos vilarejos também demonstraram influenciar as decisões para deslocar-se. As informações apresentadas nesse trabalho são do Projeto de Pesquisa longitudinal Gwembe Tonga (GTRP) e de um estudo de dois anos sobre emprego e mercados de trabalho na Província Sul, liderados pelo Centro de Estudos sobre Desenvolvimento da University of Bath, Inglaterra.

O segundo artigo é do historiador José Geraldo Costa Grillo, “A representação da mulher na iconografia de Ájax carregando o corpo de Aquiles na pintura da cerâmica ática (570-480 a.C.)”. Segundo o autor, da perspectiva dos estudos de gênero, a representação da mulher na pintura da cerâmica ática tem sido entendida basicamente de duas maneiras: 1) os pintores revelam o mesmo preconceito discriminatório encontrado nos textos literários; 2) tanto nos textos quanto na iconografia, a posição social da mulher não é assim estanque. Partilhando dessa segunda concepção, o autor demonstra, a partir da análise iconográfica da cena de Ájax carregando o corpo de Aquiles, que se, por um lado, a mulher por vezes desempenha um papel secundário, podendo implicar sua desvalorização social, por outro, ocupa, em inúmeros e significativos casos, o lugar central como protagonista do evento, demonstrando seu prestígio e valor aos olhos de sua sociedade.

Por fim, o artigo “Arqueologia Histórica – Abordagens”, de Diego Antônio Gheno e Neli Teresinha Galarce Machado, aborda as potencialidades teóricas e metodológicas da Arqueologia Histórica, destacando como esta subdisciplina passou a ser aplicada em diferentes contextos, relacionada a modelos teóricos amplos, como o histórico-culturalismo, o processualismo e o pós-processualismo. A Arqueologia Histórica, no continente americano, é uma fecunda via de estudo da cultura material proveniente do período Moderno. O artigo problematiza a definição de Arqueologia Histórica, entendida pelos autores como o estudo dos grupos humanos, em seus mais diversos aspectos, através da sua cultura material e das formações sociais desaparecidas, tendendo a variar a partir da área de atuação do arqueólogo conforme seu objeto de pesquisa. Outro aspecto abordado no texto é a breve revisão sobre pesquisas em perspectiva da Arqueologia Histórica no Brasil, Rio Grande do Sul e na região geopoliticamente conhecida como Vale do Taquari.

Apresentamos três resenhas para encerrar este volume. Na primeira, Daniel Afonso da Silva analisa o livro de Anderson Lino, Bom Jesus da Cana Verde: conflitos e celebrações no Norte do Paraná, 1886-2008 (2011), que versa sobre o processo de constituição da romaria em culto ao Senhor Bom Jesus da Cana Verde, na pequena Siqueira Campos, no norte pioneiro do Paraná, um dos maiores e mais marcantes acontecimentos religiosos do país. O autor defende que a imagem e a festa em seu elogio, que existe desde 1934, derivam de disputas e conflitos depositários de modificações estruturais na relação entre Estado e igreja em todo o mundo ocidental ao longo dos últimos cento e cinquenta anos.

Já Bruno Torquato Silva Ferreira e Marcos Hanemann analisam o livro Tributo de sangue: exército, honra, raça e nação no Brasil (1864-1945) (2009), do brasilianista Peter M. Beattie. A obra desenvolve a maneira pela qual ocorreu a transição do recrutamento forçado para a conscrição através de sorteio como forma de preenchimento dos claros (vazios) das fileiras do Exército brasileiro entre 1864 e 1945. O corte é pouco usual para os que acompanham os estudos nativos sobre o tema e refere-se às duas mais importantes mobilizações militares que o Brasil conheceu: a Guerra contra o Paraguai e a Segunda Guerra Mundial. Coincide ainda com importantes alterações nas estruturas social, econômica e política brasileiras, que se materializaram na expansão das atividades capitalistas, no processo de urbanização, na industrialização, na expansão do sistema viário, na integração nacional, no avanço do nacionalismo e no aumento do poder do Estado.

Por fim, o livro Ancient Judaism. New Visions and Views (2011), de Michael Stone, é resenhado por Jonas Machado. Stone discorre sobre elementos considerados de suma importância para as concepções atuais sobre o judaísmo da antiguidade. Essa obra destaca as origens, a complexidade, a transmissão e a recepção das tradições contidas na literatura que constituem as fontes para o estudo do judaísmo antigo, eixo central em torno do qual gira esse trabalho, com o propósito de desafiar ortodoxias tardias que engendraram histórias teologicamente condicionadas sobre o judaísmo antigo.

Karina Kosicki Bellotti


BELLOTTI, Karina Kosicki. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.58, n.1, jan. / jun., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Identidades – Alteridades / Revista Brasileira de História / 1999

Configurações identitárias abordadas em diversas perspectivas temáticas e metodológicas estão presentes nos artigos reunidos no dossiê Identidades / Alteridades, o qual, ao abrir este número da Revista Brasileira de História, traz aos leitores o primeiro resultado da atual gestão. Espaços e temporalidades diversos contribuem para tornar mais abrangente a configuração do conjunto de trabalhos que partilham reflexões voltadas para estudos de cultura, família e política.

A complexidade das relações entre cultura e identidade constitui a problemática dos artigos de Jaime Rodrigues, Paulo Koguruma e Maria Inês Machado Borges Pinto. O artigo de Jaime Rodrigues tem como eixo as relações sociais estabelecidas a bordo de navios negreiros destinados ao Brasil, nos séculos XVIII e XIX, evidenciando a constituição de identidades sociais a partir de elementos integrantes da chamada cultura marítima, aos quais agrega com destaque elementos constitutivos de hierarquias, disciplinas e rituais vigentes nas embarcações. Trata-se de uma abordagem de práticas e representações direcionadas para a garantia da sobrevivência no duro cotidiano do mar a que estavam sujeitos tanto a tripulação quanto os escravos submetidos a condições desumanas de vida, apoiada em diários de bordo, relatos de viajantes, processos de apreensão de embarcações negreiras e dicionários portugueses de marinharia.

Processos identitários urbanos constituem o objeto do artigo de Paulo Koguruma, construído a partir de narrativas de memorialistas, cronistas e viajantes sobre São Paulo nos anos finais do século XIX e início do XX. Diferentes ritmos sociais configuram especificidades da urbanização que resultou na construção de identidades plurais. As tensões entre formas complexas de sociabilidade foram abordadas de modo a colocar em evidência o cosmopolitismo no espaço urbano.

Maria Inês Machado Borges Pinto, por sua vez, retoma o tema no artigo que aborda a constituição de papéis femininos produzidos pela cultura de massas. Tendo como referencial o cinema, analisa representações da mulher referidas à modernidade em seus apelos de consumo e aparência, bem como à adoção de novos valores e atitudes.Seu oposto, a identidade feminina constituída a partir de referências ao lar, ao espaço da vida doméstica, adquire significado como objeto de contestação pelas películas veiculadoras de um novo discurso normativo.

O objetivo de pensar identidades no âmbito das relações de família aproxima os artigos de Maria Adenir Peraro e André Ricardo Pereira, possibilitando a compreensão de múltiplas redes de relações, representações, práticas a apropriações. Maria Adenir Peraro elege as relações de família para abordar o estatuto dos filhos ilegítimos em Cuiabá no século XIX; a organização de famílias alternativas ao modelo tradicional inspira reflexões acerca da universalidade da família patriarcal e seus desdobramentos em torno da questão da legitimidade, em suas especificidades referentes a Mato Grosso, numa análise que busca superar abordagens homogeneizadoras do social.

André Ricardo Pereira empreende, em estudo sobre a criança no Estado Novo, uma abordagem de processos identitários, ressaltando o político enquanto fator fundamental, tanto para a delimitação da infância, quanto para práticas e representações a ela relacionadas. Nesse intuito, analisa políticas de amparo à infância empreendidas pelo Departamento Nacional da Criança, ressaltando seu caráter assistencialista e seu fundamento manipulador de metáfora dualista excludente. O discurso médico que legitimou a ação governamental e as razões do pensamento autoritário são cotejados em análise minuciosa do programa de proteção materno-infantil.

A temática da história política presente nos artigos de Cássia Chrispiniano Adduci, Christian Laville e Fernando Kolleritz permite a compreensão de perspectivas múltiplas.Na temporalidade das últimas décadas do século XIX, Cássia Chrispiniano Adduci realizou um estudo historiográfico sobre dimensões do separatismo paulista, notadamente suas ligações com o republicanismo e as concepções escravistas, ressaltando assim dois eixos de fundamental importância na construção de suas peculiaridaes.

Christian Laville apresenta uma análise de questões referentes ao ensino de história. Seu referencial são as práticas escolares em diversas sociedades,em especial Estados Unidos e Canadá, tendo como base as relações entre a narrativa ensinada e projetos políticos centrados na constituição da nação como tarefa do Estado. Experiências diversas partilham o propósito de instrumentalização do ensino da história para a configuração de identidades.

O artigo de Fernando Kolleritz encerra o dossiê e coloca em discussão processos identitários forjados no interior de práticas políticas afeitas ao campo do socialismo, notadamente ao stalinismo. A análise de três autobiografias de intelectuais franceses situa face a face a identidade comunista e sua negativa, num confronto partilhado de atendimento a necessidades próprias do campo da subjetividade. Recoloca em cena, portanto, a cultura e as sociedades comunistas a partir da abordagem de um projeto de construção de um homem novo, em seus aspectos afetivo, moral e cognitivo, tratados em perspectiva da dialética indivíduo-sociedade na qual o cotidiano constitui aspecto decisivo.

A seção de artigos abre-se com o trabalho de Antonio V. P. Morás. Referido aos estudos de cultura, o artigo analisa a permanência de mitos celtas no folclore medieval, bem como a assimilação de seus temas e motivos pela cultura clerical a partir do século XII. As representações de mulheres como fadas e o universo feérico são por ele rastreados na literatura medieval, numa análise que aborda complexos míticos relacionados aos seus significados no mundo céltico, bem como as transformações neles operadas desde seu contato com a cultura clerical. Decodificações de significados são assim evidenciados em termos de permanência e atualização, relacionadas às condições sociais presentes numa dada produção cultural.

Política e educação às vésperas da República constituem o tema do artigo de Carlota Boto em sua análise da instrução pública como instrumento para a constituição da cidadania. A partir do pensamento pedagógico de Rui Barbosa, aborda o ideário liberal no âmbito da transição do Império à República, problematizando a emergência de uma preocupação democrática que não consegue mascarar o temor do voto popular, antes procura domesticá-lo mediante sustentação pedagógica. Ressalta o binômio democracia-educação presente nos debates políticos acerca do povo tutelado e da validade de escrutínios políticos.

A fotografia como documento para a escrita da história é valorizada por André Amaral de Toral, que realiza extensa cobertura de registros fotográficos da Guerra do Paraguai. A linguagem fotográfica e sua utilização específica no contexto da guerra são abordadas neste trabalho no sentido de evidenciar as cartes-de-visite que retratavam militares e cenas da frente de batalha. Além de analisar aspectos da composição fotográfica enquanto linguagem de comunicação, o autor ressalta o olhar dos fotógrafos sobre o conflito, humanizando o inimigo, registrando a crueldade e a carnificina. Valoriza assim o caráter de denúncia desses documentos e a sua eficácia em questionar os nacionalismos em luta.


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19, n.38, 1999. Acessar publicação original [DR]

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